Julgamento do tempo

Lei de Anistia é reinterpretada, 30 anos depois

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28 de agosto de 2009, 14h09

Recebida com euforia pelos exilados políticos que deixaram o país devido à perseguição do regime militar a partir do golpe em 1964 à época de sua edição, a Lei de Anistia completa 30 anos nesta sexta-feira (28/8) – sem festa. A lei perdoou crimes políticos cometidos durante os anos de chumbo, o que permitiu que muitos opositores à repressão, perseguidos pelo Estado até então, voltassem ao Brasil. Arquitetada para ser uma pedra sobre o passado, ela também tranquilizou agentes policiais e militares acusados de sequestrar, torturar e assassinar insurgentes — assim como beneficiou militantes esquerdistas denunciados pelos mesmos crimes, que não tivessem sido ainda condenados.

Parte importante da negociação pela distensão gradual em direção ao regime democrático, proposta oficialmente pelos próprios militares, a Lei de Anistia hoje é vista como um obstáculo indesejado para que o Estado apure e puna os abusos cometidos nos porões da ditadura. É do Supremo Tribunal Federal a difícil tarefa de julgar se integrantes do antigo regime devem pagar pelo que fizeram — o que pode incluir também militantes de resistência à ditadura autores de atentados —, ou se a lei serviu de ponto final na questão para ambos os lados.

A Lei 6.683 perdoou crimes cometidos a partir do Ato Institucional 1, que oficializou o golpe militar em 9 de abril de 1964, até a sua sanção pelo presidente João Baptista Figueiredo, em 28 de agosto de 1979. Entre militantes presos, exonerados de funções públicas ou exilados devido à corrente política que defendiam, foram beneficiados pela anistia 4,6 mil pessoas. O perdão permitiu o retorno ao país de perseguidos políticos conhecidos, como Miguel Arraes, Leonel Brizola, José Dirceu, Vladimir Palmeira, Fernando Gabeira e Betinho — o “irmão do Henfil” —, além dos atuais ministros Carlos Minc, do Meio Ambiente, e Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação. A ministra da Casa Civil, Dilma Roussef, presa e torturada, depois da lei, mesmo não tendo sido exilada, pôde voltar às suas atividades normais.

Outras normas ampliaram a anistia concedida por Figueiredo. Depois de sua citação na Constituição Federal de 1988, nos artigos 8º e 9º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, as Leis 9.140/95 e 10.559/02 estabeleceram indenizações a serem pagas a vítimas e familiares do regime.

A Emenda Constitucional 26, de 1985, foi a primeira a tirar a exceção prevista na Lei 6.683, de que condenados por terrorismo não poderiam ser perdoados. A novidade, porém, só chegou depois de muita briga na Justiça. Antes de completar seu primeiro ano de vigência, a Lei de Anistia já chegava ao Supremo. O líder estudantil Altino Rodrigues Dantas Júnior pedia aos ministros que a lei não descumprisse o que previa o Código Penal. Acusado de cometer quatro assaltos a supermercados para arrecadar para o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, Altino queria o perdão dado pela lei, embora já houvesse sido condenado. Como o processo ainda não havia transitado em julgado, porém, a 2ª Turma da corte entendeu que a proibição de condenados de usufruir do benefício só valeria se não coubessem mais recursos na Justiça. Ao perdoar os crimes políticos, a lei excetuou “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”, conforme seu artigo 1º, parágrafo 2º. Clique aqui para ler o acórdão.

Feridas abertas
Inerte há mais de vinte anos, a discussão voltou no ano passado, com o ajuizamento de uma ação pela Ordem dos Advogados do Brasil no Supremo Tribunal Federal. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental do Conselho Federal da OAB, assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, foi o resultado de uma erupção provocada em julho do ano passado por declarações à imprensa feitas pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, e pelo ministro Paulo Vanucchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos.

Durante um encontro promovido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, os ministros afirmaram que os crimes cometidos por militares não foram anistiados, por serem crimes comuns e não políticos. Por isso, esses agentes deveriam ser responsabilizados. As afirmações geraram uma crise entre governo e militares. Os clubes de aposentados da Aeronáutica, Marinha e Exército pressionaram o presidente Lula para reprovar as declarações.

