Execução paliativa

Nova lei de execução fiscal sobrecarregará PGFN

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4 de agosto de 2009, 4h36

O denominado “Novo Modelo de Cobrança” é assunto de interesse ímpar de toda a sociedade brasileira. A eficácia da cobrança executiva do crédito público homenageia a livre concorrência ao expropriar do devedor os valores que foram espontaneamente recolhidos por seus concorrentes; exerce também a função pedagógica de desestimular a sonegação e o inadimplemento das obrigações do cidadão com a sociedade e, em último lugar, cumpre a função de provisionar os cofres públicos com os recursos necessários ao aprimoramento da comunidade.

Da mesma maneira que ninguém discute a importância da cobrança do crédito público, poucos desconhecem a situação enfrentada pelas Fazendas Públicas ao tentar, por intermédio das ações de execução fiscal, transformar o crédito abstrato em dinheiro palpável. É fato notório que mais da metade de todas as ações judiciais em trâmite no Poder Judiciário diz respeito a execuções fiscais. E apesar do imenso volume de ações e dos altos gastos envolvidos em sua manutenção, os resultados obtidos são pífios.

Se as execuções fiscais apresentam baixo grau de eficácia e, ao mesmo tempo, absorvem parte considerável da energia e recursos materiais tanto do Poder Judiciário quanto dos representantes das Fazendas Públicas, é com um misto de júbilo e expectativa que recebi a notícia de que um novo modelo de cobrança vem sendo manejado para corrigir os velhos problemas de todos tão conhecidos.

Com o espírito imbuído de esperança, passei a analisar, detidamente, a proposta da nova lei de execuções fiscais.

Não pretendo aprofundar comentários sobre cada dispositivo do Projeto de Lei 5.080/09, tarefa que exigiria foro próprio. Proponho-me a investigar se o Novo Modelo de Execuções Fiscais conseguirá lograr êxito em suas metas de diminuir o número de litígios e encurtar o tempo de tramitação do processo de cobrança, tornando-o mais simples, barato e eficaz.

Os objetivos a serem perseguidos, nobres e prementes, interessam a toda a sociedade, transbordando efeitos para muito além do mundo jurídico.

A principal premissa do “Novo Modelo” é o esgotamento do sistema atual. Eis a questão que passaremos agora a perscrutar. Em outras palavras, cumpre questionar se o modelo proposto trará a eficácia perseguida e ainda não encontrada.

Aqueles que convivem com a execução fiscal em seu dia-a-dia sabem que o primeiro óbice enfrentado para a realização do crédito público é a localização do devedor e seus bens, muitas vezes alienados durante o longo intervalo entre o fato gerador e a efetiva cobrança do crédito.

Chega a ser curioso que em plena “Era da Informação” o maior problema enfrentado por todos aqueles que lidam com execuções fiscais seja exatamente a dificuldade em obter informações a respeito da localização do devedor e de seus possíveis bens. Causa ainda maior estranheza o fato das informações estarem disponíveis, dispersas, muitas vezes em bancos de dados da própria fazenda exequente, e cujo acesso é sistematicamente sonegado aos responsáveis pela localização do devedor e seus bens.

Circulam em toda a imprensa notícias de que a Receita Federal dispõe de supercomputadores, alguns até batizados com nomes pomposos, capazes de cruzar informações por meio de avançados sistemas de inteligência artificial. Apesar das informações já estarem disponíveis em bancos de dados dispersos, não dispõem os órgãos de cobrança da União, e muito menos os demais entes federados, de um único sistema de informática que trate com propriedade os dados coletados.

É paradoxal que os Procuradores da Fazenda Nacional encontrem enormes dificuldades de acesso aos bancos de dados da própria Fazenda Nacional, a maioria operados pela Receita Federal. Em alguns casos, de tão dispersos, os dados tornam-se inacessíveis. Em outros, a utilização de diferentes plataformas impede o acesso às tão essenciais informações.

Outro ponto que merece destaque é o sensível incremento de trabalho a ser suportado pelas Fazendas Públicas exequentes. Parte considerável do fluxo de trabalho agora realizado pelas serventias judiciais passarão para a responsabilidade dos credores. Até o momento, no entanto, não foi divulgado qualquer estudo a respeito da quantidade e qualificação da mão-de-obra necessária para fazer frente ao imenso incremento de trabalho a ser suportado pelas fazendas credoras. Pressuposto da eficácia de qualquer modelo de gestão, a política de recursos humanos foi solenemente esquecida pelo novo modelo.


