Função social do contrato

Dono da obra, em contrato de empreitada, não responde pelo crédito

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15 de abril de 2009, 18h13

A circunstância de ser o dono da obra, em algum contrato de empreitada, não basta para alforriar aquele que ocupa essa atualmente cômoda situação (para fins de aplicação do direito do trabalho), de participar para a satisfação do crédito reconhecido como devido a algum trabalhador, quando contrata com empreiteiro que não tem idoneidade financeira para honrar seus compromissos, ou não tem interesse em fazê-lo.

Em outras palavras, há responsabilizar, ainda que subsidiariamente — pessoalmente entendo que deva ser a responsabilidade solidária, mas rendo-me ao sentir por ora dominante — o dono da obra em situações como a aqui enfocada, por possíveis créditos reconhecidos em juízo ao trabalhador, atento a que as diversas possibilidades contratuais não podem servir para ilaquear e/ou prejudicar o trabalhador, máxime quando as partes envolvidas, ou uma delas, não tem como — ou não quer simplesmente -responder pelas obrigações trabalhistas que lhe cabem satisfazer.

Soa um desolador retrocesso, permitir que os que celebram um contrato possam, quando ou como resultado de sua execução, provocar e/ou impingir prejuízos a terceiros, o que não se harmoniza, de forma alguma, com a visão hodierna da função dos contratos. Aliás, como superiormente dito por André Soares Hentz:

“há uma alteração do eixo interpretativo do contrato, que deixa de ser visto como resultado da vontade das partes e da mera satisfação de seus interesses, passando a representar um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade, encontrando aí sua razão de ser e de onde extrai a sua força.

 Passa-se a admitir que, além da vontade das partes, o contrato tenha outras fontes de integração de seu conteúdo, que são materializadas na função social que lhe foi atribuída, na boa-fé exigida objetivamente dos contratantes e na busca da justiça contratual” (1).

Parece claro que, sendo “um instrumento de convívio social e de preservação dos interesses da coletividade”, como apontado pelo eminente autor que se vem de mencionar, não se pode imaginar/conceber que um contrato celebrado pelos que tenham interesse no que nele estipulado, venha a prejudicar terceiros, sem que estes tenham como evitar e/ou se ressarcir dos prejuízos que acaso venham a experimentar, situação essa que, se verificada, contraria, de maneira inconciliável, aqueles atributos que, hodiernamente, são tidos como característicos dos contratos.

Aliás, pela absoluta pertinência com o tema que ora se pretende abordar, ainda que de maneira muito breve, de transcrever as pergunta e resposta da preclara professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges, verbis:

“Deve-se perguntar: para que serve o contrato? O contrato tem a finalidade socioeconômica de satisfazer os interesses das partes, principalmente com base num mecanismo de troca. Sua finalidade não é prejudicar terceiros. Se o mecanismo de satisfação de interesses das partes prejudica terceiros, violando seus direitos, há ilicitude, desvirtuando-se o pacto de sua função socioeconômica, devendo ser corrigido” (negritei)(2); embora pareça claro que um contrato celebrado pelos que nele tem interesse não pode prejudicar terceiros, bem é de ver que, a se entender, como se vem entendendo, que o dono da obra, num contrato de empreitada, não responde pelo crédito que o empreiteiro que com ele contratou deve a um empregado que tenha, por seu turno, contratado, estar-se-á, falando sem refolhos, permitindo que um contrato celebrado para atender os interesses das partes contratantes, venha a, sem-cerimônia, prejudicar terceiro, e o que é mais grave, um terceiro que não exerce atividades econômicas, mas, antes, que depende do seu trabalho para manter-se e à sua família.

Na quadra em que estamos, onde se batalha tanto, no orbe jurídico, pela observância, entre outros, de princípios como os da boa-fé, da proteção da confiança, da função social do contrato — lembro que tive sob as vistas, não me recordando agora qual o autor, infelizmente, em texto atinente à questão da confiança, mas que estendo aos demais, por identidade de motivos, o empenho é grande, visando o respeito a esses princípios, porque os mesmos, é difícil dizer, mas é preciso fazê-lo, não são tão espontaneamente assim seguidos —, o sentir que prevalece, é o de que um contrato, qualquer que seja, não interessa apenas aos que celebram-no, mas, também, à sociedade como um todo, daí porque não se pode tolerar que um ajuste, ainda que formalmente inatacável, venha a prejudicar terceiros; nesse passo, tenho por oportuna a transcrição de ensinamentos do grande Professor Antonio Junqueira de Azevedo (03), para quem:


“A idéia da função social do contrato está claramente determinada pela Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. º, inciso IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver um contrato como um átomo, algo que interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade…”.