Lula chamou a atenção de Genro, o que não evitou que o ministro voltasse a se pronunciar sobre o tema em fevereiro deste ano. Ele criticou um parecer dado pela Advocacia-Geral da União, contrário à ação movida pela OAB no Supremo. Segundo Genro, tortura não é delito político, como afirmaram os advogados da União Ana Carolina Tannuri Laferté e Henrique Figueiredo Fulgêncio no parecer enviado em janeiro ao ministro Eros Grau, relator da ação no Supremo.

O assunto dividiu a Esplanada dos Ministérios. Atendendo a pedidos do ministro Eros Grau, o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos e a Casa Civil opinaram contra a interpretação da lei segundo a qual os torturadores estariam perdoados. De outro lado ficaram o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores, que apoiaram o parecer da AGU.

A divergência de opiniões dentro do próprio Executivo foi o que motivou a OAB a contestar a lei no STF, como explicou à ConJur um dos autores da ação, o advogado Maurício Gentil Monteiro. “Foi aproveitando essa controvérsia pública entre autoridades que a Ordem provocou o STF a se manifestar. Além da divergência dentro do próprio governo, é notório que juristas como o ex-ministro Carlos Velloso e o atual presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abrão, divergem quanto à pergunta: tortura é ou não crime político?”, disse.

Votação apertada
A sessão do dia 22 de agosto de 1979 no Congresso Nacional foi tumultuada. Foram oito horas de bate-boca e empurra-empurra no Plenário, enquanto ovações e vaias ecoavam das galerias. Por 206 votos a 201, o Projeto de Lei 14/79, proposto pelo último presidente militar, foi aprovado em sessão conjunta. Seis dias depois, a norma era sancionada pelo presidente João Figueiredo. No dia 1º de novembro de 1979, os primeiros brasileiros exilados no exterior voltavam ao país. A história da lei está resumida no processo de nove volumes que acompanha o Projeto de Lei 14/79, hoje no Arquivo do Senado, de acordo com o jornal Folha de S.Paulo.

A luta pela anistia ampla, geral e irrestrita começou em 1968 com estudantes, jornalistas e políticos, e logo ganhou a adesão da sociedade, como conta o jornal em reportagem especial publicada no dia 23 de agosto. Comitês criados no Brasil e no exterior reuniam filhos, mães, mulheres e amigos de presos políticos. Em 1978, foi formado o Comitê Brasileiro pela Anistia no Rio de Janeiro, com sede na Associação Brasileira de Imprensa.

O processo arquivado no Senado mostra que a necessidade de prever punição aos torturadores foi cogitado no dia da votação, em discursos de parlamentares do MDB, como Airton Soares (MDB-SP) e Walter Silva (MDB-RJ). As maiores críticas do MDB eram porque a lei não libertava imediatamente os presos políticos. Alguns ficaram na cadeia até dezembro. Em minoria no Congresso, o MDB cedeu à Arena, que apoiava o regime. O próprio substitutivo da oposição, também rejeitado, não previa punição aos torturadores. O MDB queria aprovar o que achava possível no momento.

O senador pelo MDB de Alagoas Teotônio Vilela (1917-1983), que percorrera presídios e recebera 43 manifestações de entidades de advogados, jornalistas e artistas, criticou o projeto do governo, mas adotou tom conciliatório: "Se houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância profunda da anistia está em reconciliar a nação."

O maior protesto pelas punições dos torturadores vinha dos que tinham sofrido as violências do regime. Quando a lei foi aprovada, havia 53 presos políticos em presídios de sete Estados, a maior parte em greve de fome. O protesto durou 33 dias. Eles enviaram uma carta a Teotônio, que listou nomes ou apelidos de 251 militares e carcereiros envolvidos em torturas contra presos políticos.

Acerto de contas
O nó a ser desatado pelo Supremo é se a Lei 6.683 poderia anistiar crimes de sequestro e tortura, cometidos por agentes do Estado, hoje imprescritíveis e não passíveis de qualquer indulto ou graça, segundo a Constituição Federal de 1988 e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. A OAB contesta o artigo 1º, parágrafo 1º da lei, que considera crimes de quaisquer natureza conexos com as motivações políticas. Como crimes conexos a crimes políticos, as torturas entrariam na anistia. “A lei estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crimes”, diz a ação. Segundo os advogados, a falta de especificidade dos crimes anistiados deixa a critério do Judiciário essa definição, contrariando a previsão constitucional de que “não há crime sem lei anterior que o defina”, conforme artigo 5º, inciso XXXIX da CF.

