Vinte anos

STJ mudou comportamentos e garantiu direitos

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25 de abril de 2009, 8h20

U.Dettmar/STJ
STJ - vertical - U.Dettmar/STJCena 1: Em 2005, o dono de uma fazenda de 2,5 mil hectares recebeu a cobrança de uma dívida de Imposto Territorial Rural. O Fisco sustentava que desde 1995 o tributo não era recolhido aos cofres públicos. Nada muito fora do normal, exceto pelo fato de que desde 1995 a propriedade tinha sido invadida pelo Movimento Sem Terra e seu dono nunca mais conseguiu retomá-la.

O Estado falhou ao não proteger o direito à propriedade, não garantiu a reintegração de posse ganha pelo fazendeiro na Justiça e, agora, cobrava o tributo sobre uma área da qual o dono não tinha posse havia 10 anos. Ao derrubar a cobrança do Fisco, o ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, classificou a cobrança e os recursos judiciais do Estado como uma “clara fantasia jurídica”.

Cena 2: Em 2000, uma mãe paranaense recorreu ao STJ inconformada por ter seu dinheiro parado na conta do Fundo de Garantia enquanto seu filho, soropositivo, sofria privações no tratamento. A lei do FGTS permitia o saque apenas para tratamento de câncer (neoplasia maligna). Esse foi o argumento da Caixa Econômica Federal, derrubado em todas as instâncias, para apresentar o recurso ao tribunal superior: o dinheiro vale para tratar câncer, mas não para tratar Aids.

Desta vez, foi o ministro José Delgado, hoje aposentado, que repeliu a alegação. “Não é possível tal apego à letra da lei, principalmente quando se cuida de tratamento de doença mortal, até mais do que o câncer, como é o caso da Aids.” De acordo com o ministro, “é evidente que a intenção do legislador foi proteger e amparar os casos de enfermidades graves, porventura sobrevindas a familiares de titulares das contas do FGTS. O fato de nomear apenas o câncer não desvirtua tal intenção”.

As duas decisões, distintas, têm em comum a atuação firme do STJ como freio de abusos do Estado, no primeiro caso, e na garantia de direitos, no segundo. O tribunal, que completou 20 anos de sua instalação no último dia 7 de abril, está recheado de histórias como essas. “Sem o STJ, o país não teria avançado tanto na garantia de direitos, cujo espectro foi alargado pela Constituição de 1988”, afirmou o ministro Cesar Asfor Rocha, presidente da Corte, à revista Consultor Jurídico.

Asfor Rocha tem razão. Grandes avanços sociais nasceram graças a decisões do STJ. Justiça seja feita, magistrados de primeira e segunda instância do Judiciário contribuíram com suas decisões inovadoras. Mas se as decisões, contestadas, não encontrassem no tribunal superior uma caixa de ressonância, não provocariam quaisquer transformações.

Em suas duas décadas, o STJ decidiu que a união homoafetiva deve ser analisada à luz do Direito de Família, reconheceu que a empresa que polui pode ser responsabilizada penalmente por delito ambiental e fez o Código de Defesa do Consumidor sair do papel. Para o ministro Asfor Rocha, “os direitos do consumidor não teriam vingado sem o apoio firme do STJ”.

O presidente ressalta também que, mais do que garantir os direitos, o tribunal procura legitimá-los. Como? Ao não dar guarida a teses abusivas criadas a partir do mesmo Código do Consumidor. Dessa forma, o STJ fortalece suas regras e dá segurança jurídica também às empresas.

O advogado Saul Tourinho Leal, do escritório Pinheiro Neto, atribui ao STJ méritos pelo avanço na concretização dos direitos humanos após a Constituição de 1988. “O tribunal indicou com coragem o foro competente para julgar temas delicados como o massacre de Eldorado dos Carajás e a chacina no Carandiru. Estou certo de que a história lhe fará justiça, se é que já não o faz”, afirmou.

Advogados apontam também como decisão crucial do STJ a de colocar um freio na indústria de ações de indenização por danos morais, que crescia a passos largos depois da Constituição de 88. O tribunal decidiu que, sem entrar no mérito das discussões, poderia rever valores de indenizações se estivessem muito altos ou se fossem ínfimos. Isso esfriou o enriquecimento ilícito a partir de indenizações milionárias que não se fundamentavam.


“Pelo rigor absoluto, o STJ não deveria apreciar a quantificação do dano moral, porque se trata de matéria de fato, não de direito. Até que, por conta da devolução indevida de um cheque de pequeno valor, o Banco do Brasil foi condenado a pagar R$ 220 milhões de indenização. Nesse instante, o STJ viu que deveria enfrentar a questão da quantificação do dano moral”, lembra Asfor Rocha.

O decano do tribunal, ministro Nilson Naves, único remanescente da primeira formação, diz que a importância da Corte está no fato de julgar os problemas do dia-a-dia do cidadão, de regular as ações cotidianas.

Tribunal no furacão

Mas não foi só de alegrias e boas passagens que se fez o caminho dos 20 anos do STJ. O tribunal sofreu alguns revezes duros que arranharam sua imagem. Nesse período, teve dois ministros acusados de corrupção afastados de seus gabinetes e por pouco não se afunda na montanha de processos que se acumulava sem controle em seus corredores e gabinetes.

