Tutela do Estado

Tratamento a doentes mentais é inadequado

Autor

  • Walter Ceneviva

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor entre muitas outras obras do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas na Folha de S. Paulo.

1 de agosto de 2009, 13h43

O Código Civil de 2002 manteve a capacidade de todas as pessoas como sujeitos de direitos e deveres na ordem civil.

Deu, porém, uma guinada técnica quando seu artigo 3º excluiu, da capacidade para a prática de atos da vida civil, "os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento".

No código de 1916, a mesma incapacidade atingia "loucos de todo gênero". A guinada é óbvia: a lei atual distingue enfermidade de deficiência mental. Para a lei civil, deficiência é uma coisa; enfermidade, outra.

A distinção nos remete ao artigo 196 da Constituição, pelo qual o direito de todos à saúde, enquanto dever do Estado, é assegurado para proteção contra o risco de doença e de outros agravos, isto é, males que não correspondem a moléstias conhecidas. Transpondo a regra constitucional para o campo das ciências biológicas, compreende-se que as dissidências entre os que conhecem o assunto sejam extensas e profundas, conforme se viu quando Erasmo de Rotterdam publicou, há 500 anos, sua obra-prima "Elogio da Loucura".

Para o direito, a saúde mental envolve questões próprias de cada indivíduo, sua inserção no grupo social ao qual se integre, compreendendo-o e sendo compreendido — ou não.

Não tenho competência para me meter nas discussões da prática médica, mas há inferências jurídicas que recolhi da carta de João Alberto Carvalho, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, publicada no domingo por Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da Folha.

Nela, o missivista discute a morosidade do Ministério da Saúde em implementar as medidas que indica para a melhora no atendimento de doentes ou deficientes mentais, para além do tratamento manicomial.

Ocorre ainda a lembrança de importante contribuição de Contardo Calligaris, que tratou do assunto, reportando-se a posições anteriores assinadas por Ferreira Gullar, os dois nesta Folha, com apoio na Lei 10.216/01, dando ensejo a esta variável que ofereço.

O artigo 1º da lei enuncia sua aplicação aos "direitos e à proteção das pessoas acometidas de transtorno mental", duas palavras novas ao vocabulário legal.

O intérprete jurídico vê que, no artigo 2º da lei, são enunciados nove direitos essenciais da vítima do transtorno. Na prática das ações judiciais, quem vai dizer se há transtorno mental e qual sua extensão, impeditiva ou não da compreensão dos direitos envolvidos, é um técnico da área médica (com previsão expressa no inciso V do parágrafo único do artigo 2º) — clínica, psiquiátrica ou psicológica.

Na realidade social deste país gigante, heterogêneo, com níveis diversos de capacitação técnica, os direitos previstos na lei são o que se chama de normas programáticas, também encontradas na Carta Magna. Definem anseios e sonhos do legislador, a serem atingidos em dia incerto do futuro. Esse é o campo em que situei as diferenças entre Contardo e Gullar.

Em matéria de transtorno de quem sofre deficiências ou enfermidades mentais, o progresso da ação governamental e a dosagem humanitária estão e continuarão longe da beleza das leis que as determinam.

Isso não significa que abdiquemos um só minuto de perseguir sua plena realização. Ao contrário: buscaremos sempre mesclar sonho e realidade.

[Artigo publicado originalmente na edição de 1º de agosto de 2009 do jornal Folha de S.Paulo]

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    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor, entre muitas outras obras, do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas, na Folha de S. Paulo.

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