Bem é de ver que a preocupação com esses princípios, está à base do vigente Código Civil, para ficar apenas nele, tanto que se sabe que regido, como um todo, pelos princípios da operabilidade, eticidade e socialidade, interessando-nos, mais de perto, nesse momento, os dois últimos, atento a que:

“O grande fundamento da eticidade é o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal); fixam-se, a partir dessa diretriz, contornos de valorização do ser humano dentro da sociedade.

 Em decorrência da eticidade, critérios como confiança, probidade, equilíbrio, cooperação e lealdade passam a ter maior relevância para o ordenamento por serem tais valores essenciais à sociedade, merecendo prestígio no momento de aplicação da norma (…)

 “O princípio da socialidade instrumentaliza, conforme entendimento de Judith Martins-Costa, a diretriz da solidariedade social, constante no artigo 3º, I e III, da Constituição Federal. Em decorrência da socialidade, altera-se a visão individualista presente no CC1916, possibilitando o entendimento de que os institutos e as relações privadas não podem ser desvinculados de um sentido social. Dessa forma, compreende-se que as relações privadas devem ser analisadas não somente sob o prisma do vínculo entre os particulares, mas também sob a ótica dos efeitos que tais relações projetam sobre a sociedade.

 Não se atesta, contudo, que o referido princípio surge em detrimento do direito individual, perdendo este espaço para o poder público. A correta leitura da socialidade permite a compreensão de que o Código de 2002 enalteceu a importância dos institutos do direito privado para a sociedade, pois a funcionalização dos institutos da propriedade e do contrato evidencia a preocupação do legislador em proteger esses institutos em razão da importância que têm para a sociedade” (4).

Fica claro e irrecusável, portanto, o grande relevo dado ao comportamento ético e probo de todos os integrantes do corpo social, os quais continuam com a indispensável liberdade para cuidar e perseguir seus legítimos interesses, só não podendo buscá-los sem considerações para com o próximo, mormente em relação ao mais fraco, é dizer:

“Se por um lado a eticidade convoca os atores sociais para a luta em nome da lealdade, da probidade e da honestidade, por outro, a socialidade busca evitar que o mais forte –apenas por ser mais forte- faça prevalecer os seus interesses sobre os do mais fraco. A eticidade diz: seja leal; a socialidade diz: seja justo. São valores complementares na formação de um novo paradigma jurídico” (5).

Especificamente quanto ao princípio da socialidade, pela clareza e consistência da exposição, de reproduzir a posição de Fernando Costa Azevedo (6): “Pelo princípio da socialidade, busca-se conciliar as dimensões individual (ser humano enquanto indivíduo em si mesmo) e política (ser humano como cidadão, isto é, como ser social, relacional, condicionado pelo ambiente em que vive) da pessoa humana. Ou seja: busca-se um afastamento das concepções radicais de um coletivismo que anule a pessoa humana e de um individualismo que não leve em conta a necessidade da pessoa respeitar certos bens e valores coletivos”.

 Irrecusavelmente, esse novo paradigma para o direito civil como um todo, repercute nas relações contratuais.

