Democracia desequilibrada

"O ativismo judicial é ruim independente do resultado"

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1 de agosto de 2009, 17h27

Spacca
Elival da Silva Ramos - Spacca

De cinco anos para cá, o Supremo Tribunal Federal passou a ser mais ativo e suprimir lacunas deixadas pelo Poder Legislativo. É o chamado ativismo judicial, quando o Judiciário, diante do vácuo deixado pelo Congresso Nacional em determinados temas, acaba criando regras típicas de lei pela via judicial. A instituição da fidelidade partidária e a criação delimitação de normas para demarcação de reservas indígenas são exemplos claros do chamado ativismo.

Essa postura mais ativa é bastante elogiada por alguns, mas também encontra ferrenhos críticos que enxergam no ativismo judicial uma interferência indevida no Legislativo e uma consequente quebra de harmonia entre os três Poderes. Um desses críticos é o professor e procurador do Estado de São Paulo Elival da Silva Ramos. O professor acaba de conquistar uma cadeira no departamento de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP. A façanha não foi pequena. Disputou o lugar com Marcelo Neves, renomado constitucionalista e hoje conselheiro do Conselho Nacional de Justiça. 

Ramos estudou o ativismo judicial praticado pelo Supremo a fundo. O resultado é a sua tese Parâmetros Dogmáticos do Ativismo Judicial em Matéria Constitucional. Nela, ele reconhece que, às vezes, o ativismo pode ter resultados bons, mas, mesmo assim, é prejudicial pois viola a separação entre os Poderes e, consequentemente, prejudica o sistema democrático. "O Judiciário está na verdade substituindo o Congresso e isto é ruim independentemente do resultado", diz. 

Ele admite que o ativismo é fruto, principalmente, da inércia do Legislativo, mas afirma que o problema precisa ser resolvido. Não se pode simplesmente reconhecer a incompetência legislativa e deixar o Judiciário cumprir missão que não é sua. “Não se pode, na interpretação de texto constitucional, chegar a um ponto em que se reescreva o seu conteúdo. O texto é um limitador objetivo, ele existe.” Para Ramos, o STF saiu dos trilhos ao regulamentar temas como fidelidade partidária, demarcação de reserva indígena, direito de greve do servidor e nepotismo. “O problema é que pode ser de uma forma atrapalhada — própria de adolescente”, disse ele ao acrescentar que o ativismo judicial não pode ser visto como uma coisa natural.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Elival da Silva Ramos explica que a solução é melhorar o Congresso e isso só com reforma política, a mãe de todas reformas. Ele defende que o país caminhe para o sistema parlamentarista, assim como França e Portugal. Além de dar aulas na USP e atuar na Procuradoria do Estado de São Paulo, Ramos dá aulas em cursos de especialização da Escola Superior do Ministério Público, da Escola Paulista da Magistratura, da Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo e da Escola Superior de Direito Constitucional.

Leia a entrevista

ConJur — O senhor já estudou bastante o chamado ativismo judicial. Qual a sua avaliação?
Elival da Silva Ramos — No meu trabalho, falo do ativismo praticado pelo Supremo Tribunal Federal, e não pelo Poder Judiciário como um todo, embora o ativismo seja realidade nas instâncias inferiores antes mesmo de chegar ao STF. Já analisei casos específicos e constatei que há disfunção na atividade do STF, que quer legislar sobre determinadas matérias. Isso é absolutamente negativo. A corte tem ultrapassado os limites do texto constitucional para criar novas soluções e, com isso, a competência do legislador fica usurpada.

ConJur — Em quais casos o senhor considera que o Supremo invadiu a competência do Legislativo?
Silva Ramos — O tribunal praticou ativismo na perda de mandato por desfiliação partidária, nepotismo, demarcação de reserva indígena e direito de greve do servidor. Posso afirmar, sem dúvidas, que existe uma tendência muito forte ao ativismo que não existia no passado no Supremo.

ConJur — Existe algum caso pendente de julgamento que o STF pode suprir novamente o atraso do Congresso?
Silva Ramos — Talvez na ADPF 54 sobre aborto de fetos anencéfalos. Acredito que a tendência do tribunal seja a de autorizar. Também sou a favor, mas que seja autorizado no lugar próprio, que é o Código Penal. Não é dado ao Judiciário o direito de escrever isso sem previsão no texto constitucional. Nesta ADPF, não estão discutindo a inconstitucionalidade de uma norma, pois ela não existe. O ideal é dizer ao Congresso que essa legislação está atrasada e que ele deve tomar providências. Nesse julgamento, o STF vai atacar a questão no caso de fetos anencéfalos, mas existem outras tantas situações que o aborto é justificável e que vão ficar de fora.

