Justiça em números

"Produtividade e congestionamento aumentam em SP"

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15 de agosto de 2009, 7h37

O funcionamento da Justiça paulista está dividido em dois universos antagônicos. Enquanto a segunda instância ostenta seguidos recordes de processos julgados e, pela primeira vez em cinco anos, uma redução no estoque de recursos pendentes, os juízes de primeiro grau se atolam na quantidade cada vez maior de novos processos, o que é agravado pela queda na média de decisões por magistrado. O motivo, segundo os próprios magistrados, está nas convocações dos juízes para darem apoio à segunda instância, cada vez mais aparelhada. Em consequência, de 2004 para cá, o estoque de casos não julgados no primeiro grau cresceu 43%, chegando a 14,6 milhões de ações.

Quem vê isoladamente os resultados da corte paulista nos relatórios do programa Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, pode não entender as frequentes críticas à lentidão do maior Judiciário do país. Desde 2007, os desembargadores e juízes de segundo grau — os chamados pinguins — vêm julgando mais do que a quantidade de recursos recebidos. Entraram 490 mil processos em 2007 e foram julgados 493 mil. No ano passado, foram ajuizados 548 mil recursos e apreciados 553 mil. Pela primeira vez, o estoque acumulado caiu. Eram 582 mil ações pendentes há dois anos. Em 2008, o número registrado foi de 580 mil.

Jeferson Heroico
Evolução da segunda instância da Justiça paulista - Jeferson Heroico

Embora sutil, a redução mostra que os esforços empreendidos têm dado resultados. “A produção em 2008 foi superior à média nacional”, diz o desembargador Carlos Teixeira Leite Filho, da 4ª Câmara de Direito Privado. Segundo ele, além dos mutirões organizados pela corte, os magistrados têm trabalhado inclusive nos fins de semana para acertar o passo. “A imprensa dá manchetes sobre quanto o tribunal gasta, com enfoque negativo, mas ninguém mostra que todos estão se esforçando”, critica. Para ele, o fato de São Paulo gastar um quarto de tudo o que é consumido em recursos na Justiça Estadual do país — 92% com folha de pagamento — tem de ser avaliado no contexto do tamanho da demanda no estado.

E o contexto é colossal. Só em segundo grau, apenas em 2008, tramitaram 1,1 milhão de ações. Somadas ambas as instâncias das Justiças ordinária e Especial, no ano passado, o estado foi responsável por um terço dos ajuizamentos estaduais recebidos no país e por um terço das decisões. O TJ-SP tem a maior média de decisões por magistrado: 2 mil. Está atrás apenas da Justiça gaúcha, em que cada julgador deu 3 mil decisões no ano passado. Um quinto dos magistrados estaduais está em São Paulo.

Somada, a carga de trabalho nas Justiças ordinária e Especial em São Paulo é de longe a maior. Em 2008, em primeiro e segundo graus, em média dez mil casos esperavam decisão nas mãos de cada julgador. No Rio Grande do Sul, segundo colocado, eram sete mil. Santa Catarina (seis mil), Mato Grosso do Sul (5,4 mil) e Paraná (4,9 mil) vêm em seguida.

Mas os avanços já são evidentes na segunda instância. O volume de recursos aumentou 358% desde 2004, enquanto o aumento na produtividade foi de 491%. No país todo, a produtividade cresceu 137%. Para 2009, 575 mil casos ficaram por julgar, número que também não tem comparação em outros tribunais.

Na prática, os números mostram que 49% dos processos que entraram no ano passado tiveram um fim em segundo grau. O tribunal paulista tem um índice de congestionamento — ações que aguardam só a decisão final do julgador — de 51% dos casos, maior, no entanto, que a média nacional, que foi de 43% em 2008. O tribunal está entre os cinco mais ágeis do país, que conseguiram julgar mais do que a quantidade de novos recursos no ano passado, avançando sobre os estoques. Os demais foram Roraima, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Acre.

Tamanha virada no jogo tem uma explicação. A corte tem hoje o dobro do tamanho em número de julgadores. Além dos 348 desembargadores, trabalham no tribunal 78 juízes substitutos e 303 juízes convocados, segundo números do Anuário da Justiça Paulista 2008. “Cada desembargador tem dois assistentes jurídicos e dois escreventes, o que aumenta o rendimento”, diz o ex-presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Celso Limongi, hoje atuando como convocado no Superior Tribunal de Justiça. “Juízes de primeiro grau não têm assessores”, compara. Segundo o CNJ, cada magistrado em São Paulo tem, em média, 19 servidores efetivos para auxiliá-lo — o maior índice do país, que tem como média 13 servidores efetivos por magistrado.

