Regras descartáveis

Direito tem mesma inconstância das leis

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14 de agosto de 2009, 11h40

Direito não é apenas um conceito ou mera ideia estática, mas algo dinâmico. Deste modo, conceituá-lo não é tarefa fácil, eis que esses conceitos não guardam um traço característico como, por exemplo, um elefante.

Se me apresentam a tromba de um elefante, de pronto duas ideias me ocorrem: ou na extremidade oposta da tromba existe um elefante ou, então, ela foi amputada de algum pobre paquiderme.

Em outras palavras: a tromba é um traço característico do elefante. Contudo, quando se trata de Direito, qual seria essa tromba? Como seria essa tromba? Como a detectar?

Repito: definir Direito é algo complexo.

Certa feita um bom e velho amigo meu, o jus-filósofo pernambucano João Maurício Adeodato, me contou um curiosa história sobre um determinado professor da Faculdade de Direito de Recife que envolve a problemática questão de se definir o Direito.

Dito professor, cujo nome não me ocorre, ao indagar um aluno, em provas finais, sobre o que era Direito, de pronto seu pupilo ripostou: “Direito é tudo aquilo que se obra no círculo social”. Com bom humor, o mestre replicou: “mas o senhor acaba de definir o urinol…”

Se, teleologicamente, passarmos a questionar a aplicabilidade da lei (que é uma das formas como o Direito se manifesta), não pense que andaremos sobre rochas. Não. Tenha certeza de que estaremos caminhando sobre areia movediça. Afinal, como já assertei, no Mundo platônico do Direito tudo é muito vago.

Há cinquenta anos atrás, por exemplo, se uma mulher fosse à praia de Ipanema trajando um fio dental, certamente ela seria processada por ultraje público ao pudor (artigo 233 do Código Penal[1]). No entanto, se uma mulher vai à praia de Ipanema com esses trajes hoje, não haverá crime algum — a não ser que a mulher que esteja vestindo o fio dental seja aquela mesma de cinquenta anos atrás[2].

Na segunda parte do artigo 139 da Constituição de 1937, temos o seguinte:

A GREVE E O LOCK-OUT SÃO DECLARADOS RECURSOS ANTI-SOCIAIS NOCIVOS AO TRABALHO E AO CAPITAL E INCOMPATÍVEIS COM OS SUPERIORES INTERESSES DA PRODUÇÃO NACIONAL.

Já na Constituição seguinte, a de 1946, em seu artigo 158[3], não só reconheceu o direito de greve como, outrossim, anistiou todos os cidadãos que tenham sofrido penas disciplinares, em consequência de greves, como vemos no artigo 28 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Transcrevo:

É concedida anistia a todos os cidadãos considerados insubmissos ou desertores até a data da promulgação deste ato e igualmente aos trabalhadores que tenham sofrido penas disciplinares, em consequência de greves ou dissídios do trabalho.

Na atual Constituição, esse direito foi ampliado. Transcrevo, mais uma vez:-

Artigo 9º – É assegurado o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender.

§ 1º – A lei definirá os serviços ou atividades essenciais e disporá sobre o atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade.

§ 2º – Os abusos cometidos sujeitam os responsáveis às penas da lei.

Assim, algo que era crime há 70 anos atrás hoje é uma prerrogativa constitucional.

Essas mutações não se restringem apenas ao Brasil. Se migrarmos nossos pensamentos para a legislação da América nortista, veremos que lá o mesmo se sucede.

No início da segunda metade do Século XX, em diversos estados sulistas dos Estados Unidos, era proibido aos negros ocuparem determinados assentos reservados aos brancos em transportes públicos. Porém, hoje, graças à ação de uma negra sulista e ao movimento encabeçado por Luther King, em 1956, se um branco américo-nortista reclamar que um negro (ou afro-américo-nortista) está sentado a seu lado é ele, o branco (ou euro-américo-nortista) quem comete um crime.

Essa minha preocupação relativa ao respeito à norma vem desde os bancos da Faculdade de Direito, onde meus mestres sempre me diziam que a norma deveria ser respeitada. Tais ideias começaram a instigar as minhas sinapses.

Numa de minhas andanças por sebos no Centro de São Paulo, naquela época (começo dos anos oitenta), deparei-me com um livro com título deveras sugestivo: La Vie du Droit et la Impuissance des Lois (A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis).