O primeiro baque sofrido pelo tribunal foi a acusação contra o ministro Vicente Leal de Araújo. Em dezembro de 2002, o ministro foi afastado do tribunal sob acusação de receber propina para conceder Habeas Corpus. Depois de responder a processo administrativo e judicial, nada ficou comprovado. Ainda assim, ele pediu aposentadoria do STJ em março de 2004.

Três anos depois, outro ministro foi alvo de acusação semelhante. Na Operação Hurricane, o ministro Paulo Medina foi acusado de negociar decisões judiciais por intermédio de seu irmão, Virgílio. O processo ainda corre no Supremo Tribunal Federal. No caso, Medina é acusado de conceder liminar para liberar máquinas de caça-níqueis apreendidas em troca de R$ 1 milhão.

Segundo a defesa do ministro, que está afastado há dois anos do cargo, trata-se de um típico caso de exploração de prestígio. Prova disso, sustenta a defesa, é que a decisão de Medina é fundamentada em diversos precedentes do STJ. Pela tese, o irmão do ministro teria negociado a decisão sem seu conhecimento.

Nos dois casos, o afastamento dos magistrados preservou a imagem da instituição e, até agora, não se provou que tenham cometido delitos. No caso de Medina, o Supremo recebeu a denúncia no fim do ano passado e não há previsão para que o mérito do caso seja julgado.

Processos aos milhões

O principal fantasma do STJ hoje é o volume de trabalho. Nos 20 anos, 3 milhões de processos foram julgados pelo tribunal. Do total, 1,5 milhão só nos últimos cinco anos. O crescimento repentino e vertiginoso da demanda obrigou o tribunal a se mexer. O gigante procurou saídas para não se tornar paquidérmico.

Vieram então a Lei de Recursos Repetitivos e a informatização do andamento processual. Dos 33 juízes que compõem a Corte, não há um sequer que não seja entusiasta das duas iniciativas. Há os que não se contentam apenas com elas, mas todos, sem exceção, admitem que elas chegaram para salvar o tribunal de se tornar simplesmente inviável.

Com a Lei de Recursos Repetitivos, o tribunal deu racionalidade ao seu trâmite processual. Pelo sistema, em vez de julgar milhares de vezes a mesma questão em processos diferentes, escolhe-se um dos processos como paradigma e o resultado do julgamento deste caso é aplicado a todas as ações com igual teor que tramitam no próprio tribunal e nas demais instâncias. Enquanto não se decide a questão, todos os processos sobre o tema ficam parados em seus tribunais de origem.

Até hoje, 120 temas foram separados dos demais por serem repetitivos e para serem julgados pelo novo rito. Não há cálculos exatos de quantos processos esses 120 temas abrangem. Mas se estima que, julgados, livrarão o tribunal mais da metade de sua carga.


O mecanismo não obriga juízes e tribunais de segunda instância a decidir da mesma forma que o precedente sedimentado pelo STJ. Ou seja, não é vinculante. Mas as decisões que contrariem a jurisprudência no caso dos recursos repetitivos nem chegam a ser distribuídas aos ministros. Param antes em um gabinete especial da Presidência, que os rejeita e determina sua reforma de pronto.

Em recente entrevista à ConJur, o ministro Luís Felipe Salomão deu uma ideia do impacto do filtro nos trabalhos do tribunal. “Em junho de 2008, a distribuição mensal era de 1,4 mil a 1,6 mil processos. Era isso que eu recebia no gabinete. Hoje, a distribuição é de cerca de 500 processos por mês”, conta.

Ainda assim, ministros consideram que o legislador deveria permitir que o STJ adotasse mecanismos semelhantes aos que dispõe o Supremo Tribunal Federal, como a Súmula Vinculante e a Repercussão Geral. O vice-presidente da Corte, ministro Ari Pargendler, afirma que a inovação foi salutar, mas defende a Súmula Vinculante para o tribunal. “Seria importante para reduzir o número de recursos.”

No começo do ano, o STJ deu início a um imenso mutirão tecnológico. Mais de 250 funcionários estão dedicados, em tempo integral, à tarefa de digitalizar 450 mil processos. O número equivale a 12 quilômetros de processos empilhados. Desde janeiro, todos os novos recursos que chegam ao STJ são digitalizados e os autos devolvidos aos tribunais de origem — isso forçará os tribunais de segunda instância a aderir mais rapidamente à digitalização, porque vai faltar prateleira.

O objetivo do ministro Asfor Rocha é acabar de vez com aquela imagem dos processos sendo amarrados como fardos e empilhados como se estivessem em armazéns. “Com a virtualização, o acesso à Justiça ficará melhor. Os advogados poderão acessar os processos 24 horas por dia pela internet, a um custo muito menor do que o atual”, afirma o presidente do STJ.

O processo digital poderá até mesmo levar à modificação dos códigos processuais. Isso porque, como os advogados poderão ter acesso online ao recurso, acaba com a necessidade de abrir prazo para que cada uma das partes pegue os processos em cartório, escreva sua petição e depois os devolva. Os prazos poderão ser abertos para manifestação ao mesmo tempo, já que as partes terão acesso aos autos pela internet, por meio de certificação eletrônica.

Como já se viu, não seria a primeira transformação que o STJ provoca na sociedade. Em um tribunal onde até pouco tempo apenas entre o protocolo e a distribuição do recurso ao gabinete de um ministro se passavam quatro meses, as novidades vieram quase tarde. Mas, se levadas a cabo, podem fazer com que o tribunal continue a merecer a alcunha de Tribunal da Cidadania.

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