ConJur — O ativismo é de todo ruim, então?
Silva Ramos — Pode ser positivo quando a jurisprudência ou a legislação está defasada em relação aos fatos e surge uma interpretação criativa, mas de uma norma já existente. Nesse caso, pode e é bastante importante, mas eu não chamo isso de ativismo. Chamo de interpretação criativa, mas presa aos parâmetros normativos. Ativismo é quando o tribunal ultrapassa o limite do texto normativo e passa a criar. Existe um equilíbrio entre a norma e interpretação, que é rompido pelo ativismo.

ConJur — O senhor fala de interpretação criativa. Como é isso?
Silva Ramos — O nome correto que se dá é interpretação evolutiva, que usa a interpretação sistemática e técnicas de interpretação para adequar a norma à realidade social. Isso é uma coisa que todo sistema faz. Quero apenas dizer que há limites para se fazer isso. Não se pode, diante de um texto legal que não comporta minimamente na sua letra uma determinada interpretação, usar um parâmetro mais claro a ponto em que se reescreva um novo texto para adequar a norma que se deseja aplicar. O ativismo que vem da mais alta corte do país é muito pernicioso. O nosso sistema, enquanto comportou um tribunal de cúpula corrigindo certos excessos ativistas, teve equilíbrio. O problema é quando o ativismo é patrocinado pelo próprio Supremo. Essa postura tem efeito devastador não só em termos do resultado concreto, mas pelo efeito de imitação e de acatamento das jurisprudências do STF.

ConJur — O senhor não acha que, com a postura ativista, o STF criou soluções justas?
Silva Ramos — Não estou discutindo o mérito. Há uma série de normas que seriam boas para o país, mas que dependem da intervenção do legislador. O Judiciário está na verdade substituindo o Congresso e isto é ruim independente do resultado. O Legislativo, que já se sentia de um lado pressionado pelas medidas provisórias, que tomam o poder da casa em grande parte, agora tem o ativismo do STF. O Congresso fica, então, completamente afogado por duas tendências: uma do Executivo de legislar e outra do Judiciário.

ConJur — A culpa não é da inércia do Legislativo?
Silva Ramos — O atraso do Congresso é justamente uma das causas do ativismo. O Judiciário se vê muita vez instado a suprir a lacuna, mas nem sempre é possível fazer isso. Há escolhas políticas que têm de ser feitas e o Judiciário não tem legitimidade para isso. Os ministros não podem legislar. Não foram escolhidos por voto direto do povo. O país não pode perder a essência democrática. Goste ou não do Congresso, ele é o órgão representativo por excelência. É lá que as pessoas têm acesso, é lá que as pessoas podem levar suas aspirações, é lá que a sociedade é representada. Não é no STF.

ConJur — Como tornar efetivo, então, direitos constitucionais carentes de regulamentação?
Silva Ramos — Só dando ao Legislativo mais eficiência, e não simplesmente destruindo. Não se pode aceitar o ativismo como uma coisa normal. No caso do nepotismo, por exemplo, é um problema gravíssimo que precisa de lei. A solução não pode vir de uma súmula. Todo mundo está de acordo que ninguém deve ser beneficiado na administração por ser parente. A solução do STF, como qualquer outra, está sujeita a interpretação. Diz que é nepotismo nomear e beneficiar parentes até terceiro grau na linha colateral. Significa que nomear um sobrinho ou um tio é nepotismo, nomear um primo-irmão não é nepotismo. Então, como é que vamos explicar em sala de aula que fere a moralidade administrativa nomear sobrinho, mas não nomear primo?

ConJur — E como dar mais eficiência ao Congresso?
Silva Ramos — Só através da reforma política. Dizer isso é chover no molhado. Lembro que Franco Montoro já dizia que a mãe das reformas é a reforma política. É por meio dela que se faz as outras reformas. Não adianta patinar em reforma tributária, reforma previdenciária e reforma trabalhista. Quem faz as reformas é a estrutura política. Se a estrutura política não é reformada, nada se resolve. E não falo de uma reforma para gastar tempo e energia. É necessário enxugar o calendário eleitoral. Há medidas que o país já está maduro para adotar como, por exemplo, o voto distrital. Isso seria extremamente importante para reduzir o número de partidos no país. Com isso, é possível combater a maleficência operante. Sem redução do número de partidos do Congresso, não tem como aumentar a eficiência do Parlamento.