Se especialmente no caso da União a fragilidade do capital humano já beirava o desespero, a situação muito se agravará com as novas atribuições exigidas pelo novo modelo. O artigo 5º, parágrafo 3º, por exemplo, pressupõe boa dose de organização e agilidade das Fazendas credoras, já que o crédito público será considerado garantido se as garantias oferecidas não forem analisadas e eventualmente rechaçadas no prazo improrrogável de 15 dias.

O parágrafo 4º do mesmo artigo 5º facultará ao contribuinte a segunda oportunidade de contraditório desde a inscrição do crédito. Se a discussão a respeito da suficiência e idoneidade das garantias apresenta considerável potencial litigioso, os casos de declaração de impenhorabilidade serão seguramente objeto de incontáveis questionamentos administrativos que, logo em seguida, serão repetidos na esfera judicial.

Os parágrafos 6º e 7º, ainda do artigo 5º, que tratam de constrição preparatória e protesto de título, também a demandar o rigoroso controle de prazos e tramitação física de autos, constituirão outro foco de litígios administrativos e renovação da mesma discussão por meio do legítimo exercício do direito de ação.

O artigo 7º, por sua vez, prevê recurso semelhante à atual Exceção de Pré-Executividade, mas desta vez, a ser proposto e julgado na esfera administrativa, com o inevitável estabelecimento do contraditório.

Outro foco de litígios e demandas administrativas é o artigo 9º, que trata de constrição preparatória, penhora e avaliação de bens. Como em todas as demais fases do procedimento administrativo anterior ao ajuizamento da execução, os atos e decisões dos representantes da Fazenda Pública exequente serão rebatidos na fase preliminar e renovados na esfera judicial por meio de ações próprias (o plural é proposital), tudo ainda antes do ajuizamento da ação de execução fiscal propriamente dita. Em outras palavras, o duplo ou triplo controle de legalidade oferecerá larga margem de segurança ao contribuinte, mas, em contrapartida, contribuirá para considerável aumento do prazo para a satisfação do crédito tributário.

O artigo 11 é outro dispositivo que impõe o investimento em mão-de-obra qualificada. Afinal, cabe à exequente, em 15 dias, manifestar-se tecnicamente sobre a impugnação ao valor atribuído aos bens constritos. Eis aí mais um foco de conflito a ser dirimido pelo Poder Judiciário.

Os artigos 13, 15, 17, 18 e 20, todos, igualmente, implicam controles de prazos administrativos, muitos preclusivos, e estabelecem providências a serem tomadas, em caráter obrigatório, pelas Fazendas exequentes, sempre sob pena de ineficácia dos atos anteriores. Importante lembrar que a cada providência tomada pela credora caberá recurso administrativo e, caso não acolhido, o socorro ao Poder Judiciário, seja por meio de mandado de segurança, ação cautelar, embargos do devedor ou qualquer outra medida que encontra limites apenas na criatividade do advogado do contribuinte.

Importante ressaltar que todo o périplo processual até o momento mencionado diz respeito apenas à fase administrativa, ou seja, aos atos anteriores ao ajuizamento da ação de execução fiscal. Significa dizer que, durante toda essa saga, o prazo de prescrição intercorrente estará em curso, uma vez que iniciado com a notificação da inscrição em dívida ativa (parágrafo 10 do artigo 5º). Em outras palavras, se as Fazendas Públicas não estiverem muito bem aparelhadas tanto em estrutura física quanto em relação ao capital humano, corre-se o sério risco de grande parte dos créditos serem fulminados pela prescrição intercorrente antes mesmo do início da ação de execução fiscal.

Não é pessimismo prever que o excesso de impugnações administrativas, sempre renovadas em ações judiciais diversas, jogará por terra o objetivo de diminuir a litigiosidade inerente ao processo executivo. Estimular-se-á o litígio para os devedores dotados de bens ao mesmo tempo em que serão beneficiados os recalcitrantes, aqueles que apenas procrastinam e, por isso, poderão ser contemplados com o prêmio da prescrição intercorrente.