Fique claro que não se está aqui afirmando que os fins sempre visados com a celebração de algum contrato não contam mais, longe disso, pois continuam contando e muito, o contrato continua a ser privilegiada fonte de circulação de riquezas, e tem a função de atender aos interesses das partes; apenas observo que, para atingir esses escopos, não podem os interessados ignorar os interesses de outros, da sociedade, porquanto, como dilucida Rafael Wainstein Zinn (7):


“Atualmente, os pactos continuam a servir de instrumento para a circulação de riquezas, mas já não podem simplesmente atender a interesses meramente individuais; devem estar de acordo com os interesses sociais, da coletividade”

Curioso notar o quanto é difícil a certos segmentos da sociedade, habituados com a busca pelo ter, sem qualquer consideração com o ser, a se limitar a lutar pelos seus interesses (aqui relevam os legítimos, não é demais repetir), sem afogar os interesses do outro, que com eles contratam, antes, reconhecendo-os ou, como superiormente dito pela pena de Lauro Augusto Moreira Maia, verbis: “O comportamento dos negociantes deixa de ser ‘a tentativa de ganhar mais’ para ser a busca pelo ‘ganhar sem aniquilar o outro e reconhecendo no outro todos esses valores” (8); logicamente, não podem os dois contratantes se juntar para aniquilar e/ou não reconhecer, ignorando-os, os direitos de um terceiro, no que nos importa de momento, um trabalhador, cujo trabalho beneficia-os.

E assim há mesmo de ser, já que a rede de ligações entre as pessoas no mundo contemporâneo, faz com que o ato praticado por uma repercuta na esfera de outra (s), o que não pode ser desconsiderado, lembrando que “O Direito contemporâneo não descura do fato de que os contratos não afetam apenas as partes imediatamente a eles vinculados. Como em um dominó, em que a queda de uma peça implica a da seguinte, o contrato irradia seus efeitos (benéficos ou maléficos) por onde quer que seja celebrado. Econômicos, jurídicos ou sociais, os efeitos devem ser sopesados quando da celebração e revisão dos contratos” (9).

 Enfim, como diz Luiz Guilherme Loureiro (10): “A pessoa tem o dever social de cooperar para a consecução do bem comum, da qual, obviamente, participa. A função social do contrato resgata esta nova realidade e obriga que os contratantes cooperem entre si para que o negócio seja útil como meio de produção e circulação de riquezas, não só para uma ou ambas as partes, mas para toda a comunidade. Pela mesma razão, os contratantes devem se abster de quaisquer condutas que coloquem em risco a finalidade maior do direito e do próprio instituto do contrato, que é o bem comum”.

 Esgrimir com o princípio da relatividade dos contratos, para questionar o que ora se afirma, sob o argumento de que o contrato só gera efeitos no âmbito jurídico das partes contratantes, não empolga, atento a que, por conta mesmo do exposto nas linhas transatas, esse princípio foi, em muito, mitigado, já que inaceitável, nos dias que correm, deixar as partes impermeáveis ao todo social, quanto aos efeitos neste dos contratos que celebrem.

Tratando do princípio da relatividade e lembrando do princípio da socialidade, já referido linhas acima, assevera, com muita propriedade, Mônica Yoshizato Bierwagen (11) que: “Essa concepção, no entanto, foi relativizada no novo Código Civil, que, inspirado no princípio da socialidade, não concebe mais o contrato apenas como instrumento de satisfação de finalidades egoísticas dos contratantes, mas lhe reconhece um valor social”.

Tenho em que não será demais repisar que, na visão que hoje prepondera, um contrato não pode mais atender apenas os interesses das partes contratantes, ainda que nocivo, em seus efeitos ou parte deles, ao tecido social, e aqui lembro que um indivíduo, isoladamente considerado, faz parte, integra esse corpo social, é dizer, prejudicar, ainda que uma só pessoa, é prejudicar o todo social; interessante, aqui, o citar o pensamento de Eduardo Sens dos Santos (12), no sentido de que:

“Conforme acentuado quando se tratou do princípio da relatividade de efeitos, o contrato não pode mais ser entendido como mera relação individual. É preciso atentar para seus efeitos sociais, econômicos, ambientais e até mesmo culturais. Em outras palavras, tutelar o contrato unicamente para garantir a equidade das relações negociais em nada se aproxima da idéia de função social. O contrato somente terá uma função social – uma função pela sociedade – quando for dever dos contratantes atentar para as exigências do bem comum, para o bem geral. Acima do interesse em que o contrato seja respeitado, acima do interesse em que a declaração seja cumprida fielmente e acima da noção de equilíbrio meramente contratual, há o interesse de que o contrato seja socialmente benéfico, ou, pelo menos, que não traga prejuízos à sociedade – em suma que o contrato seja socialmente justo”.


