Debate fora do tom

Crise expõe desavenças entre JB e seus pares

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23 de abril de 2009, 18h25

Brasília amanheceu cinza nesta quinta-feira (23/4), com ventos frios e previsão de pancadas de chuva. Como no Supremo Tribunal Federal, o tempo fechou de repente e não há sinais de que vá melhorar tão cedo, até porque se engana quem imagina que os ânimos serenaram. As acusações que Joaquim Barbosa fez contra Gilmar Mendes não podem ser tachadas como um simples bate-boca, como outros que ocorreram antes na Corte (clique aqui para ver o vídeo do debate).

Barbosa acusou o colega de estar destruindo o Judiciário. Ao colocar em xeque a lisura do presidente da Corte à qual pertence, o fez também com relação à legitimidade das próprias decisões do tribunal. As acusações feitas por ele até hoje haviam sido contra seus pares de bancada, não contra a direção do tribunal. "Ele não atacou um ministro apenas, agrediu o tribunal inteiro", discursou o presidente da OAB paulista, Luiz Flávio Borges D’Urso, na posse dos novos desembargadores paulistas, nesta quinta.

Joaquim Barbosa também se referiu a "capangas mato-grossenses" comandados por Mendes. Uma acusação grave que deixa o acusador diante de duas opções: ou prova o que diz, ou se retrata para não ser acusado, no mínimo, de preconceito. Porque certamente não se referiria a capangas se em vez de Mato Grosso, Gilmar Mendes tivesse certidão de nascimento do Rio de Janeiro ou de São Paulo. "A discriminação de alguém pela terra natal é tão odiosa quanto pela cor da pele. Surpreende ver um homem com passado de luta contra a discriminação menosprezar Mato Grosso dessa forma", afirmou o advogado Arnaldo Malheiros Filho à revista Consultor Jurídico.

Barbosa disparou seus ataques com a firmeza de quem já os tinha engatilhados. Recompôs a toga que teimava em espalhar-se como quem reafirmava a sua indiscutível condição de membro da corte. “Me respeite”, repetia. De popularidade ele entende, e por isso desafiou Mendes a sair às ruas. Desde que relatou a denúncia contra os 40 do escândalo mensalão, JB ou Joca, como é conhecido no meio, está acostumado a ser aplaudido por onde passa: nas ruas, em restaurantes, e até mesmo em aviões de carreira.

Primeiro ministro negro do Supremo, Joaquim Barbosa não conseguiu superar essa barreira. Ele mesmo queixou-se ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o indicou para o posto, que se sente discriminado entre seus pares. Ouviu do presidente que deveria superar um possível "complexo de inferioridade" e se impor pela qualidade do trabalho. "Você é igual a qualquer um deles, não tem porque ficar agachado", afirmou o presidente. Lula ofereceu-se como exemplo: "Eu nem inglês sei, mas sou presidente. Eu me imponho com meu trabalho", reforçou.

Alguns colegas admiram sua retidão, sua cultura geral, o gosto literário, sabem que é um homem viajado com visão de mundo, mas não reconhecem virtudes em sua cultura jurídica. E é justamente nessa área que se trava a sua batalha. Os colegas costumam lembrar que a principal contribuição doutrinária do ministro, até agora, foi inventar o pedido de vista do próprio voto — algo inédito na história do tribunal. 

Ao chegar ao Supremo, Barbosa foi logo brigando com o então enfant terrible da casa, o ministro Marco Aurélio, a quem acusou de fraudar distribuição de processos. Ainda neófito nos pormenores da Corte, só não foi punido porque o presidente à epoca, Nelson Jobim, pôs panos quentes no caso. Marco Aurélio não deixou barato. Entrou com representação na presidência e provou que não houve fraude, mas apenas a redistribuição de um processo cujo relator, Joaquim Barbosa, não estava em Brasília na sexta-feira à noite. Estabelecida a verdade, Marco Aurélio abriu mão da representação. Barbosa retratou-se.

