A favor do homem comum

Caráter perverso do sistema carcerário não é novidade

Autor

  • Maria Tereza Sadek

    é cientista política professora do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora sênior do Cebepej (Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais).

12 de agosto de 2009, 11h37

W.S.P. foi preso em maio de 2004 e cinco meses depois condenado a dezoito meses de detenção. Em novembro de 2006, seu advogado requereu a extinção da punibilidade face o cumprimento integral da pena. Em julho de 2007, depois de uma coleção de ofícios, a juíza da vara de execução penal extinguiu a punibilidade. Em julho de 2009, contudo, W.S.P. continuava preso.

Esse é só mais um caso. Há milhares de outros iguais ou ainda mais trágicos, como o de um lavrador que passou quase 11 anos encarcerado sem ter sido julgado. O quadro é desalentador: presos com penas integralmente cumpridas; inocentes presos sem julgamento; réus presos preventivamente há anos, também sem julgamento; indiciados presos, sem oferecimento de denúncia; presos com enfermidades graves, sem tratamento; etc.

As deficiências do sistema carcerário brasileiro são superlativas. Seu caráter perverso não constitui novidade. O retrato é sempre terrível, variando apenas a ênfase em um de seus traços postos em evidência. Compõem a cena, celas superlotadas, sem condições de higiene, insalubres; pavilhões sem divisões internas e sem triagem por tipo de delito. Recentemente duas jovens turistas inglesas tiveram a oportunidade, no Rio de Janeiro, de provar, e proclamar ao mundo, a calamidade do sistema prisional brasileiro, dividindo uma cela abarrotada, sem colchão, sem banho, com privada sem descarga. Depois de uma semana conseguiram sair. Deixaram para trás, outras brasileiras que provavelmente ficarão no abando e por muito mais tempo, quaisquer que tenham sido seus delitos. Prisões com tais deficiências, nem seria preciso dizer, não ressocializam, mas são verdadeiras escolas de crimes, fábricas de delinqüentes, reino da lei do mais forte, tornando draconiano qualquer castigo.

Muitas denúncias já foram feitas sobre as condições de nossas prisões. O conhecimento das irregularidades, contudo, não tem gerado soluções minimamente capazes de amenizar a situação. Aliás, muitas delas não apenas caem no vazio como instigam o descrédito na pregação pelos direitos humanos e estimulam a defesa de penas mais graves. Ademais, o crescimento da violência e o aumento da insegurança — real ou imaginária — dificultam a elaboração e a concretização de políticas de impacto sobre o sistema prisional.

O Conselho Nacional de Justiça, com suas inspeções e mutirões, está invertendo a lógica prevalecente, rompendo o círculo vicioso de denúncias, imobilismo e agravamento da situação. Não se tem tratado nessas ações, de meramente descobrir e denunciar culpados, de aguardar alterações legislativas, de esperar por novos presídios. Os mutirões não escusam o Judiciário e todo o sistema de justiça de seu quinhão de responsabilidade pela situação. O empenho é na direção de verificar processos; de diagnosticar irregularidades, sejam elas de quem for; de corrigir problemas; enfim, de levar a lei para um dos espaços que, surpreendentemente, é um dos mais avessos à legalidade.

Para a efetivação dessa política, os mutirões já examinaram 27.956 processos. Os dados consolidados até 6 de agosto indicam que já foram realizados quatorze mutirões, que resultaram na concessão de liberdade para 4.860 indivíduos e em benefícios para outros 7.426. Como os mutirões têm trabalhado continuamente, esses números crescem dia a dia. Em média, cerca de 40% dos indivíduos encarcerados, encontravam-se em uma situação irregular, que pode ser caracterizada como de abandono da lei.

Do ponto de vista humanitário, ainda que fosse constatado que apenas um detento não deveria estar cumprindo pena, o trabalho do CNJ já seria relevante. O número de casos, contudo, é imenso. Essa ação inovadora da Justiça tem como foco os excluídos, permitindo que a lei não signifique para eles apenas e tão somente a imposição de penalidades.

Hastear a bandeira da prevalência da lei pode parecer platitude ou, na melhor das hipóteses, uma plataforma anacrônica, desqualificada às vezes como jurisdicismo liberal. Seu significado, entretanto, é revolucionário, é transformador, especialmente em sociedades que ostentem graus excessivos de desigualdade e exclusão.

A lei é (ou deve ser) a expressão da igualdade, abomina privilégios e discriminações. É simultaneamente constrangimento e proteção. Ora, dirão os céticos, alguns são mais iguais do que outros. A lei não vale para todos os degraus da hierarquia. Os que estão no topo julgam que a lei não vale para eles, não são cidadãos comuns, gozam de privilégios. Nesses casos, a lei não constrange. Os que estão na base, por sua vez, não têm na lei proteção, vivem ao desamparo.

Em um contexto como esse, o domínio da lei é restrito, porque pouco constrange e pouco protege. Para a vigência do Estado de Direito é imperativo ampliar a efetividade da lei, fazendo-a valer tanto para os que a lei não atinge, porque estão (ou consideram-se) acima dela, como para os que a lei não atinge porque estão abaixo ou fora de sua abrangência. Sem esse domínio da lei, a democracia se transforma na democracia formal que algumas facções da esquerda adoram denunciar sem se darem conta de que a institucionalização do processo democrático requer a efetiva aplicação universal da lei que precisa ser a mesma para o pobre e para o rico, para os governantes e para os governados.

Os mutirões realizados pelo CNJ têm se revelado uma política pública com extraordinário impacto na efetividade da lei, permitindo que sua prevalência alcance milhares de indivíduos desprovidos da proteção da lei. Esses “esquecidos” nas prisões, não protegidos pelas leis, não é preciso dizer, são pobres. A ação do CNJ torna possível que a Justiça chegue até eles. Os mutirões representam indiscutivelmente um passo significativo na extensão do manto da lei.

[Artigo publicado originalmente, nesta quarta-feira, no jornal O Estado de S.Paulo]

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  • é cientista política, professora do Departamento de Ciência Política da USP e pesquisadora sênior do Cebepej (Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais).

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