Cartão de ponto

Ponto eletrônico foi instituído de forma irregular

Autor

  • Marcos Alencar

    é advogado trabalhista formado pela Unicap/PE sócio do dejure advocacia consultor de empresas editor do blog jurídico trabalhista marcosalencar.com.br comentarista da rádio CBN/Recife do programas instante jurídico e trabalhismo em debate e colunista das revistas plural e Bites.

7 de dezembro de 2009, 18h09

Antes de atacarmos a constitucionalidade da Portaria 1.510/09, é necessário tecermos algumas breves linhas a respeito da sua motivação, referência legal, necessidade técnica e competência funcional do Senhor Ministro do Trabalho e Emprego. Após, vamos bater na tecla da constitucionalidade, quanto a sua competência para instituir obrigações tão complexas.

Em 21 de agosto de 2009, o Ministro do Trabalho e Emprego, visando disciplinar o registro eletrônico de ponto e a utilização do Sistema de Registro Eletrônico de Ponto, software e hardware, resolveu editar (promulgar) a referida Portaria. A pretensa “lei” entrou em vigor de imediato, na data da sua publicação, quanto ao sistema de registro eletrônico de ponto, o software, que apura os simples registros de início e fim da jornada de trabalho; idem, as idas e vindas dos intervalos destinados às refeições e descanso. O hardware só vai começar a valer em agosto de 2010.

O Registro Eletrônico de Ponto, o “super” relógio de ponto, que a Portaria visa instituir, segundo o Ato do Senhor Ministro, só será utilizado no prazo de 12 meses, ou seja, até 21 de agosto de 2010, quando deverá ser adotado pelos empregadores (que utilizam do sistema eletrônico de ponto).

A Portaria que traz no seu bojo 31 artigos e anexos, fundamenta a sua existência na necessidade de “instruir” a execução dos registros no relógio de ponto eletrônico e do seu sistema, minimizando a fraude destes; dando maior eficácia, ao que está previsto no art. 74, II da CLT.

O art. 74, II da CLT prevê: “§ 2º: Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória à anotação da hora de entrada e saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso.”

A preocupação e o intuito da Portaria 1.510/09 em tentar resolver a fraude nos registros de ponto é louvável. Na exposição de motivos encontramos a análise de vários julgados trabalhistas que apontam falhas e manipulação no registro de ponto, em diversas situações, principalmente nos registros eletrônicos, em que basta um acesso ao sistema de marcação do ponto para fazer os ajustes que bem quiser. Isso é fato. O que divergimos e entendemos como violador da Constituição é a falta de competência funcional do Senhor Ministro ao editar uma Portaria com natureza jurídica de Decreto (presidencial) tal a descomedida complexidade da portaria e de seus artigos.

O Direito do Trabalho, é sempre bom lembrar, é calcado na oralidade, simplicidade, informalismo, onde prevalece o Princípio da Realidade, sobretudo quanto ao que está escrito. A presunção de validade do registro, seja ele qual for, é juris tantum, ou seja, admite-se prova em contrário e até mesmo a declaração de nulidade dos mesmos, conforme o art. 9.º da CLT.

Portanto, a fraude que a “super” portaria indica possível nos registros de ponto atuais e as declarações ideologicamente falsas e em desacordo com os horários realmente trabalhados são concretas, e se repetem também em vários momentos do contrato de trabalho e não apenas e, tão somente, no registro de ponto.

Cito, por exemplo, a assinatura do contrato de trabalho. É fato que em várias reclamatórias trabalhistas se discute sobre a falsidade do registro funcional, com reclamos por registro de salário menor do que realmente se paga; de função diversa da exercida (acúmulo de função e desvio de função, quebra da isonomia salarial); da entrega de utilidade que não existe, tais como fardamento, EPI, manuais e treinamentos; e de autorizações de descontos futuros não negociados. Isso jamais vai acabar com uma simples lei ou portaria, mas somente quando chegarmos a um amadurecimento das relações de emprego, quando empregador e empregado entenderem que não compensa fraudarem juntos as informações do contrato de trabalho.

