Direito de cobrar

Livro repassa história da jurisprudência tributária

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10 de agosto de 2009, 20h22

Uma análise histórica das mudanças jurisprudenciais e normativas do Direito Tributário brasileiro. Assim podem ser resumidas as 673 páginas do novo livro da professora, advogada e doutora em Direito Público Misabel Abreu Machado Derzi, Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário, da Editora Noeses. Na obra, uma reflexão do comportamento dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo sobre a matéria nos últimos anos.

O título mapeia as oscilações da jurisprudência, o espaço para decisões políticas da Justiça e o uso de instrumentos estratégicos como a modulação de efeitos, como explica outro renomado tributarista, Paulo de Barros Carvalho, ao assinar com brilhantismo o prefácio da obra. “O sistema jurídico que aí está foi forjado na prática das nossas instituições; nasceu e cresceu entre as alternâncias de uma história política agitada, irrequieta, no meio de incertezas econômicas internas e externas. (…) É preciso temperar os mandamentos constitucionais ao palpitante desempenho dessa sociedade que muda sob o influxo de novos valores”, escreve o professor titular de Direito Tributário da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica paulista.

Misabel Derzi é advogada tributarista, doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais e sócia do escritório Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados. É professora titular de Direito Financeiro e Direito Tributário da UFMG, professora titular de Direito Tributário das Faculdades Milton Campos, presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário, membro do Grupo de Pesquisa Europeu de Finanças Públicas e membro da Academia Internacional de Direito e Economia.

O lançamento de Modificações da Jurisprudência no Direito Tributário acontece na próxima quarta-feira (12/8), às 18h30, na Biblioteca Victor Nunes Leal, no Supremo Tribunal Federal. Na ocasião, a professora receberá o público e autografará os exemplares. A obra chega às livrarias de todo o país pelo preço sugerido de R$ 98,50. Pelo site da editora ou pelo telefone (11) 3666-6055, é possível ter 15% de desconto.

Leia o prefácio escrito pelo professor Paulo de Barros Carvalho

Prefácio

A intensidade da comunicação jurídica, simples parcela do fenômeno maior da comunicação social, acelerou significativamente os aspectos positivos e negativos que acompanham a produção dos atos de fala nos domínios do direito, de tal modo que suas virtudes e seus defeitos ficaram expostos à visitação pública, com a transparência e a nitidez das manifestações evidentes. Aquele quantum de mistério que envolvia a prescritividade própria do jurídico pode, agora, ser explorado por ciências como a Semiótica ou devassado pelas especializações cada vez mais numerosas das ciências da linguagem, projetadas pela difusão do “giro lingüístico”. Penso que a filosofia da linguagem, tanto na versão do estruturalismo, mais conectado com a linguística, quanto na proposta da filosofia analítica, em ligação mais estreita com a lógica e com a matemática, navega a velas pandas no que há de mais fino e elaborado do pensamento ocidental. As duas vertentes avançam, na forma da terminologia tradicional, aparecendo como pós-estruturalismo e pós-analítica, para convergir na perspectiva hermenêutica, interpretativa, deitando raízes na fenomenologia e no existencialismo. A noção de horizonte hermenêutico, concebida na amplitude de uma tradição e, sobretudo, a de fusão de horizontes mediante o diálogo, desemboca inapelavelmente no reconhecimento da linguagem, constitutiva do saber, do mundo em que vivemos e de nós mesmos, entes humanos jogados na existência como seres finitos, carentes, prisioneiros de nossas incontáveis limitações.

Tais palavras, proferidas no jeito de introdução, muito têm que ver com dois pontos que desejo salientar: primeiro, a Autora desta obra; e, segundo, o conteúdo de seu trabalho. Misabel Derzi, festejadíssima titular da tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais representa a fina flor da intelectualidade jurídico-tributária brasileira. Os padrões elevados com que conduz seus pensamentos, assim neste livro como em escritos anteriores, são motivos de orgulho para os que comparam nossas construções dogmáticas aos mais expressivos textos da doutrina estrangeira. Dá gosto acompanhar seu raciocínio. A singela naturalidade das articulações e a delicadeza da força argumentativa envolvem o leitor, a ponto de fazê-lo pensar, em alguns momentos, que as construções extraídas tenham sido produzidas por ele mesmo leitor. Retórica apurada de quem aparenta permanecer distante, sem forçar o convencimento ou pretender conferir se a mensagem está surtindo os desejados efeitos de persuasão. Aquilo que lhe interessa é manter, com determinação, a seqüência discursiva, preservando o rigor semântico e a sintonia entre as premissas propostas e as ilações obtidas. Creio que assim seja.


