Tribunal inquisitório

Judiciário mais célere é também mais injusto

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13 de agosto de 2009, 14h17

Reclamávamos da morosidade e o Judiciário reagiu, tirou o gesso e foi bater às portas do Legislativo pedindo ferramentas que o ajudassem a andar mais rápido. Conseguiu várias ferramentas, como o forno crematório dos recursos repetitivos, capaz de torrar em poucos segundos centenas de processos; conseguiu uma perna mecânica que chamou de repercussão geral, conseguiu a penhora on line, a multa que é imposta à parte quando insiste demais na sua tese, além de vários outros instrumentos concebidos para funcionar como, digamos, bloqueadores ou limitadores de acesso.

Conseguiu transferir aos advogados várias das responsabilidades antes debitadas à conta dos cartórios forenses, instituiu nos tribunais a adaga da decisão monocrática capaz de decepar a cabeça de qualquer recorrente que insista em mudar a pacífica compreensão da corte sobre determinada matéria — permitindo a presunção de que tal entendimento jamais será mudado — como se o Direito fosse uma ciência exata — porque novas ideias jamais chegarão ao colegiado, pela rolha impeditiva do pacífico entendimento. Foram-lhe dadas ainda várias outras ferramentas, muitas das quais lhe causaram alguma deformidade facial, fazendo-o, por vezes, trazer lembranças do Tribunal do Santo Ofício, que podia ter todos os defeitos do mundo, mas era célere e eficaz.

E assim o nosso Judiciário respondeu às críticas de que era obeso e moroso. Livrou-se de algumas gorduras localizadas, fez pequenas cirurgias reparadoras, procurou recuperar a auto estima, mudou o penteado e, estimulado ou compelido pelo Conselho Nacional de Justiça, parece ter decidido entrar firme na malhação.

Mas essa transformação está sendo feita à custa de alguns sacrifícios impostos aos jurisdicionados. Na ânsia por mostrar seu novo manequim e provar que justiça lenta é coisa do passado, o nosso Poder Judiciário está fazendo com que alguns de seus membros atropelem e desprezem determinadas regras processuais que as faculdades de Direito sempre ensinaram que são como cláusulas pétreas do sistema processual moderno.

Vou me referir aqui a alguns casos processuais concretos nos quais atuo como advogado e, por razões óbvias, omitindo os nomes das partes.

Nesse cenário, temos visto juízes decidindo sumariamente, com alguns excessos de contornos inquisitoriais. Como é o caso do magistrado que bloqueou as contas bancárias do consultório de um médico pelo fato de ele ser casado com uma sócia minoritária — que nunca teve qualquer poder de gestão — de uma empresa em débito com a Justiça do Trabalho. É evidente que o próprio juiz reconheceu o excesso e semanas depois reconsiderou a decisão. Mas as contas do consultório médico ficaram bloqueadas por mais de um mês, causando danos morais e enormes constrangimentos ao profissional, até que o Leviatã judiciário pudesse se mexer para corrigir o erro. É o ex-gordo errando na velocidade da esteira.

Decisão monocrática do relator, no STJ, dando provimento ao recurso, foi atacada por agravo regimental e embargos declaratórios, pelo princípio lógico e natural de que é possível ao relator, solitariamente, negar seguimento ao recurso, confirmando a decisão colegiada contra a qual se recorreu. Mas não lhe é possível, monocraticamente, dar provimento ao recurso, reformando a decisão colegiada recorrida, mesmo, como no caso concreto, sem haver súmula ou precedentes. A reforma do julgado deve ser prerrogativa do tribunal e não do relator. Caberia a ele levar o recurso e submetê-lo à Turma ou Câmara, declarando o seu voto. O açodamento é também fruto do desejo incontrolável de imprimir velocidade supersônica à máquina judiciária, mesmo sabendo-se que a sua fuselagem é obsoleta e não suporta tais manobras.