Quando se fala na necessidade imperativa de as Fazendas Públicas investirem na contratação maciça de recursos humanos, sobretudo se o novo modelo for aprovado, convém mencionar, a título exemplificativo, que a Justiça Federal da 3ª Região, apenas no município de São Paulo, destina aos feitos fiscais 200 funcionários e mais de 100 oficiais de Justiça, todos qualificados, dotados de plano de carreira e remuneração condigna. No caso da assunção das atribuições pelas Fazendas Públicas, o incremento de pessoal deve levar em consideração, ainda, que, além das funções cartorárias ordinárias, a credora deve também executar a pesquisa de bens e o controle rigoroso de prazos. Afinal, qualquer falha no fluxo de processos guarda em seu bojo o potencial para fulminar o crédito pela prescrição intercorrente.

Para ilustrar o descompasso entre as realidades experimentadas pelo Poder Judiciário e as Fazendas Públicas, basta afirmar que, enquanto a Justiça Federal da capital do estado de São Paulo mantém os mencionados 200 funcionários e mais de 100 oficiais de Justiça, número, diga-se de passagem, insuficiente para a célere tramitação dos mais de 600 mil processos de execução fiscal, a Procuradoria da Fazenda Nacional ostenta em seus quadros, para tratar da mesma matéria (pela Divisão DIAFI), 4. Não se trata de erro de grafia, o número é este, quatro servidores efetivos e sete cedidos pelo Serpro.

Ainda sobre os investimentos necessários para concretizar o Novo Modelo, não pode ser esquecida a estrutura física para a recepção e tramitação de processos, atendimento a contribuintes e advogados, instalação do parque de informática e novos servidores. Merece atenção o artigo 35 do Projeto de Lei, segundo o qual todas as execuções não embargadas, ou seja, mais de 90% do estoque, serão remetidas às Fazendas Exequentes. No caso da Procuradoria da Fazenda Nacional em São Paulo, 21 novos prédios terão que ser adquiridos para o mesmo número de projeções Seccionais, já que nenhuma suportaria a nova demanda. Se não bastasse, outra sede Regional também teria que ser adquirida ou locada.

Diante do descomunal aumento de atribuições das Fazendas Públicas, há que se indagar se eventualmente foi elaborado estudo, planilha ou estatística a respeito do volume de recursos necessários para seu aparelhamento físico e humano.

Embora o projeto represente avanços em alguns pontos, é forçoso concluir que não serão atingidos os objetivos concernentes à redução do custo de tramitação dos processos, ao estímulo ao pagamento espontâneo e à diminuição de litígios.

Seja qual for o modelo de cobrança a ser adotado, os resultados pretendidos não serão atingidos se não forem solucionados os problemas concernentes: 1) ao acesso a informações; 2) ao parque de informática e inteligência; 3) às condições dignas de trabalho; 4) à ausência de política de recursos humanos; 5) à ausência de recursos humanos para realizar atividades meio; 6) à ausência de políticas positivas de estímulo ao pagamento espontâneo (ex: facilidade de crédito para bons pagadores); 6) à manutenção da dupla instância de cobrança (administrativa e judicial); 7) ao excesso de recursos (em sentido lato) processuais e administrativos; 8) à ausência de estatísticas e estudos a respeito dos gargalos da execução fiscal.

Entre as inovações legislativas e procedimentais salutares e convenientes, é justo destacar a possibilidade da apresentação de garantias administrativas antes do ajuizamento da execução, e também merecem aplausos os dispositivos que estabelecem a presunção absoluta de validade da notificação entregue no endereço declarado ao fisco. A previsão da criação do Sistema Nacional de Informações Patrimoniais dos Contribuintes é tão edificante que induz os incautos a especularem sobre o porquê desse cadastro, tão essencial, ainda não existir, em plena era da informação. Cumpre enfatizar que todos os avanços pontuais veiculados pelo Projeto de Lei 5.080/09 poderão ser criados independentemente da aprovação do Novo Modelo.


Parece, por fim, que não foram suficientemente trabalhadas soluções a problemas práticos que, a despeito de aparentemente serem reputados como “menores”, na realidade constituem os grandes gargalos a serem suprimidos.

Apesar da boa-vontade com que me propus a analisar a proposta de projeto, antevejo que a maior finalidade perseguida, qual seja, o aumento da eficácia do procedimento de cobrança, não será atingida. Muito pelo contrário. O modelo proposto é incompleto e, se assim permanecer, trará como resultado apenas a transferência da morosidade. Se antes os processos paravam no Judiciário, agora serão paralisados na PGFN e nas demais Fazendas credoras.