 O preclaro Luciano de Camargo Penteado lembra que: “Segundo a doutrina dos contratos com eficácia de proteção a terceiros, a estes seriam deferidos direitos de feição muito peculiar, fundados no contrato, que atingiria aqueles que não são parte por um alargamento permitido e exigido pela boa-fé como cláusula geral em matéria obrigacional. De acordo com as diferentes situações, os prejuízos decorreriam do descumprimento do dever de abstenção ou do cometimento de um ilícito. Eles seriam efeitos indiretos do comportamento das partes dentro do contrato, diante dos quais o terceiro, por uma especial circunstância de afinidades de interesses com uma das partes, poderia postular tutela dos seus interesses jurídicos de acordo com critérios de responsabilidade contratual. Daí que a causa desses deveres seria, de certo modo, o próprio contato social com uma parte vinculada a uma prestação, diante de quem se espera e se deve respeito em sentido jurídico, ou seja, a consideração para com interesses alheios e proteção quanto a atos de intromissão indevida. A exposição do terceiro à prestação parece ser um fundamento razoável para a especial tutela deferida pelo instituto” (13).

Acredito que o quanto exposto nas linhas anteriores deixa firme e claro que há base segura a indicar que a visão hodierna do Direito não permite, pena de negar tudo a que se aspira com os princípios que se vem de referir, que um trabalhador seja olimpicamente prejudicado por um contrato de empreitada, existindo, por parte do dono da obra, uma responsabilidade para com esse trabalhador, se o empreiteiro que o contratou não lhe pagar o que lhe é devido pelos serviços que prestou, não podendo, em tal situação, o dono da obra dizer que não lhe cabe responsabilidade alguma por esse inadimplemento, já que, in casu, o dever de proteção para que os fins do contrato sejam alcançados, por parte do dono da obra, estende-se ao trabalhador que, com seu trabalho, também contribuiu — e como! — para que referidos fins do contrato fossem realmente atingidos.

Um exemplo, tirado da pena do ilustrado Humberto Theodoro Neto, com as adaptações que a diversidade de situações exige, bem ilustra o que sucede, ou deve suceder, na situação que ora nos ocupa: “Havendo, por hipótese, defeito no chuveiro a gás da casa alugada, cujo uso venha a causar a morte ou danos graves ao filho do locatário, terá o locador uma responsabilidade direta em face desse – teoricamente terceiro em relação ao contrato de aluguel -, mesmo não tendo com ele nenhum ajuste contratual. É que o dever de proteção em face do locador também deve dirigir-se ao filho do locatário, configurando-se nesse caso a locação como um contrato com eficácia de proteção para terceiro” (14).

Como se vê, com o exemplo retro, há uma extensão, digamos assim, da responsabilidade de uma das partes, que tem interesse no que concertado, para com terceiro que, conquanto não seja parte, no contrato ajustado, de algum modo está ligado a uma das partes e/ou pode sofrer os efeitos desse mesmo contrato, não podendo, por isso, ficar à margem da proteção que o direito há de conferir aos que se encontram numa situação assim. O que dizer, então, do trabalhador que, como se sabe, mas é bom lembrar, uma vez mais, conta apenas com o seu trabalho para prover a sua subsistência e à de sua família, ao realizar seu trabalho, contratado por uma das partes de um contrato de empreitada, no caso, o empreiteiro, se este não lhe paga, pode-se dizer que o dono da obra não tem qualquer responsabilidade para com ele, esse trabalhador? Claro que não, pois a ligação desse mesmo trabalhador com uma das partes do contrato, e com os próprios fins do contrato, obrigam ao outro contratante, aqui, o dono da obra, a responder pelo crédito a que fizer jus o trabalhador.

A leitura do excerto infra-transcrito de Rodrigo Trindade de Souza, torna muito claro o motivo que norteia a mitigação do princípio da relatividade, o que, de resto, no campo do direito do trabalho, tem muito mais razão de ser, diz o festejado doutrinador:

“A partir da compreensão de que a obrigação de cumprimento do pacto é lastreada não somente na vontade individual manifestada, mas também –e principalmente- nos efeitos gerados pela expectativa social das conseqüências do pactuado, esse princípio também acaba por ter seu conteúdo revisto. A solidariedade social que anima os contratos vincula o particular no objetivo de felicidade da comunidade” (15).