Essa noção, para a OAB, cria uma distorção. “Há os que praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e condenados. Mas há, também, os que cometeram delitos (…) deixados à discrição do Poder Judiciário, conforme a orientação política de cada magistrado. Esses últimos criminosos não foram jamais condenados nem processados”, afirma a ação em relação aos militares. Esse desequilíbrio fere o princípio da isonomia, diz a Ordem. “Crime conexo em Direito Penal e Processual Penal é o que o Código de Processo Penal diz que é: um crime que está vinculado a outro, que foi cometido para esconder outro, normalmente pelo mesmo agente”, afirma o advogado Belisário dos Santos Junior, que defendeu presos e perseguidos políticos e hoje é membro da Comissão Internacional de Juristas da Organização das Nações Unidas.

Em parecer dirigido ao Supremo, a AGU refuta o argumento. Para ela, a “anistia geral ou absouta não conhece exceção de crimes ou de pessoas, nem se subordina a limitações de qualquer espécie”. O documento defende a norma como parte da negociação entre a sociedade e o regime que permitiu a transição para a democracia. “Ambos os lados seriam beneficiados, evitando-se qualquer espécie de revanchismo no novo governo” — clique aqui para ler o parecer.

Essa ideia foi reconhecida pelas próprias entidades de advogados antes mesmo da sanção da lei. Um parecer da OAB enviado em agosto de 1979 ao Senado pelo então conselheiro e futuro ministro do STF José Paulo Sepúlveda Pertence acerca do projeto de lei afirmava que a amplitude do perdão geral e irrestrito “tem o único sentido de prodigalizar a anistia aos homicídios, violências e arbitrariedades policiais de toda a sorte, perpetrados nos desvãos da repressão política”. O parecer, aprovado pelo Conselho Federal — clique aqui para ler —, afirma também que a lei, pela primeira vez, amplia “o conceito de crime comum conexo a crimes políticos, para beneficiar com a anistia, não apenas os delitos comuns de motivação política, mas também os que tenham com os políticos qualquer tipo de relação”.

Na mesma linha outro documento, este emitido pelo Instituto dos Advogados do Brasil, foi enviado ao Senado em 15 de agosto de 1979. O advogado Sérgio Tostes, em nome da entidade, afirma em parecer que a lei “deve também abrangeer todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estiveram envolvidos no processo de exacerbação de ânimos”.

É o que confirma o também conselheiro da OAB na época, Ives Gandra da Silva Martins. “A anistia, da forma como foi aprovada, foi feita a pedido dos guerrilheiros, e a OAB lutou por ela. Se fosse pedida uma anistia só para um dos lados, com certeza não sairia”, lembra. Segundo ele, no período, embora a pressão no país por uma anistia fosse geral, a Ordem foi a grande responsável pela conquista. “Éramos os únicos pulmões da sociedade na época”, conta o jurista, que foi membro da Anistia Internacional no Brasil entre 1980 e 1981.

De acordo com o advogado criminalista Arnaldo Malheiros Filho, em artigo publicado na ConJur em 20 de agosto do ano passado, “no Brasil, a punibilidade pela prática de qualquer crime se extingue pela prescrição no prazo máximo de 20 anos, com exceção do racismo ou da ação de grupos armados contra o Estado democrático (artigo 5º, XLII e XLIII). A imprescritibilidade, criada pela Carta de 1988, só vale a partir de sua vigência. Como a tortura na repressão política é anterior a 1988 e mais de 20 já passaram, os delinquentes têm assegurada a prescrição. Ainda que se tente enquadrar os torturadores na categoria dos ‘grupos armados’, o prazo já decorreu, porque anterior à norma penal prejudicial para o acusado”.

O argumento é compartilhado pela AGU. Em seu parecer, o órgão afirma que os 29 anos que se passaram desde os fatos já teriam ultrapassado o prazo prescricional máximo previsto no Código Penal, que é de 20 anos. “A Constituição da República somente qualifica como imprescritíveis os crimes de racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático”, diz o documento.