Há muitos anos conheço Misabel. Quem nos aproximou foi o grande Geraldo Ataliba. Eu, jovem, seu assistente, e ela mais jovem ainda, brilhando ao lado de Sacha Calmon nas Minas Gerais. Apesar da distância, sempre mantivemos excelente relacionamento e passei a ser admirador constante de seus textos escritos e das insuperáveis palestras e conferências que proferia. É bem por isso que fiquei sensibilizado ao receber convite para integrar a banca examinadora de seu concurso, ao lado de José Souto Maior Borges, Ricardo Lobo Torres, Humberto Theodoro Junior e Joaquim Salgado, professores cuja presença, por si só, já enaltecia a candidata. Durante as memoráveis sessões, entre paredes que trescalavam categoria e tradição, o saber de Misabel se misturou com a alta qualidade das perguntas que lhe foram dirigidas, de tal forma que o resultado foi decorrência natural do que aconteceu naquele evento acadêmico cuja realização marca tanto o particularíssimo modo de ser e de existir da própria vida universitária. Com as loas dos examinadores, a nota máxima veio em tom unânime. E o desfecho não podia ser outro: a Faculdade de Direito proclamava sua nova titular, ato que ressoou como singelo reconhecimento, pois as virtudes pessoais e docentes da candidata já eram de domínio público no Brasil e fora dele.

Quanto ao conteúdo, a escolha do eixo temático não podia ter sido melhor. A oscilação das manifestações jurisprudenciais e o caminho estratégico da modulação dos efeitos são assuntos debatidos em todos os níveis da comunidade jurídica. Os tribunais superiores se encontram premidos diante de opção difícil, qual seja a de realizar os valores que a Constituição prevê, expressa ou implicitamente, ao mesmo tempo em que não podem permanecer alheios às evidentes mudanças de uma sociedade que se transforma a cada passo, com imensa riqueza de configurações que desconcertam o mais atento e bem informado observador.

O sistema jurídico que aí está foi forjado na prática das nossas instituições; nasceu e cresceu entre as alternâncias de uma história política agitada, irrequieta, no meio de incertezas econômicas internas e externas. Sua fisionomia é a do Brasil dos nossos tempos, com as dificuldades, limitações, mas também com suas grandezas e, para que não dizer, com a surpreendente vitalidade de um país jovem, que marca, incisivamente, sua presença no concerto das nações. É preciso temperar os mandamentos constitucionais ao palpitante desempenho dessa sociedade que muda sob o influxo de novos valores. O desafio é significativo e não há espaço para meditações demoradas sob pena de aumentar o descompasso entre a regulação jurídiconormativa e o plano das condutas interpessoais.

Ao mesmo tempo, nada há contra alterações no modo de interpretar e compreender o direito posto. Pelo contrário, as mudanças de opinião são plenamente justificadas num mundo em que as informações crescem vertiginosamente, entrando em regime de complexas intersecções. Aliás, no turbulento meio social em que vivemos, difícil é manter inalteradas as posições tomadas, como se tudo permanecesse estável. Aliás, já assinalava Rui Barbosa, ao tempo da Réplica e lembrando a personagem de Braz Cubas, que cada estação da vida é uma edição que corrige a anterior. O que se postula, como algo inaceitável, é que as variações de entendimento porventura ocorrentes venham em detrimento daqueles que travaram contacto com o emissor da mensagem, acatando-a como legítima, em qualquer situação comunicacional que possamos tomar como exemplo. Impõe-se, como regra ética, que a opinião seja mantida pelo menos até o momento de sua alteração. Acolhe-se, portanto, a franca liberdade de mudar os pontos de vista, no contexto da comunicação, salvaguardado o direito do destinatário de ver respeitada a orientação de sua conduta durante o intervalo entre as duas mensagens de conteúdos contraditórios ou contrários. É o mínimo que se espera das interações sociais de qualquer nível, em especial daquelas que vêm com o timbre da autoridade do Poder Judiciário.