De inferir, então, que: “O entendimento de que o contrato só atinge as esferas jurídicas das partes não corresponde à realidade atual, em que as relações são cada vez mais freqüentes e interligadas, como se ressaltou. Hoje a dinâmica do mundo globalizado e da velocidade das informações, alterou completamente a relação entre as partes, que, a priori, na maioria das vezes, envolvia a pessoalidade” (16).

Em singelo artigo (17), conquanto tendo em mira a intermediação de mão de obra o respeitante desenvolvimento, mutatis mutandis, se aplica à situação ora em tela, me posicionei no sentido de que “No que mais de perto nos interessa, há fixar que existem pessoas, tradicionalmente enquadradas no conceito de terceiros, mas que agora aparecem, de corpo inteiro, no cenário jurídico para protegerem-se de contratos que possam violar direitos seus, o que é perfeitamente possível, com base nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a par de se ajustar à visão moderna do contrato, que mitigou um tanto o princípio da relatividade dos contratos.

 Os princípios mencionados impedem que um ajuste, ainda que fruto do mais puro e perfeito acordo de vontades entre as partes venha a causar danos a quem, não tendo declarado vontade alguma, possa experimentar algum prejuízo em decorrência do contrato.

 Basta não esquecer que as partes contratantes sempre querem ver seus contratos respeitados por terceiros, aos quais opõem o que neles pactuado, e o Direito, regra geral, lhes dá amparo para assim procederem, para se ver como é natural e funciona mesmo como a outra face da mesma moeda, que esses terceiros, se puderem ser atingidos pelo contrato, tenham meios para evitar os efeitos que possam prejudicá-los.

(…)

Parece claro que o trabalhador, que eu não classificaria como terceiro, mas como segundo dada a sua ligação ou dependência com os contratantes, encontraria aqui sólido fundamento para reclamar, tanto de sua empregadora, como da empresa-cliente, ambas solidárias, o pagamento de seu crédito, já que o ajuste por elas levado a efeito não pode, em atenção aos efeitos externos do contrato, fazer com que ele fique, passe a pobreza da locução, no prejuízo, mesmo porque, vale insistir, não são apenas os contratantes que devem ser protegidos contra atos de terceiros, estes também merecem receber proteção, para que não venham a experimentar prejuízos em decorrência do que pactuado pelos contratantes, sentimento esse que deve, no caso que ora nos ocupa, estar muito, muitíssimo vivo, recebendo os aportes doutrinários e jurisprudenciais necessários para robustecer-se cada vez mais, de modo a não permitir que e o engenho e a arte de contratantes despidos de boas intenções ou mesmo inaceitavelmente indiferentes para com a sorte daqueles que em seu benefício trabalharam, frustrem os escopos que justificam mesmo a existência do Direito do Trabalho”.

Curioso observar que, nos idos de 1953, em substanciosa obra acerca do contrato de empreitada, seu autor, o ilustre E. V. de Miranda Carvalho, “Bacharel em Direito e advogado há 40 anos no Foro do Rio de Janeiro”, como consta de sua apresentação no livro, já ensinava que:

 “6º) que, finalmente, embora os empregados, fornecedores e subempreiteiros do empreiteiro geral sejam credores dêste e não do empregador, é indubitável que, não os pagando o empreiteiro nem o empreitador em débito para com este, os trabalhos e materiais daqueles, revertidos em benefício da obra, redundariam num enriquecimento ilícito do empreitador, bastante para autorizar contra o mesmo a ação de in rem verso.

(…)

b) que, apesar do artigo 239 sòmente aludir a ‘operários’, também os empregados, fornecedores e subempreiteiros gozam, para se pagarem, da ação direta contra o empreitador, pois, embora o art. 239 constitua um ‘jus singulare’, é susceptível de interpretação extensiva por fôrça de compreensão, como ficou demonstrado em o n. 16 supra, letras a e b;

c) que ao demais, cessando pela forma acima a restrição a ‘operários’ do citado art. 23, as regras do direito civil quanto aos contratos em geral se tornam subsidiárias da empreitada comercial sem a aludida restrição (Cód. Com. art. 121), de sorte que, sendo os empregados, fornecedores e subempreiteiros em apreço credores do empreiteiro, é-lhes irrecusável o direito que o Código Civil e o Código de Processo Civil reconhecem ao credor em geral, de exercer as ações não personalíssimas de seu devedor”(18).