O intuito de rediscutir a Lei de Anistia não é fazer valer uma regra que ainda não existia na época, segundo Belisário dos Santos Junior. “Eles nunca poderão ser processados por tortura, porque não havia esse crime, mas poderão ser processados por homicídio, lesão corporal, atentado pessoal, ameaça, sequestro, que são crimes permanentes. Quando em 1988 nós trouxemos para o artigo 5º da Constituição as garantias individuais — que na Constituição de 1946 estavam no artigo 141, na de 1967 foram para o artigo 151, na de 1969 foram para o artigo 153 —, foi porque se quis dar maior prevalência para os Direitos Humanos”, explica o advogado.

Um dos argumentos usados pela Advocacia-Geral da União para alegar a impossibilidade de incriminação dos torturadores é a falta de uma norma jurídica na época que impedisse a anistia a crimes de sangue, e de lei que definisse a tortura como crime. A proibição entrou definitivamente no ordemento brasileiro com a Constituição de 1988. Para a OAB, porém, a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, alterada no fim da II Guerra Mundial, prevê, em seu artigo V, que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. “A base jurídica do Direito Internacional assenta sobre tratados e usos e costumes. A normativa internacional contra crimes de genocídio vem desde a Carta da ONU, da qual o Brasil é signatário”, afirma Belisário. A professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e do Paraná Flávia Piovesan concorda. “O costume internacional, independentemente de o Estado ser parte, alcança toda a comunidade mundial”, diz a especialista em Direitos Humanos, que também é procuradora do estado de São Paulo.  

A OAB lembra, ainda, na ação que propôs, que a Corte Americana de Direitos Humanos, à qual o Brasil se vinculou em 1998, já decidiu em outros casos que não tem efeito as auto-anistias decretadas por governantes. “Se houver resiliência, e o Brasil não aceitar a jurisprudência, vai ser criado um conflito cujo fim será na Organização dos Estados Americanos”, acrescenta Belisário dos Santos Júnior. “Hoje há concerto internacional da OEA e da ONU de que as leis de anistia devem ser invalidadas, por afrontarem os Direitos Humanos”, diz a professora Flávia Piovesan. “Elas criam situação de injustiça continuada, um continuismo autoritário mesmo na ordem democrática”. A especialista lembra que a Corte Americana já invalidou as anistias pós-ditadura concedidas no Chile, no Peru e no Uruguai. As decisões também influenciaram a corte suprema argentina a invalidar a anistia concedida no país. “Se o STF entender que a Lei de Anistia abrangeu também os criminosos, militares e policiais, iremos recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos para denunciar o Estado brasileiro”, avisa o professor Fábio Konder Comparato.

“Ninguém pode se auto-perdoar. Aquilo foi feito em um momento em que, se houvesse porventura o perdão ao torturador, teria sido em um ambiente de coação”, diz o constitucionalista Celso Antonio Bandeira de Mello. “Nós não podemos confundir um ato de insurgência e de defesa do país contra a tirania com uma tortura”.

Para o presidente da OAB, Cezar Britto, as torturas a que foram submetidos os presos da ditadura jamais poderão ser vistas como crimes políticos porque foram praticados “quando um lado dos que combatiam já estava detido e derrotado”. Segundo ele, “a lei abrange apenas os lados que combateram”.

“Todas as representações penais possuem o mesmo entendimento: a de que os crimes de homicídio, tortura, estupro e desaparecimentos forçados cometidos pelo regime militar contra opositores da ditadura militar são crimes contra a humanidade, conforme convenções internacionais de Direitos Humanos às quais o Brasil está vinculado”, afirmaram os procuradores Eugênia Fávero, Marlon Alberto Weichert e Fábio Elizeu Gaspar, do Ministério Público paulista, em nota enviada à ConJurclique aqui para ler.

Na opinião do ex-deputado federal e advogado de presos políticos Luiz Eduardo Greenhalgh não há mais como o Estado punir os culpados do ponto de vista administrativo. Caso o Supremo reconheça que as torturas não foram alcançadas pela anistia, cada situação deverá ser resolvida na Justiça. “O máximo a que se pode chegar é a algo semelhante ao que ocorreu na África do Sul, onde foi instituída uma comissão da memória e da verdade sobre o apartheid , presidida pelo bispo Desmond Tutu, que acabou recebendo o prêmio Nobel da Paz pelo trabalho. Com base nos depoimentos das pessoas, eles foram reconstruindo a história e muita gente foi estimulada a contar a verdade. Quando a comissão verificava que o depoimento de uma pessoa era grave, passava-se o caso à Justiça. Ainda é possível fazer isso no Brasil. De outra forma, é difícil que a população não entenda as punições aos antigos integrantes dos organismos de segurança como revanchismo”, disse.

