Tolerância religiosa

Rejeitado pedido para tirar crucifixo de locais públicos

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21 de agosto de 2009, 11h26

A presença de símbolos religiosos em prédios públicos não ofende os princípios constitucionais da laicidade do estado nem de liberdade religiosa. Com esse entendimento, a Justiça Federal em São Paulo rejeitou pedido do Ministério Público Federal (MPF) para a retirada dos símbolos dos prédios públicos. A decisão, em caráter liminar, é da juíza federal Maria Lúcia Lencastre Ursaia, da 3ª Vara Cível Federal de São Paulo, em Ação Civil Pública, iniciada com representação de Daniel Sottomaior Pereira.

Presidente de uma Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, Sottomaior alegou ter se sentido ofendido com a presença de um “crucifixo” num órgão público. Em 2007, ele já havia representado ao Ministério Público Estadual, reclamando providências para retirada de um crucifixo no plenário da Câmara Municipal de São Paulo. O promotor de Justiça Saad Mazloum indeferiu a representação. Decisão confirmada pelo Conselho Superior do Ministério Público.

Agora, o MPF entendeu que a foto do crucifixo mostrada pelo autor representava desrespeito ao princípio da laicidade do Estado, da liberdade de crença, da isonomia, da impessoabilidade da Administração Pública e feria o princípio processual da imparcialidade do Poder Judiciário.

Para a juíza, o Estado laico não deve ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anti-clerical. “O Estado laico foi a primeira organização política que garantiu a liberdade religiosa. A liberdade de crença, de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico e não como oposição a ele. Assim sendo, a laicidade não pode se expressar na eliminação dos símbolos religiosos, mas na tolerância aos mesmos”, afirmou a juíza em seu despacho cautelar.

Na opinião da juíza, num país como o Brasil, que teve formação histórico-cultural cristã, a presença de símbolos religiosos em espaços públicos é natural, “sem qualquer ofensa à liberdade de crença, garantia constitucional, eis que para os agnósticos ou que professam crença diferenciada, aquele símbolo nada representa assemelhando-se a um quadro ou escultura, adereços decorativos”.

A juíza federal entendeu que não ocorreram as alegadas ofensas à liberdade de escolha de religião, de adesão ou não a qualquer seita religiosa, nem à liberdade de culto e à liberdade de organização religiosa, pois são garantias previstas na Constituição Federal.

“A laicidade prevista na Constituição veda à União, Estados, Distrito Federal e Municípios estabelecerem cultos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com elas ou seus representantes relação de dependência ou aliança, previsões que não implicam em vedação à presença de símbolos religiosos em órgão público”. Por fim, em exame preliminar, a juíza negou o pedido do MPF. (VPA)

Leia a decisão da Justiça Federal:

Ação Civil Pública nº 2009.61.00.017604-0

Manifestação prévia da Requerida às fls. 70/107.Trata-se de ação civil pública, com pedido de tutela antecipada, tendo por objeto a condenação da União Federal "em obrigação de fazer consubstanciada na retirada de todos os símbolos religiosos (crucifixos, imagens, etc.) ostentados nos locais proeminentes , de ampla visibilidade e de atendimento ao público nos prédios públicos da União no Estado de São Paulo", fl. 06.

Informa o Ilustre representante do MPF que foi instaurado na Procuradoria Regional dos Direitos do cidadão o procedimento administrativo n. 1.00.000.001411/2007-41 após representação protocolizada pelo cidadão Daniel Sottomaior Pereira, que teria se sentido ofendido com a presença de "crucifixo" na sede do Tribunal Regional Federal (fls. 7 a 62).

Representação similar do mesmo cidadão Daniel Sottomaior Pereira foi oferecida ao Ministério Público Estadual pedindo a intervenção do Parquet para compelir o Presidente da Câmara Municipal de São Paulo a retirar o crucifixo existente em seu plenário. A representação foi arquivada pelo promotor de justiça Saad Mazloum e confirmado seu arquivamento pelo Conselheiro Walter Paulo Sabella.


Também junto ao Conselho Nacional de Justiça o mesmo cidadão Daniel Sottomaior Pereira protocolou os pedidos de providências nº 1344 (Requerido Presidente do TJCE), nº 1345 (Requerido Presidente do TJMG), nº 1346 (Requerido Presidente do TRF 4ª Região) e nº 1362 (Interessado TJ Santa Catarina) todos julgados improcedentes nos termos do voto divergente do Conselheiro Oscar Argollo, durante a 14ª Sessão Extraordinária do CNJ, ocorrida em 06/07/2007.