Veio então nova acusação. Desta vez, contra o ministro aposentado Maurício Corrêa. Sob os holofotes da TV Justiça, Barbosa acusou o ex-colega de promover tráfico de influência. Corrêa telefonara ao ministro pedindo preferência no julgamento de uma causa, mas não compareceu ao plenário para fazer sustentação oral no dia do julgamento. Para se defender, o ex-ministro foi até o Supremo e exibiu, da tribuna, a procuração que tinha nos autos daquela ação. Corrêa representou contra o ex-colega, que foi obrigado a se retratar judicialmente.

O alvo seguinte foi o ministro Eros Grau, acusado de conceder Habeas Corpus a “um cidadão que apareceu no Jornal Nacional oferecendo suborno”. Barbosa fez uso do clamor que a imagem televisiva costuma provocar nos mais incautos. O cidadão em questão era Humberto Braz, investigado na Operação Satiagraha. Neste caso, o bate-boca por pouco não se transformou em pugilato quando Eros Grau lembrou que ele próprio havia concedido um HC ao banqueiro Daniel Dantas para garantir seus direitos na CPI das Escutas. Barbosa passou uns dias sem aparecer no tribunal. Hoje se sabe que as tais imagens do JN só serviram para a TV, já que como prova estão comprometidas por terem sido editadas.

A penúltima rusga do ministro ocorreu no TSE, onde ele classificou de “absurdo” um voto do ministro Arnaldo Versiani. Indignado, Versiani pediu que o ministro retirasse o qualificativo que considerou injurioso. JB fez pouco do pedido. “Vossa Excelência pode dizer que meus votos são absurdos que eu não me importo.”

Todos os incidentes chegaram à opinião pública graças a uma invenção genuinamente brasileira: a transmissão ao vivo pela televisão das sessões do Supremo e do TSE. Trata-se de um avanço em termos de transparência e de democracia que carrega um risco inevitável: o de transformar em crise episódios que passariam despercebidos se ocorressem entre quatro paredes, longe das câmaras. Como acontece, por exemplo, na Suprema Corte dos Estados Unidos. Se algum juiz do país vizinho Argentina xingar a mãe do colega, também ninguém ficará sabendo, mesmo que depois eles posem para foto com sorrisos amarelos.

Debates e discussões acirradas sempre aconteceram. São salutares e até necessários, pois o que se espera da Suprema Corte são decisões amadurecidas e sedimentadas. Vem daí a tal segurança jurídica que molda as ações da sociedade.

É possível entender que Gilmar Mendes não goza de muita popularidade devido a seus posicionamentos jurídicos sobre temas polêmicos, como as espalhafatosas operações da Polícia Federal, as algemas, as prisões preventivas e as escutas telefônicas, por exemplo. Afinal, em um país com profundo déficit de Justiça, essa história de Estado de Direito soa como papo de intelectual — mais fácil é prender e perguntar depois.

Um ministro do Supremo, ouvido pela ConJur, torce para que esses atos sejam apenas um problema de estilo do ministro Joaquim Barbosa e que seu objetivo seja dos mais nobres. O ministro confessa que a sensação de constrangimento entre os colegas é generalizada. “Se pudéssemos voltar os ponteiros do relógio, provavelmente isso não se repetiria.” Na reunião da noite de quarta-feira eles concordaram que se tornou arriscado dar oportunidade para Barbosa. Decidiu-se que ele será tratado "com mais cerimônia".

Nesse caso, talvez tudo não passe de tempestade em copo d’água e, no final, os 11 tomarão o lanche da tarde juntos, como sempre fizeram, em meio a boas gargalhadas. Em paz. Pelo menos até o ano que vem, quando Barbosa presidirá o Tribunal Superior Eleitoral, e, lá por 2012, o próprio Supremo Tribunal Federal.

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