Henrique Maués, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil concorda. Para ele, os familiares das vítimas do regime devem ter acesso às informações da época. "Todos os arquivos da ditadura deveriam ser abertos, não só para revelar os nomes das pessoas ligadas às Forças Armadas e à Polícia Federal, que praticaram atos de tortura, atos de violência contrários aos direitos humanos mas, também, os civis que apoiaram todos esses atos inclusive financeiramente", afirma. 

Regra vazia
Hoje, há quem entenda que a Lei de Anistia teve o intuito apenas de proteger os militares — e não de favorecer a ambos os lados. A Lei 6.620, sancionada em dezembro de 1978, reduziu as penas para os crimes contra a Segurança Nacional, o que esvaziou os efeitos da Anistia, segundo o advogado Belisário dos Santos Junior. “Muito mais gente saiu da prisão por causa da revisão das penas do que com a anistia”, diz. Já segundo a OAB, quando a Lei de Anistia chegou, havia poucos presos políticos a beneficiar. “Em 1979 quase todos os que se haviam revoltado contra o regime militar com armas na mão já haviam sido mortos”, diz a ação.

O problema da Lei de Anistia, para Greenhalgh, não estava exatamente na lei, mas no cumprimento da norma. “Os direitos decorrentes da anistia não foram executados porque o Estado estava na mão dos militares. Ninguém usufruiu da Anistia em 1979, a não ser as pessoas que saíram dos presídios e os exilados que puderam voltar”, afirmou em entrevista à ConJur. “Nós conquistamos a anistia durante o regime militar, mas não levamos. Se nós tivéssemos conquistado a anistia depois da queda do regime militar, dentro de cinco anos o assunto se encerrava. Mas o Estado foi perverso e deu com uma mão para tirar com a outra”.

Segundo a OAB, o que falta à Lei de Anistia é legitimidade. Embora o perdão a torturadores tenha sido contestado por parlamentares, a lei teria sido aprovada devido à maioria governista do partido Arena no Congresso — o que se devia, em grande parte, aos senadores nomeados pelo presidente da República, que representavam um terço do total na casa, os chamados “senadores biônicos”.

Resultado prévio
Embora a ação da OAB ainda aguarde o voto do ministro-relator Eros Grau para ser colocada na pauta do Plenário do STF, os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes já mostraram abertamente o que pensam sobre o caso, conforme levantamento feito pelo Anuário da Justiça 2009, produzido pela ConJur. Ambos entendem que a lei se aplica aos dois lados da disputa, por ser ampla, geral e irrestrita. “O progresso e o avanço cultural pressupõem virada de página. Não tenho saudade do passado e não quero revivê-lo ainda que seja no papel”, disse Marco Aurélio.

O ministro Gilmar Mendes entende que “a discussão sobre imprescritibilidade contém uma armadilha, porque levada aos seus termos definitivos, pode colocar em xeque tanto a imprescritibilidade dos crimes de tortura, quanto a do crime de terrorismo”. A posição dos dois ministros é majoritária na cúpula do Judiciário brasilerio. No levantamento do Anuário, que entrevistou os 89 ministros do STF e dos tribunais superiores, metade preferiu não se manifestar sobre a necessidade de se fazer a revisão da Lei de Anistia. Dos que responderam, 76% foram contra a revisão e 24% a favor.

Para o presidente do STF, a questão básica “é que se faz uma distinção entre eventuais crimes perpetrados por agentes de estado e militantes políticos. Para um órgão judicial imparcial, como é o Supremo Tribunal Federal, é difícil distinguir assassinatos ou barbaridades feitas por um ou por outro agente, seja ele privado ou público”, disse em entrevista à ConJur. Para o ministro é complicado repudiar a tortura praticada pelo agente público no quartel e, ao mesmo tempo, defender o assalto a banco ou o atentado a bomba feito pelo militante político.