O ilustre representante do MPF entendeu que a foto do crucifixo apresentada pelo autor da representação representava conduta de afixar símbolos religiosos em locais públicos em desrespeito ao princípio da laicidade do Estado, da liberdade de crença, da isonomia, bem como ao princípio da impessoabilidade da Administração Pública e ao princípio processual da imparcialidade do Poder Judiciário.

Alegou, em apertada síntese, que quando o Estado ostenta um símbolo religioso resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil, afrontando a Constituição Federal, em especial o disposto no artigo 5º, caput, e inciso VI, também o artigo 19, inciso I, estaria desrespeitado com a manutenção de símbolos religiosos. Acosta documentos estatísticos do censo demográfico de 2000 elaborado pelo IBGE constando a proporção da população brasileira quanto à religião católica (73,8%), evangélica (15,41%), sem religião (7,4%), demais religiões (3,4%).

Observo que a laicidade de nosso país não é novidade da Constituição Federal de 1988. Antes mesmo da promulgação da Constituição de 1891, o Decreto nº 119-A, de 07/01/1890, determinava a separação entre Igreja e Estado. A Constituição da República de 1891 elevou a laicidade a princípio constitucional que foi reproduzido em todas as Constituições do Brasil que lhe sucederam (1934, 1937, 1946, 1967/69 e 1988).

Segundo os ensinamentos de nossos doutrinadores, o Estado laico não deve ser entendido como uma instituição anti-religiosa ou anti-clerical. Na realidade o Estado laico é a primeira organização política que garantiu a liberdade religiosa. A liberdade de crença, a liberdade de culto e a tolerância religiosa foram aceitas graças ao Estado laico e não como oposição a ele.

O Estado laico pode ser definido como a instituição política legitimada pela soberania popular em que o poder e a autoridade das instituições do Estado vêm do povo, tal conceito está intimamente ligado à democracia e ao respeito dos direitos fundamentais. Assim sendo, a laicidade não pode se expressar na eliminação dos símbolos religiosos mas na tolerância aos mesmos.

Em um país que teve formação histórico-cultural cristã é natural a presença de símbolos religiosos em espaços públicos, sem qualquer ofensa à liberdade de crença, garantia constitucional, eis que para os agnósticos ou que professam crença diferenciada, aquele símbolo nada representa assemelhando-se a um quadro ou escultura, adereços decorativos.

Entendo que não ocorre a alegada ofensa à liberdade de crença, que significa a liberdade de escolha de religião, de aderir a qualquer seita religiosa ou a nenhuma, que não há ofensa à liberdade de culto e nem à liberdade de organização religiosa, garantias previstas no artigo 5º, inciso VI.

A laicidade prevista no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, veda à União, Estados, Distrito Federal e Municípios estabelecer cultos ou igrejas, subvencioná-las, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com elas ou seus representantes relação de dependência ou aliança, previsões que não implicam em vedação à presença de símbolos religiosos em órgão público.

Também não ocorre ofensa ao princípio da impessoabilidade da Administração Pública eis que não há detrimento ou favoritismo a grupos ideológicos quando todos são tratados com Justiça sem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Ressalto que o princípio da imparcialidade do julgador representa a consagração do dever de aplicar objetivamente o direito ao caso concreto e que o juiz seja subjetivamente imparcial, isto é, estranho à causa e às partes.


Tal princípio é, diariamente , honrado em nossos Tribunais e de que é modelo exemplar o Colendo Supremo Tribunal Federal, no caso emblemático, ora lembrado por ser mais recente, do julgamento da liminar relativa à Arguição de descumprimento de preceito fundamental 54-8-DF. Vale lembrar que esta Egrégia Suprema Corte entende por bem manter um crucifixo em pau-brasil, obra de arte de Afredo Ceschiatti, manifestação cultural, forjada pela tradição.

Peço vênia para reportar-me a um dos inúmeros fundamentos do R. voto do Conselheiro Oscar Argollo prolatado no julgamento dos pedidos de providências junto ao CNJ já retro referidos, "in litteram":"Entendo, com todas as vênias, que manter um crucifixo numa sala de audiências públicas de Tribunal de Justiça não torna o Estado – ou o Poder Judiciário – clerical, nem viola o preceito constitucional invocado (CF. art. 19, I), porque a exposição de tal símbolo não ofende o interesse público primário (a sociedade), ao contrário, preserva-o, garantindo interesses individuais culturalmente solidificados e amparados na ordem constitucional, como é o caso deste costume, que representa as tradições de nossa sociedade.

Por outro lado, não há, data venia, no ordenamento jurídico pátrio qualquer proibição para o uso de qualquer símbolo religioso em qualquer ambiente de órgão do Poder Judiciário, sendo da tradição brasileira a ostentação eventual, sem que, com isso, se observe repúdio da sociedade, que consagra um costume ou comportamento como aceitável. O estudo dos costumes, a ética (g. ethos), seja diante do caráter da ação, seja pelo modo de ser ou de se comportar do agente diante de um fato, é construído através dos tempos e distingue os valores e atribui a idéia de comportamento autorizado ou repudiado.