ConJur — O senhor considera necessário também mexer no sistema de governo?
Silva Ramos — Sim. O primeiro passo é instituir a figura do primeiro ministro, que praticamente já temos, e aos poucos criar condições de adotar um sistema parlamentarista, à moda francesa ou portuguesa, mas com adaptações. São mecanismos variados e complexos que precisam ser pensados com seriedade e que teriam um impacto positivo na política brasileira.

ConJur — Qual postura se espera do Judiciário?
Silva Ramos — O Judiciário é talhado para aplicar e também apontar defeitos de uma norma já posta. Como eu disse, até certo ponto, por meio da evolução da interpretação, pode melhorar alguma norma defeituosa, mas tem limite. O limite é o que o texto constitucional estabelece. Se o julgador aplicar algo aquém daquilo que o texto possibilita, teremos o passivismo judiciário, que é uma idealização conservadora. Trabalhar a lei dentro do seu limite legal, com elementos de interpretação, para estender a outras situações é perfeitamente normal. Passou desse limite, é ativismo judicial.

ConJur — O fato de o Supremo ser uma corte política não dá o direito de praticar ativismo?
Silva Ramos — Essa é outra confusão. A imprensa, por exemplo, tem um papel político inegável. Quando publica uma matéria com a linha editorial da empresa, ela mostra uma visão e influencia pessoas. Esse papel não é igual ao papel de um deputado. A corte tem um papel político quando decide uma questão política e que irá influenciar nesse meio, mas isso não tem relação com o papel do parlamentar. O papel do STF é mais vinculado. O constituinte, depois o legislador ordinário, tem muito mais liberdade de ação. Dizer que o STF é uma corte política? Assino embaixo. Mas precisa-se entender que, embora política, é Poder Judiciário, não é Legislativo.

ConJur — Como o senhor avalia a atual composição do STF?
Silva Ramos — Posições ativistas ganharam mais fôlego de cinco anos para cá. No passado do STF, especificamente na época do Regime Militar, a crítica era outra, era de passivismo. O tribunal era motivado e pressionado pela situação política da época. Já chegou a ter cassações e intervenções variadas na corte. Não posso dizer também que o ativismo é problema da Constituição de 1988. A carta está em vigor há mais de 20 anos e nos primeiro 10 anos não tínhamos ativismo. Por isso, é preciso corrigir essa disfunção do Judiciário para que a democracia não seja ameaçada ainda mais.

ConJur — O senhor considera bom o sistema de escolha dos ministros do Supremo?
Silva Ramos — Não. O sistema atual é péssimo e necessita de mudanças. Mas também não dá para imaginar uma corte composta por 11 juízes de carreira. Sou contra esse tipo de composição. Pelo mundo, as cortes constitucionais, em geral, têm uma composição mais política mesmo, mas o importante é dividir a responsabilidade e o pluralismo das indicações. O ideal seria indicações de ministros de quatro origens diferentes. Com isso, teríamos uma posição mais abrangente daquilo que é a sociedade.

ConJur — Essas indicações deixariam de ser de responsabilidade do presidente da República?
Silva Ramos — Esse modelo poderia continuar, mas sou a favor de que a Presidência da Câmara e do Senado também faça indicações, pela figura do presidente de cada casa, já que é preciso individualizar a responsabilidade pela escolha. A OAB também poderia indicar ministro para o STF, como no sistema francês. Outra mudança importante seria elevar o número de ministros para ajudar na sobrecarga dos trabalhos. No começo da República, na primeira Constituição, eram 15 ministros. Fixar mandato para os ministros também é uma boa medida. Assim, ninguém iria para lá com a finalidade de se aposentar.

ConJur — A troca de ministros a cada 11 anos não pode gerar insegurança jurídica?
Silva Ramos — Não se for feita por etapas. Podem ser renovados quatro ministros por vez, por exemplo. Assim, é possível ter certa estabilidade na composição com uma renovação. Está na hora de o STF ser melhorado em diversos pontos. Há ativismo, sobrecarga de trabalho, mas existem outras questões que podem e devem ser abordadas. Outra solução também é o STF ter uma diminuição de suas competências. Ele precisa fazer menos e melhor.

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