De ver está que os Tribunais Superiores foram investidos pela Constituição da República da competência para uniformizar a interpretação da Constituição Federal (STF) e da lei federal (STJ) em toda a extensão do território brasileiro. As manifestações que profere em tom de súmula tornam-se diretrizes decisórias para os tribunais hierarquicamente inferiores, ao mesmo tempo em que a sociedade as acolhe como expressão eloqüente do direito que há de ser cumprido no plano das relações interhumanas. Além disso, a construção dos conteúdos sumulares se faz gradativamente, pela reiteração de julgamentos acumulados nos horizontes da mais legítima experiência jurídica. É a consolidação do trabalho judicante, produzindo o direito vivo, testado e compassadamente aplicado na composição de litígios sobre certos e determinados objetos do comportamento social.


Ao exercitar a prerrogativa, esses tribunais põem em prática as funções de: (i) estabilizar o sistema, especificando o fato e a conduta regrados pela norma; (ii) realizar a segurança jurídica, instaurando como previsível o conteúdo da coatividade normativa; (iii) promover a orientação jurisprudencial, para indicar a referida compreensão aos tribunais judiciários de inferior hierarquia, bem como aos magistrados que viessem a prolatar decisões sobre a matéria, ou seja, estabilizando a jurisprudência segundo a diretriz que os Tribunais Superiores consolidaram; (iv) operar no sentido da simplificação da atividade processual, pois ao julgar de idêntica forma os casos semelhantes, acelera o processo decisório e garante a igualdade na prestação jurisdicional, além de reduzir, sensivelmente, o volume de processos existentes a respeito daquele objeto; e, por fim a (v) previsibilidade decisória, porquanto em decorrência da uniformização dos julgados, alimenta-se a expectativa dos destinatários quanto ao desfecho das causas, tornando previsíveis os resultados.

Agora, não se pode deixar de perceber que a modificação no posicionamento jurisprudencial tem tudo para causar conseqüências gravosas para toda a extensão dos setores abrangidos. É precisamente neste ponto que se acomoda o anseio pela modulação dos efeitos da decisão a ser proferida pelo Judiciário, imprimindo caráter prospectivo à sua eficácia. É bem verdade que esse modus de julgar tem sido cogitado preponderantemente para situações jurídicas que envolvam o controle concentrado de constitucionalidade. Todavia a concepção diacrônica da atividade de produção de normas pelo Poder Judicante, naquele cenário de nomodinâmica a que Kelsen tão bem referiu, autoriza plenamente a iniciativa exegética, pois encontra respaldo em valores fundamentais e efetivos do sistema jurídico nacional.

Com efeito, não é mero jogo de palavras ou emprego oportuno de expedientes retóricos convenientes ao interesse da parte que postula a prestação jurisdicional do Estado. Tratasse de algo sobre o que fala insistentemente o direito positivo, de maneira expressa ou na implicitude de seus enunciados, e acerca do qual a doutrina se manifesta com vigor e entusiasmo, suscitando até alguns excessos considerados abusivos por outorgar ao discurso jurídico assomos de politização. Claro está, porém, que a insistência no invocar valores, a estratégia de utilizar, acima do nível recomendável, estimativas que a ordem jurídica prevê, não pode ir ao ponto de anular esses postulados que anunciam as preferências básicas da sociedade brasileira.

Não sei a quem cumprimentar mais: se a Misabel, pelo talento, erudição e categoria de seu trabalho, que é espelho de sua vida pessoal e profissional; se a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, pelo excelente nível de sua nova titular; se o meio jurídico tributário brasileiro, pelo papel sobremaneira importante que a jurista mineira desempenha no cenário nacional e internacional; a seus alunos de graduação e de pós-graduação espalhados por todo o país; ou a Editora Noeses, por ter sido escolhida para difundir essa obra densa, profunda, de assento e sobremão como diria Rui, mas que se presta, admiravelmente bem para fins didáticos. De qualquer maneira, minhas saudações efusivas à amiga de tantos anos, que me outorgou a honra de prefaciar esse trabalho de tomo.

São Paulo, 1º de março de 2009

Paulo de Barros Carvalho

Titular de Direito Tributário da PUC/SP e da USP

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