Essa simetria, no entanto, não existe, segundo Luiz Eduardo Greenhalgh. “As pessoas anistiadas foram punidas, processadas e violentadas nas suas prerrogativas individuais de seres humanos, inclusive. Já as pessoas que torturaram, saíram impunes, sem nenhum processo. Não há nenhum repressor que tenha sido condenado por ter torturado, matado e causado desaparecimentos na época. Por isso, a situação jurídica dos perseguidos é distinta da dos perseguidores”, afirma. No Brasil, 144 pessoas desapareceram, 453 foram mortas em aparelhos de segurança e 10 mil foram exiladas. Também foram processados 5 mil presos.

O ponto de vista, na expressão do ministro Marco Aurélio, é de quem está com o cabo do chicote na mão. Quando o general-presidente João Figueiredo propôs a anistia, o advogado Dalmo Dallari, como representante da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, foi contra o projeto. Ele não admitia que quem tivesse praticado os chamados "crimes de sangue" fossem beneficiados. À época, essa expressão era utilizada para designar os "subversivos" que defenderam suas ideias de arma na mão.

A corte já julgou questão análoga. No início de agosto, os ministros decidiram autorizar a extradição do major Manuel Juan Cordeiro Piacentini, acusado do sequestro de um cidadão argentino em 1976. Piacentini foi integrante da Operação Condor, formada pelas ditaduras militares do Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, com o objetivo de caçar inimigos dos regimes naqueles países entre os anos de 1970 e 1980. O Supremo entendeu que o crime de sequestro não é considerado político para fins de extradição e sua pena e ação penal não estão sujeitas a prescrição. O crime de desaparecimento forçado de pessoas equivale ao crime de sequestro no Brasil e, nesse caso, “não há que se falar em prescrição, pois se trata de crime permanente tanto no Brasil como na Argentina”, como afirmou o então procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza.

Favoráveis à extradição, inicialmente, foram os ministros Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa e Carlos Britto. O julgamento foi então suspenso pelo pedido de vista do ministro Eros Grau, com a alegação de que pretendia analisar o pedido de extradição juntamente com a ADPF da OAB, da qual é relator. No início do mês, ele acabou votando juntamente com os demais. Ficaram vencidos os ministros Marco Aurélio (relator) e Menezes Direito. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio indicou sua posição ao afirmar que “anistia é esquecimento, perdão no sentido maior” e “bilateral”.

Questionado se o silencio sobre a Lei de Anistia brasileira não seria prejudicial à democracia, o ministro responde: “Ninguém é saudosista do período anterior. Mas é o caso de perguntar-se: por que houve a Lei de Anistia? Justamente para apagar o passado. Interessa à sociedade brasileira voltar àquela situação de conflito?”

Já outro ministro, que prefere não se identificar, revelou à  ConJur inclinar-se por negar a vigência da anistia para crimes de tortura. “Na época, a ideia era que a lei fosse ampla, geral e irrestrita. Mas tortura é tão repugnante, que gera nas pessoas ânsia de punição. Todos os crimes prescrevem, menos a tortura”, afirmou. 

Reação em cadeia
A decisão do Supremo influenciará diretamente os casos em trâmite na Justiça contra antigos comandantes do aparato repressivo do regime. É o caso dos coroneis reformados do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, ex-comandantes do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações e Defesa Interna. Ambos são acusados, em processos que tramitam na Justiça, por violações dos Direitos Humanos durante a ditadura. Se o STF entender que os crimes não foram anistiados, ambos poderão passar o resto da vida na cadeia, e ter de ressarcir aos cofres da União os gastos do governo com indenizações a vítimas e familiares de vítimas do regime.

Em decisão de primeira instância, a Justiça de São Paulo declarou Ustra culpado pelo crime de tortura no dia 9 de outubro do ano passado. A condenação teve efeito declaratório e foi movida na esfera civil. O juiz da 23ª Vara Cível de São Paulo, Gustavo Santini Teodoro, afirmou na sentença que a Lei da Anistia vale para a esfera penal mas não interfere em outras responsabilidades, o que significa que sua decisão não contraria a Lei da Anistia.

Em setembro de 2008, porém, o TJ paulista extinguiu outro processo movido contra Ustra pela família do jornalista Luiz Eduardo Merlino, que foi detido pelo DOI-Codi e torturado até a morte. O processo foi extinto sem ter o mérito analisado, pois os desembargadores não consideraram apropriado o instrumento de ação declaratória para o caso.