Fica claro, com a leitura atenta do aludido excerto, que o seu notável autor tem por pacífica a responsabilidade do “empreitador” (o dono da obra), para com os credores do empreiteiro que contratou, relativamente a obra contratada, atento a que, se assim não for, o mesmo se beneficiaria de um enriquecimento injustificado ( rectius: ilícito), ao que ouso acrescentar: também o empreiteiro, pois se este tiver já a maligna idéia de não pagar seus fornecedores e empregados, poderá apresentar um preço mais baixo ao dono da obra, para concluir o negócio, e, conforme o desígnio que os anima, ambos terão por atraente o ajuste, um porque pagará menos e o outro porque, conquanto, aparentemente, lucrando menos, lucrará mais, pois não honrará seus compromissos, quer com seus fornecedores, quer com os que para ele labutarem.

Como se vê, nossos juristas, de há décadas, já se preocupam não fiquem fornecedores e empregados de um empreiteiro sem receber o que lhes é devido, por conta do que este contratou, atribuindo ao dono da obra a responsabilidade por saldar os respeitantes créditos, em situações quejandas.

Para evitar encontrar-se em semelhante dificuldade, haverá o dono da obra de ser sempre cauteloso, averiguando se seu empreiteiro está honrando os compromissos assumidos em função da obra contratada, do reverso, ter-se-á como caracterizada tanto a culpa “in elegendo”, como a “in vigilando”, ainda que, para alguns, esta última deva sofrer alguma mitigação, decorrente da suposição de que o dono da obra não tem conhecimento técnico, raciocínio esse que, regra geral, atualmente, só se aplica a pessoa física que contrate uma obra para seu uso, porquanto, em realidade, não corresponde e/ou não se aplica as obras encomendadas por empresas, de maneira geral, mas principalmente as de maior porte, que visem aumentar/ampliar seu parque industrial, pois que estas bem sabem o que querem e precisam.

Esse sentir, também não é recente, como se nota com a leitura do excerto infra-reproduzido, de obra publicada provavelmente no ano de 1954, data que consta da advertência lançada pelo próprio autor na página 05 do livro, e que é o seguinte:

“A culpa in vigilando fica de certo modo excluída, pois, em geral, o proprietário é um leigo em matéria de construção e não poderia, por este motivo, exercer sôbre ela uma vigilância eficaz e produtiva.

 A culpa in eligendo, ao contrário, deve ser acolhida com certa amplitude de interpretação, de modo a abranger não apenas a escolha do empreiteiro-construtor profissionalmente inabilitado, mas também a do econômicamente incapaz de responder pela indenização perante terceiros” (19).

Reitero o que acima afirmei, no sentido de que a suposição de que o dono da obra não tem conhecimento técnico deve se restringir ao proprietário pessoa física que contrate uma obra para seu uso, notando ainda que, como se percebe dos ensinamentos transcritos nas linhas imediatamente anteriores, o eminente jurista que as escreveu não teve entre suas cogitações a relativa às obrigações específicas do empreiteiro para com os seus empregados, mas sim as obrigações decorrentes de riscos da construção, como há inferir do parágrafo seguinte aos dois já reproduzidos nas linhas transatas:

“Se a situação do empreiteiro-construtor é de completa insolvência, não seria admissível que quem sofresse o dano ficasse inteiramente ao desamparo. Nesta hipótese, admitimos a responsabilidade do dono ou proprietário da obra, dando uma interpretação ampliativa à culpa in elegendo para alcançar também a escolha do profissional inidôneo econômicamente e incapaz para responder pelos riscos da construção” (in obra citada, página 118), ou, ainda, essa outra passagem:

“A ampliação do conceito da culpa in eligendo se justifica plenamente e, por melhor assegurar o direito dos prejudicados, deve ser acolhida pela jurisprudência como legal, jurídica e tècnicamente perfeita.