O costume (l. consuetudo), como fonte e regra do direito, tem por fundamento de seu valor a tradição e não a autoridade do legislador. Aliás, o costume é o uso geral, permanente e notório, observado por todos na convicção de corresponder a uma necessidade jurídica.(…) Portanto, se costume é a palavra chave para a compreensão dos conceitos de ética e moral, a tradição se insere no mesmo contexto, uma vez que deve ser vista como um conjunto de padrões de comportamentos socialmente condicionados e permitidos. E não podemos ignorar a manifestação cultural da religião nas tradições brasileiras, que hoje não representa qualquer submissão ao Poder clerical".

Por fim, inobstante o Preâmbulo da Constituição Federal não ter força normativa (como já decidiu o E. STF – Pleno – ADIN nº 2076/AC – Rel. Min. Carlos Velloso – 15/08/2002 – Informativo STF nº 277) o Prêambulo de nossa Constituição Federal é definido como documento de intenções da Lei Maior, representando a proclamação de princípios que demonstra suas justificativas, objetivos e finalidades , servindo de fonte interpretativa para dissipar as obscuridades das questões práticas e de rumo para o governo e a sociedade.

As Constituições brasileiras, com exceção da Constituição Republicana de 1891 e a de 1937, invocaram em seus preâmbulos, expressamente, a proteção de Deus. A nossa Constituição Federal tem seu preâmbulo assim expresso:"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".

Desta forma, o legislador constituinte, invocando a proteção de Deus ao promulgar nossa Constituição Federal, demonstrou profundo respeito ao Justo para conceber a sociedade justa e solidária a que se propôs.Com tais fundamentos entendo neste exame preliminar, através deste meio de controle difuso , não ocorrer a alegada ofensa aos princípios constitucionais mencionados na exordial e indefiro a medida liminar pleiteada. P.R.I.



Leia a liminar do promotor de Justiça Saad Mazloum:

Não há dúvidas de que o Brasil é um Estado laico. No entanto, o crucifixo na parede do plenário da Câmara nem de longe traz o significado que quer lhe emprestar o autor da representação. Significa sim, a crucificação de Jesus Cristo, e é também um símbolo da fé cristã. Mas não é possível concluir que a presença da imagem no local tenha por objetivo “divulgar crenças religiosas”.

Muitos – vereadores e agentes públicos em geral – e desde muito, freqüentam diariamente o local e, sendo evangélicos, judeus, muçulmanos, espíritas, budistas, dentre outras religiões, ateus e agnósticos também, nem por isso sentiram-se intimidados, ameaçados, agredidos, ofendidos.

A presença do crucifixo também não sugere “que seus servidores [da Câmara] estão submetidos a outros princípios que não aqueles que regem a administração pública…”. E nem é verdade que cause constrangimento “nos cidadãos que professam diferentes filosofias de vida”, afirmação feita pelo autor da representação como se fosse ele o porta-voz dos que professam outras religiões ou filosofias de vida. Pois, como dito, cidadãos de diferentes credos jamais mostraram-se incomodados, ou vítimas de preconceito religioso, com a presença da imagem, um símbolo religioso que também representa a paz.

A tolerância religiosa e filosófica no Brasil tem sido a marca para uma convivência pacífica entre as diversas crenças.

A vingar pretensões como a do autor da representação, não será difícil prever novos movimentos, ou os próximos passos, mais arrojados: em breve serão os terços e colares com crucifixos. Depois os crucifixos no alto das igrejas, e depois as próprias igrejas. Depois será a vez do quipá usado por judeus. Suas

sinagogas. E depois o lenço que envolve os cabelos das senhoras muçulmanas. E as masbahas dos que fizeram o haj, a peregrinação para Meca. Por fim, teremos movimentos mais ousados ainda: alguém, ou uma espécie de talibã tupiniquim, sugerirá ou representará pela implosão da estátua do Cristo Redentor. E então, finalmente, atingiremos o “baluarte da liberdade nacional”, seremos um país verdadeiramente democrático.

Estes todos os motivos pelos quais, com a devida vênia, entendemos que não há justa causa para a instauração de qualquer procedimento investigatório.

Nestes termos, INDEFIRO a representação.

Intimese o autor da representação, com cópia desta manifestação, podendo

o mesmo apresentar recurso nestes autos, no prazo de 10 dias, ao Egrégio Conselho Superior do Ministério Público. Findo este prazo, com ou sem recurso, conclusos.

São Paulo, 02 de março de 2007.

Saad Mazloum
Promotor de Justiça da Cidadania

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