A controvérsia do caso Ustra também se estende pela Justiça federal. O Ministério Público Federal em São Paulo move ação em que o coronel e a União são réus. A intenção é responsabilizar civilmente a União e os ex-coroneis por 64 mortes ocorridas durante a ditadura nas dependências do DOI-Codi. Entre as vítimas, estava o jornalista Vladimir Herzog, assassinado em 25 de outubro 1975 quando era diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura, e Luiz José da Cunha, conhecido como “Crioulo”, assassinado em 13 de julho de 1973. Chamada a se manifestar, a Advocacia-Geral da União sustentou que a Lei 9.104/95, que concedeu indenização à família dos mortos e desaparecidos na ditadura, “traz um espírito de reconciliação e de pacificação nacional”, assim como a Lei 6.683/79 — clique aqui para ler.

Em novembro do ano passado, o juiz Clécio Braschi, da 8ª Vara Cível Federal, suspendeu a ação. Ele afirmou que é preciso esperar o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a Lei de Anistia e sobre a política de sigilo de documentos. O MPF recorreu para pedir em liminar o fim da suspensão. A desembargadora Cecília Marcondes, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, decidiu arquivar a Ação Civil Pública.

A juíza federal Paula Mantovani Avelino, da 1ª Vara Criminal de São Paulo, decidiu arquivar ações semelhantes. Ela homologou o pedido de arquivamento dos autos formulado pelo representante do Ministério Público Federal.

Em maio de 2008, seis procuradores do MPF em São Paulo — Eugênia Augusta Gonzaga Fávero, Marlon Alberto Weichert, Adriana da Silva Fernandes, Luciana da Costa Pinto, Sérgio Gardenghi Suiama e Luiz Fernando Gaspar Costa — ajuizaram Ação Civil Pública contra a União e os dois ex-militares Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, responsabilizando-os pela morte de Herzog.  Os procuradores sustentaram que a morte do jornalista nas dependências do DOI-Codi caracterizava a prática de crime contra a humanidade. E alegaram que esse tipo de delito é imprescritível.

Parecer assinado pelo procurador Fábio Elizeu Gaspar, também do MPF de São Paulo, porém, posicionou-se contra a abertura da Ação para investigar a morte de Herzog. O seu entendimento é que, com a Lei de Anistia, de 1979, os acusados do crime não podem mais ser condenados criminalmente.

Paula Mantovani afirmou que nos dois casos (Herzog e Crioulo) os crimes já prescreveram e afastou a possibilidade de enquadrá-los como crimes contra a humanidade. “A única norma em vigor no plano internacional a respeito do tema é aquela contida na Convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e dos crimes contra a humanidade, vigente a partir de 11 de novembro de 1970, uma vez que o relatório da Comissão de Direito Internacional, criada para identificar os princípios de Direito Internacional reconhecidos no estatuto do Tribunal de Nuremberg e definir quais seriam aqueles delitos, nunca chegou a ser posto em votação [no Brasil]”, afirmou. A juíza concluiu que, internamente, também não existe norma jurídica em vigor que tipifique delitos contra a humanidade.

Quanto à prescrição, em ambos os casos, já se passaram mais de 35 anos, tempo superior ao da pena máxima fixada abstratamente para homicídio. Paula Mantovani explicou que “não há que se falar, na presente hipótese, na caracterização do genocídio, crime previsto nos artigos 1º e 2º, da Lei 2.889/56, uma vez que ausente o elemento subjetivo consistente na intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

“De qualquer forma, ainda que se reconhecesse a existência desse último delito, a pena máxima aplicada seria a do já citado artigo 121, parágrafo 2º, do Código Penal, ou seja, de trinta anos de reclusão. Referida sanção, consoante disposição prevista no artigo 109, I, do mesmo diploma legal, prescreve em vinte anos, lapso de tempo já decorrido, mesmo que se iniciasse a contagem em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Carta magna em vigor”, concluiu.

ADPF 153  
ACP 2008.03.00.046274-0 (Tribunal de Justiça de São Paulo)
Processo 2008.61.81.012372-1 (Justiça Federal de São Paulo) 
Processo 2008.61.81.013434-2 (Justiça Federal de São Paulo)

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