A cobrança sobre os membros da corte também é mais implacável. Todos os meses, a Corregedoria do tribunal publica, no Diário da Justiça, a lista dos desembargadores que não cumpriram as metas determinadas pela Presidência. A chamada “coluna social” exibe os nomes dos atrasados logo na primeira página do informativo oficial. “É uma cobrança pública. Os desembargadores se preocupam com os prazos”, diz o presidente da Associação Paulista de Magistrados, o desembargador Henrique Nelson Calandra.

Problema na fonte
Na periferia da Justiça, porém, vem a primeira instância. Levando em conta a quantidade de processos que entraram e o número de decisões proferidas em 2008, os juízes paulistas estão entre os menos eficientes. São Paulo decidiu o equivalente a apenas 67% dos casos novos, ficando à frente somente de Tocantins (61%), Paraná (59%), Bahia (52%) e Alagoas (43%). A quantidade descomunal de de processos é a principal causa. A primeira instância, incluindo os Juizados Especiais, administra um acervo de 21,8 milhões de ações, 5,5 milhões ajuizadas só no ano passado.

Jeferson Heroico
Evolução da primeira instância da Justiça paulista - Jeferson Heroico

Mas não é só o volume de processos que afeta os números finais. Desde 2004, o crescimento no número de novos casos foi modesto — 11%. Houve até redução nos Juizados Especiais, que desde 2005 acumula queda contínua de 8% na quantidade de novas ações. Mesmo assim, o estoque de ações nas varas aumentou. Em 2004, era de 11 milhões. No fim de 2008, foi de 16,3 milhões — um inchaço de 48%.

A razão é o crescimento lento na quantidade de decisões definitivas dadas nos últimos anos (6%) e a queda na média de decisões por magistrado. Na Justiça ordinária, cada juiz deu 1,9 mil em 2004 e 1,7 mil no ano passado. Nos Juizados, se há cinco anos um julgador dava 18 mil sentenças por ano, hoje fecha o exercício com a metade. Mesmo assim, a média paulista de sentenças por magistrado ainda é maior que o índice nacional, que é de 1,4 mil decisões. Em 2008, foram proferidas 4 milhões de sentenças em São Paulo. As varas paulistas terminaram o ano com 84% de congestionamento e os Juizados Especiais, com 62%. A média nacional foi de 80% para a Justiça ordinária e 51% para os Juizados — abaixo dos números de São Paulo.

A taxa de recursos que sobem ao tribunal paulista também é maior que a média nacional, de 12%. No estado, 18% das decisões são mandadas para novo julgamento na corte.

Mundos diferentes
A análise fria dos números não revela as diferenças de trabalho enfrentadas por desembargadores, no segundo grau, e juízes, no primeiro, segundo Calandra. “A tramitação no primeiro grau deve enfrentar uma fase de conhecimento, onde se buscam provas, perícias e contraditório, o que é mais demorado. Quando vai ao segundo grau, a ação já tem sentença, o que facilita a análise”, explica.

Além disso, os juízes são a linha de frente que sofre a enxurrada de ações a cada mudança feita pelo Poder Executivo ou Legislativo, ou por empresas privadas. “Tudo é sazonal. Planos econômicos e crises financeiras fazem a demanda disparar. Até mesmo o fato de o governo estimular o cidadão a comprar um carro reflete no Judiciário, quando esse comprador não consegue arcar com as parcelas mensais do financiamento”, explica Teixeira Leite.

Apesar de não terem seus nomes publicados no Diário da Justiça quando decidem pouco, os juízes também têm de prestar contas à Corregedoria, explica o desembargador. “O corregedor cobra pessoalmente e pode tomar medidas como advertência, suspensão e até expulsão por falta de produtividade”, diz. Ele afirma que, para não ter de dar explicações à Corregedoria, cada juiz deve dar, no mínimo, até 120 sentenças de mérito não repetitivas e dois mil despachos. “Não pode haver atrasos sem justificativa.”

“O poder público também tem que pagar suas contas e não motivar litígios”, diz o desembargador, criticando o Executivo por grande parte do volume de processos na Justiça do estado. “Além de litigar livre de custas, recorre até da sombra.”

