Aspectos do crime

Inquérito para apurar sonegação gera controvérsias

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14 de abril de 2009, 13h14

Grandes dúvidas têm sido levantadas pelos contribuintes que sofreram autuações da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), principalmente quando relativas à constituição de créditos de natureza previdenciária, em razão da costumeira acusação, por parte dos agentes fiscais, de que as infrações objeto do processo administrativo constituem crime de sonegação de contribuições previdenciárias (artigo 337-A do Código Penal, com pena de dois a cinco anos de reclusão).

Nesses casos, tem se tornado cada vez mais comum que o agente fiscal, ao encerrar o procedimento fiscalizatório com a lavratura de auto de infração, noticie ao Ministério Público Federal a ocorrência do suposto crime de sonegação de contribuição previdenciária, dando início à fase preparatória do eventual processo crime, antes mesmo de encerrado o processo administrativo tributário.

Na prática, esse entendimento faz com que o contribuinte seja alvo de inquérito policial e, eventualmente, até mesmo de processo criminal, ao mesmo tempo em que se defende na esfera administrativa tributária. Consagra-se o absurdo de investigar, processar e punir criminalmente um cidadão por suposta sonegação de contribuição previdenciária ao mesmo tempo em que o Estado, analisando o recurso administrativo, conclui que nenhum centavo foi sonegado.

Essa ilógica e injusta persecução era muito comum no Brasil até que o Supremo Tribunal Federal, em 2003, decidiu que os crimes tributários previstos na Lei 8.137/90 são crimes materiais e dependem de um resultado concreto para sua configuração. Em outras palavras, concluiu-se que não pode haver o crime de sonegação sem que exista a certeza de um tributo devido, tornando imprescindível o término do procedimento administrativo tributário. Assim, hoje é pacífico na jurisprudência o entendimento de que nenhum cidadão pode ser investigado por crime de sonegação antes que os órgãos tributários julguem todos os recursos pertinentes e concluam, com segurança, que um tributo é realmente devido.

Todavia, num lamentável retrocesso, algumas vozes no Judiciário e na administração tributária classificam o crime como formal, ou seja, que não depende da ocorrência de prejuízo para sua configuração. Basta que o contribuinte, por exemplo, omita informações de folha de pagamento, deixe de lançar quantias descontadas ou não aponte remunerações para configurar a prática do crime, mesmo que dessas condutas não resulte a supressão ou redução de contribuições previdenciárias.

Nessa ótica, considerando o delito como formal, o término do procedimento administrativo é tido por irrelevante e, mesmo que o julgamento final aponte que nenhuma contribuição previdenciária era devida, haverá o crime. São alguns precedentes nesse sentido que sustentam a instauração de inquéritos policiais para apurar suposta sonegação de contribuição previdenciária mesmo que esteja ainda pendente de decisão final na esfera administrativa.

Não é necessário grande aprofundamento teórico para demonstrar o contrassenso dessa posição, bastando comparar o crime de sonegação de contribuição previdenciária com o delito de sonegação de impostos federais, disciplinado na Lei 8.137/90. Os dois tipos penais têm idêntica estrutura e visam punir o contribuinte que, com a prática de certas condutas, consegue “suprimir ou reduzir” valores que eram devidos. Não é juridicamente razoável interpretar diferentemente crimes criados com a mesma técnica legislativa e, não por acaso, inúmeros doutrinadores classificam os dois delitos como crimes materiais, que dependem, portanto, do término do procedimento administrativo.

Enquanto a questão segue permeada de controvérsias, recomenda-se ao contribuinte autuado que, já na primeira defesa lançada contra o auto de infração, insurja-se contra a realização de representação fiscal para fins penais, demonstrando, diante dos atuais precedentes jurisprudenciais e doutrinários, que na ausência de crime o Ministério Público Federal não deve ser oficiado. Assim, evita-se que a Receita Federal venha dar causa à instauração de inquérito policial por um fato que, posteriormente, o mesmo órgão julgue como lícito.

Se ainda assim a administração tributária entender por comunicar a existência de crime, é cabível o uso do Habeas Corpus para trancar o inquérito policial instaurado, uma vez que o suposto crime em apuração sequer ocorreu. Em paralelo, além da comprovação de que o procedimento administrativo ainda está pendente de julgamento, é interessante transpor para a seara criminal os mesmos argumentos da tese tributária, realizando uma pronta defesa de mérito para demonstrar a improcedência do auto de infração e, consequentemente, a ausência de intenção de sonegar.

Por fim, ainda sobre o crime de sonegação de contribuição previdenciária, devemos registrar que os tribunais reconhecem, unanimemente, que o pagamento do tributo objeto do suposto crime, ainda que efetuado depois do oferecimento da denúncia, extingue a punibilidade do agente, por força do disposto no artigo 9º, parágrafo 2º, da Lei 10.684/03.

O artigo foi publicado originalmente pelo jornal Estado de Minas, na segunda-feira, 13 de abril.

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