Em determinado processo de execução por título extrajudicial em trâmite na capital paulista, o juiz de primeiro grau indeferiu pedido de arresto online, sumário, antes da citação do suposto devedor, porque não viu a presença dos requisitos que o permitissem. S.Excia. deve ter levado em conta que, em casos semelhantes — todos sabemos disso —, o devedor deve ser citado para que pague a dívida em três dias, conforme lhe faculta a lei, ou requeira o parcelamento em até seis meses, com os acréscimos também legais. Nas faculdades de Direito também ensinavam que o primeiro ato do processo deve ser a citação da parte requerida, o que deveria tornar prevento o juízo, induzir litispendência e também tornar litigiosa a coisa, segundo afirmavam os professores (da época). Neste caso, apreciando o agravo interposto pela parte interessada no arresto online (sem previsão legal, pois a previsão da lei é para a penhora online, em hipóteses bem definidas), o relator, monocraticamente e sem ouvir mais ninguém, houve por bem dar provimento ao recurso, mandando que se fizesse o arresto online na forma pleiteada. Em seguida levou o recurso ao colegiado, que confirmou a decisão monocrática, sem que ninguém mais fosse ouvido, a não ser o próprio recorrente. Tudo em menos de uma semana e também demonstrando a pressa em mostrar à sociedade um novo e lépido Judiciário.

Em ação ordinária estranhamente ajuizada no extremo norte do país — cujo foro não é o de eleição das partes e nenhuma delas reside no referido Estado — o juiz singular, antes da citação, deferiu também o bloqueio de valores nas contas bancárias da parte demandada, mesmo não havendo título executivo, nem judicial nem extrajudicial. Considerando o bloqueio insuficiente, s.excia. digitou o CPF de um dos sócios e descobriu que ele é também sócio da empresa X, embora esta não possua nenhuma relação com a demandada, mesmo porque ambas têm objetos sociais totalmente diferentes. Mas o sócio principal é o mesmo, embora não integre o polo passivo da ação. O juiz pensa, reflete e descobre que ele tem o extraordinário poder de acessar toda e qualquer conta bancária, de quem quer que seja, e bloquear os recursos que estiverem depositados nessas contas. E assim o fez: já que o cidadão João de Tal é sócio de ambas as empresas, e a demandada não tem em suas contas correntes o valor que se pretendia bloquear, s.excia. bloqueou mais de R$ 1 milhão na conta da empresa X — que, repita-se, não faz parte da demanda e nada tem a ver com os fatos narrados na ordinária ação recém ajuizada. O autor da ação, claro, pediu o levantamento do dinheiro, o que foi prontamente deferido pelo dr. Juiz, mediante a caução de uma nota promissória. Apontando teratologia, a empresa X impetrou mandado de segurança no plantão do tribunal estadual e obteve liminar que cassou a decisão de primeiro grau. Horas depois, já fora do plantão, o mandamus foi à relatora sorteada, que revogou a decisão e assim permitiu que novos bloqueios fossem feitos, ficando também autorizado o levantamento do dinheiro bloqueado — mesmo sabendo-se que o dinheiro pertence a outra pessoa jurídica que não possui relação contratual com o autor e portanto nada tem a ver também com a relação processual. Apenas esclarecendo que tudo isso ocorreu antes da citação inicial. Este caso está ainda sub judice e certamente será submetido ao STJ e também ao CNJ.

Há muitos outros exemplos, que seria exaustivo relatar. Mas diante desses fatos fica a dúvida se não seria melhor e moralmente mais saudável para a sociedade, se voltássemos a ter o velho, obeso e lento Judiciário, já que as pontiagudas ferramentas que lhe foram dadas estão sendo manuseadas também com grave imperícia moral, ressalvada a conduta proba e correta, felizmente, da grande maioria dos magistrados. Mas toda corrente é tão forte quanto o mais fraco dos seus elos.

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