Mantidas as mesmas insuficiências demonstradas, o resultado não será diferente daquele hoje experimentado, seja qual for o modelo adotado ou a marca de fantasia que lhe queiram imprimir. Mesmo com nova roupagem, todo o esforço será fadado ao fenômeno fartamente conhecido até por aqueles que nunca em sua vida profissional tenham sequer passado perto de uma ação de execução fiscal: a ineficácia.

Soa precipitado propalar o esgotamento do sistema de cobrança quando até ferramentas mínimas de trabalho são negadas aos seus principais operadores. Em um rol interminável de carências, causa especial inquietude a ausência de bancos de dados e sistemas de informática confiáveis, modernos e eficazes. Muitas vezes objeto de eufemismos e omissões, os parcos investimentos em informática realizados pela PGFN, por exemplo, são desnudados quando instituições como o Bradesco divulgam investimentos anuais superiores a R$ 1 bilhão em Tecnologia da Informação.

Injusto falar em falência do sistema quando um representante da Fazenda Pública Nacional atua de maneira concomitante em mais de 9 mil processos de execução fiscal (dados da publicação “Números da PGFN” – Sinprofaz). Aos poucos e valorosos servidores são negadas oportunidades de capacitação profissional ou crescimento pelo mérito. O que dizer então de políticas de valorização profissional por meio do estabelecimento de metas e premiação de resultados?

Não raro, os responsáveis pela cobrança do crédito público não têm acesso sequer às mais comezinhas ferramentas de trabalho, como combustível para a viatura oficial, tinta para impressora ou papel.

Diante da realidade estrutural oferecida aos responsáveis pela cobrança, é no mínimo açodado falar em falência do sistema.

Investimentos em tecnologia de informação e capacitação dos agentes públicos, acompanhados por alterações processuais pontuais, poderiam gerar resultados mais profícuos a um gasto muito menor de energia e sem as mazelas de longos e imprevisíveis debates legislativos e políticos. A MP 449 mais uma vez nos ensina que o projeto encaminhado ao congresso pode ganhar contornos inimagináveis quando de lá sai aprovado.

Medidas pontuais, precedidas de estudos estatísticos destinados a identificar os gargalos do processo de execução, tendem a ser mais efetivas e embutem menores riscos. Sem o tratamento adequado das questões que atravancam o dia-a-dia dos responsáveis pela cobrança do crédito público, todo o novo modelo está fadado a repetir a rotina da construção de túneis em São Paulo, que não resolvem o problema do trânsito mas criam um enorme transtorno e simplesmente transferem o tráfego para outra via.

Ao transferir atribuições administrativas para o credor, desaparelhado e carente de estrutura física e humana, a tendência é que o novo modelo nada ou muito pouco acrescente em eficácia ao sistema de cobrança do crédito público. Da mesma maneira que um túnel transfere o trânsito, o novo modelo transferirá a morosidade. Se antes o processo dormia nos escaninhos do Judiciário, passará agora a hibernar nas prateleiras dos credores até ser atingido pela prescrição.

O maior mérito do PL 5.080/09 é estimular o debate sobre a temática das ações de cobrança, suscitar a busca pela eficácia de um sistema que não tem cumprido seu papel. No afã de oferecer solução mágica ao problema, mirou-se a resolução de situações externas ao cotidiano daqueles que exercem o protagonismo na função de constituir e cobrar o crédito público. Os problemas internos das Fazendas, no entanto, foram omitidos, o que dá a entender, àqueles não afeitos às agruras do dia-a-dia das execuções fiscais, que as Fazendas Públicas dispõem da mesma estrutura física e humana disponibilizadas ao Poder Judiciário. E como a realidade costuma insistir em não se curvar à lei, a assunção das novas atribuições implicará, como querem alguns, a diminuição do estoque de dívida, mas não como consequência da eficácia do sistema, mas da ineficiência dos credores, que não conseguirão operar milagres e afastar a inevitável prescrição.

Da mesma maneira que um paciente acometido pela hipermetropia, o Projeto de Lei 5.080/09 tenta enxergar longe, mas não consegue ver que as soluções estão perto, nem perceber os reais problemas enfrentados pelas Fazendas Públicas na ingrata missão de realizar o crédito pertencente à sociedade.

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