Ao terceiro prejudicado ficará assegurada maior oportunidade de ressarcimento dos danos sofridos, sem quebra da natureza ou violação do contrato de empreitada; sem necessidade de invocação à teoria fundada no risco de vizinhança, ou de recurso à teoria do risco, para, com fundamento nela, reconhecer-se a responsabilidade do dono ou proprietário da obra, o que violaria o nosso sistema de Direito” (20).


Entretanto, como é bem de ver, o posicionamento do impoluto doutrinador mais ainda se aplica às obrigações do empreiteiro para com os seus empregados, já que estes não podem ficar, para usar a elocução do citado mestre, “inteiramente ao desamparo”.

O passar dos anos, em nada alterou o quadro, a preocupação ainda existe e cada mais irrecusável e bem delineada; o tom determinado da sentença de um conceituado civilista contemporâneo bem demonstra essa realidade:

“Atente-se, todavia, a que a responsabilidade do construtor não afasta a responsabilidade do dono da obra, que aufere os proveitos da construção. A responsabilidade do proprietário em relação aos vizinhos tem por base o artigo 1.299 do Código Civil (artigo 572 do Código revogado), que, ao garantir-lhe o direito (faculdade) de construir no seu terreno, assegura aos vizinhos a incolumidade física e patrimonial. Em relação a terceiros (não vizinhos) serve de fundamento o artigo 937 do Código Civil (art. 1.528 do Código revogado), que cria uma presunção de responsabilidade para o proprietário do prédio em construção.

(…)

E, sendo princípio de Direito que quem aufere os cômodos suporta os ônus, ambos devem responder pelos danos que o fato da construção causar a terceiros” (21).

Aqui também, parece claro que o insigne autor não teve em linha de consideração, especificamente, as questões envolvendo os empregados que trabalharam na obra contratada, mas os motivos que desfiou, com muito mais razão, são de aplicar-se a estes últimos.

A idêntica conclusão se pode chegar, uma vez em contato com os ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves (22), que observa que “A jurisprudência pátria tem acolhido a responsabilidade solidária do construtor e do proprietário, permitindo, porém, a redução da indenização quando a obra prejudicada concorreu efetivamente para o dano, por insegurança ou ancianidade”.

Enfim, à raiz de todo desenvolvimento feito, está a idéia de que terceiros não podem experimentar prejuízos pela execução de uma obra contratada e, cabe a indagação, por que não estender esse manto protetor ao empregado do empreiteiro, quando este não lhe quita, a tempo e modo, o que por lei e/ou por decisão judicial se reconhece como sendo-lhe devido, limitando-se essa proteção aos que tem propriedades ou outros bens/interesses atingidos por um contrato dessa espécie? De forma alguma, o Direito, em seus diversos ramos, princípios e regras, em uma visão de conjunto e/ou sistêmica, dá amparo a tão brutal e iníqua disparidade de tratamento, que, como se infere, contraria tudo o que tem por fim realizar e proteger o Direito, agora, designadamente, o Direito do Trabalho.

No estágio/concepção atual do Direito, com o recurso intenso aos princípios e a priorização ao ser, ao invés do ter, a OJ 191, da SDI-I, do C. TST, adequada a uma outra atmosfera, encontra, permissa vênia, dificuldade de aplicação nos dias que correm, designadamente sendo um dos contratantes uma empresa, pessoa jurídica, quando, no que faz, em última instância –e talvez nem tanto assim, mas, ao reverso, em primeira instância-, há sempre o desejo de lucro: amplia-se, conserva-se para continuar produzindo e se possível aumentar a produção, e com isso continuar lucrando e se possível lucrar mais, ou, numa visão pessimista, para não diminuir lucros e/ou ter algum prejuízo. Fique claro que não se censura essa prática, de jeito algum, essa é a regra, apenas se observa que, para auferir lucros, algumas responsabilidades são inevitáveis, ou devem sê-lo, pelo ordenamento jurídico, visto como um todo. Aludida OJ, então, só poderá ser observada, supondo-se que deva continuar sendo, naqueles casos em que o dono da obra é pessoa física, primeiro e indeclinável requisito, e desde que não atue como investidor, ou seja, aquela pessoa que constrói e/ou reforma e/ou amplia um imóvel, visando conservá-lo, para que o tempo não o deteriore, desvalorizando-o, e/ou para adequá-lo as suas necessidades e as de sua família, ou ainda, em cumprimento a alguma determinação legal.