Para o ex-presidente do TJ-SP Celso Limongi, o motivo para a dificuldade nas varas está na má alocação dos servidores e na falta de informatização. “Um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas mostrou que os cartórios respondiam por 70% do tempo de tramitação dos processos. Com a digitalização, o cartório anda mais rapidamente”, diz. O ex-presidente conta ter determinado que cartórios atendessem a mais de uma vara, de forma a otimizar o tempo dos servidores. “Os funcionários não gostam porque não há um diretor do cartório.”

Na opinião de Limongi, a solução passa pela contratação de mais juízes e assessores e pela administração terceirizada das varas. “Dependemos de administradores profissionais. Juiz não é administrador. Embora ele pense que seja, sua especialidade é julgar”, diz. 

Solução unânime
Para dar conta da demanda, a solução que mais se ouve dos magistrados paulistas é a autonomia financeira do tribunal. “Os gastos com pessoal ficam com o Poder Executivo, enquanto os valores arrecadados em taxas e custas judiciais podem ser usados para investimento”, diz Calandra. Uma frente parlamentar foi organizada na Assembleia Legislativa do estado em 2007 para convencer o governo a conceder a autonomia ao TJ-SP, mas o projeto está devagar devido à resistência da Fazenda, que não aceita perder as receitas e ter de arcar com a maior parte da despesa. “Neste ano, o governo estadual cortou 40% do orçamento previsto pelo TJ-SP”, afirma o advogado Jarbas Machioni, conselheiro da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil. “O poder público é o maior usuário do Judiciário e, por isso, deveria permitir a autonomia”, defende.

Jeferson Heroico
Despesas da Justiça paulista - Jeferson Heroico

No ano passado, 92% dos gastos da Justiça estadual foi com recursos humanos. O restante, foi para a aquisição de bens e serviços. A despesa paulista representa um quarto do total nacional entre as cortes estaduais. Só no ano passado foram gastos R$ 4,9 bilhões — R$ 4,2 bilhões com folha de pagamento, férias, gratificações, passagens e verbas de gabinete. Entre 2004 e 2008, a despesa aumentou 36,4%.

O quadro de funcionários da Justiça paulista ao fim de 2008 era de 2.291 magistrados — um quinto do total no país — e 55.727 servidores — um terço do total contratado pelas Justiças estaduais. Entre 2004 e 2008, a força de trabalho cresceu 32,7% ao ano, sendo 24,5% somente com a contratação de mão-de-obra auxiliar — estagiários e servidores terceirizados.

À mesma conclusão chegou a Fundação Getúlio Vargas em uma consultoria inciada em 2006 no TJ, que durou 19 meses. O serviço contratado pela presidência da corte revelou que dois em cada três assessores no tribunal prestavam serviços à administração e não aos desembargadores, como lembra Limongi. “A maior parte dos assessores se dedicava a uma atividade meio e não à finalidade do Judiciário, que é julgar”, afirma.

O volume se equipara à quantidade de processos. No ano passado, foram 6,1 milhões de novos ajuizamentos, que contribuíram para os atuais 17 milhões de casos parados no estoque da Justiça, esperando decisão. Metade dos processos parados no país está na Justiça paulista. Em todas a Justiça Estadual no país, o total de ações novas no ano passado foi de 18,6 milhões e o estoque de processos parados foi de 38,4 milhões.

Apesar das altas cifras que as despesas alcançam, o encontro de contas entre gastos e processos mostra que uma ação em São Paulo custa por ano, para a Justiça, menos do que em quase todos os estados. Cada processo, segundo o CNJ, tem um custo de R$ 750 para o Judiciário. A média nacional é de R$ 1.022 por ação. Só no Rio Grande do Sul os processos são mais baratos — são R$ 472 gastos por ano pela Justiça a cada caso ajuizado.

Caminho das pedras
A receita do Conselho Nacional de Justiça para que a Justiça paulista consiga tirar a água do barco são os chamados meios alternativos para solução de conflitos, como a conciliação e a mediação, feitas antes que as partes ajuizem as ações. Para isso, programas como os mutirões, o Conciliar é Legal e o Projeto Integrar — que avalia e redefine a forma de trabalho nas varas — do CNJ, precisam engatar.

No primeiro grau, se os juízes aumentarem em 4,5% sua produtividade — o que significa chegar a 2015 dando 2,8 mil sentenças anuais —, o estoque for reduzido em 10% e as soluções amigáveis diminuírem em 5% ao ano o número de casos novos, a taxa de congestionamento cairá para 54% dentro de seis anos. Já no segundo grau, se o número de casos novos regredir 1% ao ano e cada magistrado aumentar em 5% a quantidade de decisões por ano, em 2013 já não haverá uma gota no convés.

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