Para se ter uma ideia de como é fácil fraudar essa “supimpa” portaria, basta imaginarmos o empregado batendo o ponto na sua “suposta” saída do trabalho, às 18h, para, logo em seguida, retornar para a linha de produção da empresa e lá continuar a trabalhar sem nada registrar ou fazendo um “rascunho” das horas extras trabalhadas “por fora”. O que quero aqui não é levantar uma bandeira e nem congratular com os fraudadores, mas registrar que essa portaria, na prática, não vai acabar com a fraude que permeia o sistema atual. Ela vai continuar, dessa vez através de outros mecanismos ilícitos.


Para quem vive as relações trabalhistas tendo a chance de vê-la por diversos ângulos, não apenas pela ótica fiscalizadora do Ministério do Trabalho, é importante ressaltar que grande parte das fraudes ocorridas no curso do contrato de trabalho têm a conivência do patrão e do empregado, eles simplesmente se unem para fraudar o fisco, o INSS, uma pensionista (pensão alimentícia), etc. Lá adiante, sem generalizar, mas, relatando que o índice é alto, o mais fraco, o empregado, descumpre o pacto de fraude, e vai para a Justiça reclamar seus direitos, ou denunciá-los ao Sindicato de classe, Ministério do Trabalho, enfim. Logo, a fraude não é simples de ser extinta, porque no decorrer do contrato de trabalho, ambos se beneficiam e fazem de tudo para ocultar o que fazem de errado.

Após essas considerações iniciais, analisando a competência funcional do Senhor Ministro do Trabalho e Emprego para criar os 31 artigos da “super” Portaria 1.510/09, apesar de ser legítima a sua preocupação e empenho em buscar meios de minimizar as fraudes nos registros de ponto, entendo que há extrapolação da sua competência. O Senhor Ministro foi muito além dos limites impostos pelo legislador constitucional, considerando que a portaria em causa é um decreto ou até mesmo um tratado de Direito do Trabalho relativo ao registro eletrônico de ponto, e altera significativamente a singela redação do art. 74, inciso II, da CLT, antes transcrito, no que viola o art. 87, II, da CF/88.

A portaria obriga ao empregador a adquirir um “super relógio de ponto”, quando a lei nada exige a respeito. Em resumo, citando em breves linhas, o tal relógio de ponto terá que ser capaz de: I – relógio interno de tempo real com precisão mínima de um minuto por ano com capacidade de funcionamento ininterrupto por um período mínimo de mil quatrocentos e quarenta horas na ausência de energia elétrica de alimentação; II – mostrador do relógio de tempo real contendo hora, minutos e segundos; III – dispor de mecanismo impressor em bobina de papel, integrado e de uso exclusivo do equipamento, que permita impressões com durabilidade mínima de cinco anos (para cada batida ele terá que emitir uma boleta, são quatro por dia por cada empregado); IV – meio de armazenamento permanente, denominado Memória de Registro de Ponto – MRP, onde os dados armazenados não possam ser apagados ou alterados, direta ou indiretamente; V – meio de armazenamento, denominado Memória de Trabalho – MT, onde ficarão armazenados os dados necessários à operação do REP; VI – porta padrão USB externa, denominada Porta Fiscal, para pronta captura dos dados armazenados na MRP pelo Auditor-Fiscal do Trabalho; VII – para a função de marcação de ponto, o REP não deverá depender de qualquer conexão com outro equipamento externo; e VIII – a marcação de ponto ficará interrompida quando for feita qualquer operação que exija a comunicação do REP com qualquer outro equipamento, seja para carga ou leitura de dados.

Por tudo isso, vejo a Portaria 1.510/09 do MTE como inconstitucional, pela falta de competência do Senhor Ministro, que “legislou”; foi muito além de uma instrução ou portaria na forma legal. Literalmente, criou lei instituindo obrigações complexas e regras tão potentes! Não se trata aqui, especificamente, do conteúdo da portaria em si, mas do seu conteúdo, que teria de ser votado pelo Parlamento ou objeto de, pelo menos, um decreto regulamentador. Se assim fosse, seria constitucionalíssima, mas não foi, logo, o grande equívoco está na forma, no veículo, que está sendo utilizado. Portaria não é o meio legal para se criar lei federal e nem jamais se alterar tão significativamente a CLT, esse é o “X” da questão.