Referências bibliográficas

1 in “Ética nas Relações Contratuais à Luz do Código Civil de 2002”, André Soares Hentz, Editora Juarez de Oliveira, 2007, páginas 70/1.

2- “Reconstrução do Conceito de Contrato: do Clássico ao Atual”, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, artigo inserto em obra coletiva “Direito Contratual – Temas Atuais”, coordenação Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, 2008, página 35.

3- in “Estudos e Pareceres de Direito Privado”, Antonio Junqueira de Azevedo, Saraiva, 2004, páginas 141/2.

4- in “O Princípio da Relatividade dos Efeitos Contratuais e suas Mitigações”, Rodrigo Mazzei, artigo inserto em obra coletiva “Direito Contratual – Temas Atuais”, coordenação Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, São Paulo, 2008, página 202-3.

5- “Novos Paradigmas do Direito Civil”, Lauro Augusto Moreira Maia, Juruá Editora, 2007, página 45.

6-“Lições de Teoria Geral do Direito Civil”, Fernando Costa de Azevedo, Livraria do Advogado Editora, 2008, página 47.

7- “O Contrato em Perspectiva Principiológica – Novos Paradigmas da Teoria Contratual”, Rafael Wainstein Zinn, inserto na obra “Estudos de Direito Civil – Constitucional”, organizador Ricardo Aronne, volume 01, Livraria do Advogado Editora, 2004, página 131.

8- “Novos Paradigmas do Direito Civil”, Lauro Augusto Moreira Maia, Juruá Editora, 2007, página 31.

9- “O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: Exame da Função Social do Contrato”, Eduardo Sens dos Santos, “Revista Forense”, volume 364, novembro-dezembro/2002, página 95.

10- “Contratos – Teoria Geral e Contratos em Espécie”, Luiz Guilherme Loureiro, Editora Método, 3ª edição, 2008, página 67.

11- “Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código Civil”, Mônica Yoshizato Bierwagen, Saraiva, 2ª edição, página 34.

12- in “O Novo Código Civil e as Cláusulas Gerais: Exame da Função Social do Contrato”, Eduardo Sens dos Santos, “Revista Forense”, volume 364, novembro-dezembro/2002, página 97.

13- in “Efeitos Contratuais Perante Terceiros”, Luciano de Camargo Penteado, Editora Quartier Latin, 2007, páginas 178/9.

14- in “Efeitos Externos do Contrato – Direitos e Obrigações na Relação entre Contratantes e Terceiros”, Humberto Theodoro Neto, Forense, 2007, páginas 205/6.

15- in “Função Social do Contrato de Emprego”, Rodrigo Trindade de Souza, LTr, 2008, página 74.

16-“Princípios Contratuais”, Thaissa Garcia Gomes, Revista dos Tribunais, ano 94, volume 838, agosto/2005, página 732.

17 – in “Intermediação de Mão-de-Obra – uma Leitura que Leva à Responsabilidade Solidária Entre as Empresas Prestadora e Tomadora de Serviços”, Francisco Alberto da Motta Peixoto Giordani, Revista LTR 72-047/794.

18- in “Contrato de Empreitada”, E. V. de Miranda Carvalho, Livraria Freitas Bastos S.A., 1ª edição, 1953, RJ, páginas 320/1.

19- in “Aspectos do Contrato de Empreitada”, Alfredo de Almeida Paiva, Edição Revista Forense, s/d, página 117.

20- in obra citada, “Aspectos do Contrato de Empreitada”, Alfredo de Almeida Paiva, Edição Revista Forense, s/d, página 127.

21- in “Programa de Responsabilidade Civil”, Sergio Cavalieri Filho, Malheiros Editores Ltda., 6ª edição, páginas 376/7.

22- in “Responsabilidade Civil”, Editora Saraiva, 9ª edição, 2005, página 428.

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