Liturgia e eficiência

A utilidade dos atos processuais deve ser questionada

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12 de agosto de 2009, 14h33

Na introdução ao livro a Arte de Bem Julgar — Ensaio sobre o Ritual Judiciário, o jurista francês Antoine Garapon questiona quais seriam as impressões de um espectador que, pela primeira vez, comparece a uma Corte de Justiça. Seriam o conteúdo das questões jurídicas examinadas e a densidade dos debates ou o “ambiente”, os ritos e a linguagem singular utilizada? Certamente, conclui o autor, com o “estranho espetáculo” que se desenrola diante de seus olhos.

É inegável que alguns dos ritos judiciários ainda hoje guardam algo de pitoresco e excessivo, contrastando com as exigências cada vez maiores de racionalidade e celeridade. Embora não se possa negar a importância simbólica da liturgia judiciária, que inclusive realça a própria importância da jurisdição enquanto expressão da soberania do Estado, a utilidade prática de alguns atos processuais deve ser questionada, em face das atuais necessidades sociais ligadas à Justiça.

Referir à crise de efetividade que aflige o Poder Judiciário já se tornou lugar comum, diante dos inúmeros estudos doutrinários e propostas legislativas sistematicamente oferecidos à avaliação geral. Reformas no texto constitucional e na legislação processual estão sendo discutidas e implementadas, todas com o propósito de concretizar a promessa constitucional da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII).

Apesar da dimensão do desafio gerencial posto ao Judiciário, um novo “horizonte” de celeridade e efetividade jurisdicional aos poucos vai se descortinando. São emblemáticas nesse sentido as inovações legislativas recentes aplicáveis ao Supremo Tribunal Federal (Repercussão Geral e Súmula Vinculante) e ao Superior Tribunal de Justiça (Lei de Recursos Repetitivos), que estão possibilitando a melhor racionalização dos trabalhos judiciários no âmbito desses tribunais, a partir da redução da carga de trabalho da ordem de 56% e 40%, respectivamente.

Nesse longo processo em busca da excelência nos serviços judiciários, alguns dogmas estão sendo quebrados ou mitigados, entre os quais a própria noção de colegialidade (segundo a qual os julgamentos revisionais deverm ser proferidos por pelo menos três magistrados), com o maior estímulo aos julgamentos monocráticos (CPC, art. 557), e a restrição crescente da garantia tradicional, embora não absoluta, do duplo grau de jurisdição (CPC, art. 518, § 1º).

Mas a exigência de maior racionalidade no trânsito de ações e recursos parece contrastar com os limites impostos pela tradição excessivamente formalista que conformou o sistema processual brasileiro e que orientou a formação de grande parte dos juristas brasileiros.

Nesse contexto inclui-se o debate recente acerca da transmissão das sessões dos órgãos do Poder Judiciário. Para além da conveniência indiscutível dessas transmissões, especialmente pela internet, pois aproximam o Judiciário da sociedade, algumas críticas e sugestões devem ser apresentadas. Além da dificuldade de compreensão dos debates por parte dos "não iniciados" no código de comunicação jurídica, questão objeto da campanha nacional pela simplificação da linguagem jurídica, conduzida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), não mais parece haver espaço para a forma atual como são conduzidos os julgamentos, com a leitura exaustiva de longos e eruditos textos, que consomem precioso tempo dos julgadores e comprometem a celeridade processual. Ressalvadas situações excepcionais em que os debates ofereçam alta complexidade, tudo parece recomendar que os julgadores ofereçam apenas resumos de suas posições jurídicas, sem prejuízo dos debates necessários à construção das melhores decisões.

Questão conexa e igualmente simples, que parece reclamar exame crítico, diz com o modelo das sustentações orais nos tribunais. Embora a tentativa de dinamização desse procedimento prevista na Lei 8.906/94 não tenha resistido ao crivo de constitucionalidade, por vício de ordem formal, no âmbito da Excelsa Corte (ADI 1.105-7/DF), o exemplo do Tribunal Superior do Trabalho (TST) é eloquente e deveria servir de modelo para os demais tribunais brasileiros. No âmbito da Corte Superior Trabalhista, nas sessões de julgamento, após apregoado o recurso, o relator expõe resumidamente a íntegra de seu voto, permitindo-se, em seguida, ao advogado, caso haja interesse, a realização da sustentação oral. Coerente o voto condutor com a tese defendida pelo advogado inscrito para sustentar e não havendo dissidência pelos demais julgadores, a presença do advogado é registrada e o resultado proclamado. Com isso, amplia-se a capacidade de julgamento da Corte, com economia substanciosa de tempo e recursos das partes e do Estado.

Para que esse modelo produza bons resultados, no entanto, é necessário não apenas a colaboração dos advogados, verdadeiramente alçados à condição de ativos partícipes do processo de construção da decisão judicial, mas, sobretudo, o preparo desses profissionais para a atuação na esfera extraordinária de jurisdição. Casos há em que recursos não são conhecidos por questões de ordem técnica devidamente indicadas pelo relator, insistindo os advogados, todavia, durante todo o tempo reservado à intervenção oral, em questões de mérito insuscetíveis de análise pelo colegiado. Há casos, ainda, em que advogados, recém registrados na OAB, comparecem às tribunas mais altas do Judiciário nacional como rito de início na profissão, o que, com todas as vênias, não se mostra adequado.

Para além de qualquer reflexão ligada à ampla liberdade de exercício profissional pelos advogados, sem dúvida essenciais à melhor gestão da Justiça (CF, art. 133), é chegado o instante de repensar o modelo atual, exigindo-se prévia habilitação para o ofício perante o STF e as Cortes Superiores.

Se a liturgia dos atos processuais não significa apenas "poeira nos olhos" dos jurisdicionados, destinada a afastar questionamentos ligados à legitimidade das decisões judiciais, a revisão de determinadas práticas mostra-se urgente e oportuna, na perspectiva da máxima racionalização das atividades jurisdicionais.

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