Esse fabuloso ensaio jus-filosófico, publicado em 1908, na França, é de autoria de Jean Cruet, um então famoso advogado francês do século XX e também professor da Faculdade de Direito de Sorbonne, em Paris. Neste livro, Cruet faz uma análise do valor (strictu sensu) do Código Napoleônico depois de cem anos de sua promulgação, e constata as violentas mudanças da aplicabilidade das leis.

Com seu instigante estilo, ele explica esse fenômeno dizendo que “o direito não domina a sociedade, exprime-a”. A partir dessa premissa, um importante corolário se manifesta: o importante não é a existência da lei, mas a disposição de a cumprir, de a acatar. Isso fica claro no pensamento de Cruet quando ele assevera que “se vê todos os dias a sociedade reformar a lei, nunca se viu a lei reformar a sociedade”.

Em minha particular visão, isso se deve, em grande parte, à miopia e “legislança em causa própria” dos legisladores — boa parte maioria inútil aos interesses nacionais.

Se lançarmos o olhar para o microcosmo político, constataremos que, efetivamente, nossas Casas Legislativas Municipais, em particular, são inúteis e caríssimas, carreando vantagens apenas a legisladores despreparados, como pude novamente constatar no frio domingo que se apresentou aos paulistanos aos 30 de julho de 2006 (encontrei este ensaio por acaso, em meu pen drive).

Naquela ocasião, preguiçosamente deitado sob um edredon, resolvi acessar o website do legislativo municipal paulistano (www.camara.sp.gov.br) e ali descobri coisas fascinantes. Se Deus é brasileiro, não o sei. Contudo, uma coisa é certa: Sua Santidade, o Papa Bento XVI, é paulistano, em razão do Projeto de Decreto Legislativo 75/05, de autoria do ilustríssimo vereador Domingos Dissei. Agora, quando em Roma, não deixarei de visitar aquele meu ilustre conterrâneo.

Entrementes, o Legislativo Municipal paulistano não me deu apenas essa alegria. Ao lado dessa pérola[4] legislativa vi a resposta para diversos outros problemas que assolam as terras de Piratininga.

Em se tratando de datas, não temos o que nos queixar. Nossos representantes municipais são implacáveis. Temos, por exemplo, o dia de todo Mundo (Lei 14.175, de 8 de julho de 2006, de autoria da vereadora Myryam Athie, que instituiu o dia do cliente) e o dia de ninguém (Lei 14.135, de 22 de março de 2006, de autoria de Noemi Nonato, que instituiu o dia das pessoas desaparecidas). Temos até o dia do pico do Jaraguá (Lei 14.119, de 4 de janeiro de 2006, de autoria de Ademir da Guia).

É pouco? Pois bem, além da promulgação de 20 leis instituindo a comemoração de novas datas, nossos bem remunerados vereadores fizeram promulgar 28 leis dando nome às nossas ruas e demais paços municipais.

Não basta? Então mister se faz consignar que graças a esses labutantes servidores do povo, existiram CINQUENTA E DOIS decretos legislativos dispondo sobre a outorga de cidadania paulistana a diversas pessoas, além de salvas de prata a instituições, medalhas Anchieta e diplomas de gratidão da cidade de São Paulo, medalhas Tiradentes e medalhas de ouro.

Ah… foram promulgadas mais vinte leis, uma declarando cidades irmãs as cidades de Chicago e São Paulo, outra revogando normas relativas ao período de 1892 a 1947, e assim vai.

Enfim, os 145 projetos de lei aprovados entre 7 de dezembro de 2005 e 8 de julho de 2006 (dos quais 25 foram de iniciativa do Executivo) mostram como estamos bem representados. Graças a cem dessas leis, temos datas para comemorar, nomes de ruas para decorar e um monte de novos paulistanos.

Salve o Legislativo paulistano!


[1] Artigo 233 – Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.

[2] Aos 20 de outubro de 1953, ocorria a instrução de um processo criminal por crime de atentado ao pudor e desacato à autoridade contra a atriz Dora Vivacqua, mais conhecida como Luz Del Fuego, e um’outra atriz, por estarem “quase nuas, num carro, em frente a uma igreja, durante o carnaval”. Hoje…

[3] Artigo 158 – É reconhecido o direito de greve, cujo exercício a lei regulará.

[4] E a pérola é o câncer da ostra, como já disseram antes de mim. Por seu tempero ácido, creio que esta idéia deva ser atribuída a Millor Fernandes

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