Em suma, falece poder ao Senhor Ministro para tanto, considerando-se que:

1. O fundamento legal apresentado pelo Sr. Ministro para redigir os “revolucionários” 31 artigos da Portaria (que regulamenta e cria lei quanto ao registro eletrônico de ponto) tem fundamento no art. 87, inciso II, da Constituição Federal de 1988, que prevê: “Art. 87 – Os Ministros de Estado serão escolhidos dentre brasileiros maiores de vinte e um anos e no exercício dos direitos políticos (…) II – expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos”. O art. 913 da CLT diz praticamente a mesma coisa. “O Ministro do Trabalho expedirá instruções, quadro, tabelas e modelos que se tornarem necessários à execução desta Consolidação”. É evidente que uma Super portaria de 31 artigos e Anexos não é uma Portaria, mas sim uma lei, uma lei federal que, à guisa de orientar, altera por completo o art. 74, parágrafo 2º, da CLT. O Senhor Ministro foi muito além daquilo que a Constituição Federal e a CLT lhe asseguraram quanto à sua competência funcional, data vênia, que nada mais é do que expedir instruções para orientar o cumprimento ou a execução das leis.


2. O Ministro criou lei, trouxe uma gama de obrigações, requisitos, exigências, fora do normal e da razão, que não estão previstas na Lei. Nada foi instruído, mas sim editado, criado. A Constituição Federal de 1988, no seu art. 5º, inciso II, diz: “ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei”. Não existe lei no país que sirva de encaixe nessa mega portaria.

3. O art. 74, inciso II, da CLT, que o caput da Portaria menciona como referência para legislar sobre o tema “registro de ponto eletrônico”, diz o seguinte: “§ 2º – Para os estabelecimentos de mais de dez trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho, devendo haver pré-assinalação do período de repouso”. A Portaria 1.510 supera muitas vezes essa singela obrigação e exigência, pois a CLT diz que é simplesmente regular a anotação da hora de entrada e saída do trabalhador, não vinculando à validade desse ato a parafernália tecnológica do relógio de ponto do Senhor Ministro.

4. A Portaria viola ainda o Princípio da Razoabilidade, da equivalência, do tratamento igualitário, aos empregadores. Considere que aquele empregador com mais de dez empregados que adotar o sistema manual ou mecânico de registro de ponto não estará atingido pelas “cibernéticas” exigências e mecanismos dos que adotarem o sistema eletrônico de registro de ponto. Esse tratamento desigual, sem razão que o justifique, sem motivação alguma viola a Constituição Federal na sua mais democrática passagem e essência, “que são todos iguais perante a Lei”.

5. A proposta do Senhor Ministro pode até ser aceita, pois estamos numa democracia, e ideias diferentes são normais e louváveis, mas deveria ter surgido como um decreto do Executivo ou mesmo um projeto de lei, jamais pela janela dada pelo art. 87, inciso II, da CF/88. O que foi feito está há anos luz além de uma portaria que vise resolver, orientar e instruir o registro eletrônico de ponto, e acabar com as fraudes. A simplicidade instituída pela CLT às relações de trabalho está sendo literalmente renegada na edição da inusitada portaria.

6. A inconstitucionalidade que estou aqui denunciando, para que fique mais do que claro, não questiona o conteúdo da portaria. Não estou entrando nesse mérito, mas sim da forma como está ingressando no mundo jurídico, por um caminho inadequado, ilegal, arrimada numa competência funcional do Senhor Ministro que não existe. Ratifico até a possibilidade de se pensar em tais regras, mas através de caminhos legais, quem sabe um decreto ou um projeto de lei nesses termos.

Sabemos que a omissão do Poder Legislativo é tremenda, que há uma imensa gama de projetos de lei engavetados aguardando a boa vontade e interesse dos parlamentares na apreciação e andamento, mas isso não pode servir de justificativa para se violar a Constituição Federal e se legislar além da competência funcional, data vênia, a céu aberto. Nós operadores do Direito não podemos ficar de braços cruzados e assistir a tudo isso. Temos que nos posicionar, descer do muro e firmar opinião.

A vontade política do Senhor Ministro em arrumar as coisas, em gerar empregos, está na mídia, qualquer cego vê, mas toda essa boa vontade e espírito cívico não pode nunca ser gancho para ampliação da sua competência funcional. Para sermos livres, temos que ser escravos das leis, isso é a regra número 1 da Democracia.

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