Recurso de ofício

Instituto é incompatível com o Estado Democrático

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13 de abril de 2009, 7h19

O Projeto de Lei 4.206/01, que ora tramita no Senado Federal, pretende realizar uma reforma no sistema de recursos penais. Entre os temas tratados, propõe a abolição do recurso de ofício[1]. Mesmo sem sua eventual aprovação ao final do processo legislativo, o fato de o recurso de ofício existir prescrito no texto legal não significa, por si só, estar em vigência.

A recente reforma processual penal pouco cuidou de recursos. Revogou-se, pela Lei 11.689/08, o antigo artigo 411 do Código de Processo Penal, afastando-se a obrigatoriedade da revisão da decisão de absolvição sumária no procedimento do Júri (inciso II do artigo 574). Restam, contudo, no texto do Código, duas possibilidades de aplicação do recurso de ofício em matéria penal: “da sentença que conceder ‘habeas corpus’ (inciso I do artigo 574) e a da decisão que conceder a reabilitação (artigo 746). O artigo 564, III, “n”, prevê como nulidade, a falta do recurso de ofício, nos casos em que a lei o tenha estabelecido. Há ainda outra modalidade, em lei especial, referente a arquivamento de inquérito policial e sentença absolutória nos crimes contra a economia popular ou a saúde pública (artigo 7º da Lei 1.521/51).

A Súmula 423 do Supremo Tribunal Federal, publicada em 1964, dispondo que “não transita em julgado a sentença por haver omitido o recurso ‘ex officio’, que se considera interposto ‘ex lege’”, também serve de argumento de alguns na defesa da manutenção de tais recursos na esfera penal. Porém, além de ter sido editada em outra época, sob a égide de outra Constituição, todos os precedentes que determinaram sua edição tratam exclusivamente de matéria processual cível[2]. Mesmo quem advoga a possibilidade de uma teoria geral processual única admite diferenças estruturais dos sistemas recursais civil e penal. Não obstante, o tema em questão incide também em direito material.

É notória a função do Direito e do processo penal de proteção do cidadão acusado contra a força desmedida do Estado – Leviatã – buscando-se a racionalização do poder de punir como uma das bases do Estado de Direito. Reconhecendo-se essa desproporcionalidade de forças, o constituinte e o legislador ordinário concederam preciosas garantias à parte hipossuficiente. O benefício do in dubio pro reo e a existência de recursos exclusivos da defesa são exemplos de instrumentos espalhados por nosso ordenamento, a consagrar a prevalência do bem jurídico ‘liberdade’ em nosso sistema jurídico e a homenagear a “paridade de armas”.[3]

A doutrina processual penal costuma destacar, em tema de recursos, os princípios da voluntariedade e da disponibilidade. Significa que a interposição de recurso é de livre e espontânea vontade da parte, sendo os recursos “meios voluntários de impugnação de decisões” [4]. Trata-se de uma faculdade atribuída às partes. Obrigar alguém a recorrer – sobretudo alguém que nem sequer é parte processual – afronta este princípio.

O Estado-juiz nem sequer tem interesse de agir para recorrer. No tripé da relação processual penal, o juiz não é parte e não pode ser prejudicado com a decisão. Maurício Zanóide afirma que o interesse na interposição de recurso compete apenas ao sujeito insatisfeito, negando-se qualquer possibilidade figurar o juiz – ‘sujeito desinteressado no resultado do processo’ – na posição ativa (recorrente)[5].

Atribuir ao juiz o papel de acusador, ao recorrer de decisões próprias desfavoráveis ao réu, subverte todo o sistema processual. Talvez o legislador de 1941 tenha confundido o poder de punir com o poder de acusar[6]. O poder de aplicar a pena é dado ao juiz (Estado-juiz), condicionado ao poder de acusar, reservado este ao membro do Ministério Público (Estado-acusador), o querelante ou o assistente da acusação. São poderes distintos e é ilógico atribuí-los simultaneamente a uma única pessoa; sobretudo em um Estado que consagra a prevalência do direito à liberdade[7]. Nesse sentido, vale apontar também o princípio da proibição da reformatio in pejus.


Na lógica de nosso ordenamento penal, faria mais sentido a previsão do recurso de ofício para hipóteses de indeferimento do Habeas Corpus ou da reabilitação criminal, exatamente o contrário da previsão legal.

Ressalte-se que as duas previsões do Código Processual Penal – a do Habeas Corpus e a da reabilitação – assentam direitos subjetivos do acusado em processo penal. Uma vez preenchidos os requisitos, o juiz não pode negar esses benefícios. Manda o texto constitucional que toda prisão ilegal deve ser relaxada imediatamente e de ofício[8]. Da mesma forma, não há sentido em retardar a reabilitação criminal ao condenado que já cumpriu todas as obrigações impostas pelo Estado. Através dela, passados dois anos do cumprimento da sanção penal, o ex-condenado logra o sigilo de registros sobre seu processo e condenação e pode extinguir efeitos secundários de sua condenação.

Ex-condenados sofrem enorme preconceito na volta à sociedade, trazendo-lhe enormes desvantagens competitivas na tentativa de (re)iniciar uma vida social e profissional ativa. O Estado deve fazer sua parte se pretender efetivar o objetivo supremo da execução penal, destacado no artigo 1º da Lei 7.210/84, de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou internado”.

Nas hipóteses envolvendo crimes contra a economia popular e contra a saúde pública o arquivamento do inquérito, com a anuência do acusador e do magistrado ou do procurador geral (artigo 28, do CPP) e a sentença de absolvição com a resignação do promotor de Justiça ao não impugná-la, já configuram uma exaustiva tutela institucional da cognição jurisdicional. A própria investigação criminal poderá ser reiniciada com a superveniência de prova nova. E o fato de não haver a prova robusta necessária para a condenação criminal não significa a falta de proteção ao bem jurídico, pois a responsabilização do acusado e a reparação do dano ainda podem se suceder, até com maior efetividade, nas esferas civil e administrativa.

A conclusão será a mesma se avaliada a questão sob o prisma do princípio constitucional da proporcionalidade. A manutenção de tal obrigatoriedade de recorrer revela-se inadequada para os fins instrumentais do processo de resolução do conflito e de pacificação social, uma vez que esse recurso deveria ser interposto ainda que as próprias partes do processo, acusação e defesa, tivessem se resignado com a decisão monocrática. Ademais, ao inflacionar ainda mais o volume de processos apresentados aos tribunais recursais com a revisão de decisões afetando o direito à razoável duração do processo e à celeridade de sua tramitação. As desvantagens trazidas pelo instituto são enormes sem a contrapartida de nenhum benefício ao Estado. Apenas gera desnecessários custos sociais, econômicos e políticos.

E se a intenção do legislador era o controle da atividade dos juízes e dos membros do Ministério Público, para tanto já existem as corregedorias e os Conselhos Superiores.

Há implicação também no princípio da independência dos poderes (artigo 2º, CF), pois as referidas hipóteses legais constituem ingerência indevida e desarrazoada na atividade jurisdicional à revelia da Constituição, violando a autonomia funcional do magistrado. Não bastasse isso, o recurso de ofício ainda evidencia um enorme desprestígio relegado pelo Legislativo aos órgãos jurisdicionais de primeira instância. Entretanto, a Lei 11.689/08, ao revogar o recurso de ofício da sentença que absolve sumariamente o inimputável réu no procedimento do Júri, sinaliza alguma evolução na mentalidade do legislador atual em relação ao de 1941.

Como bem assevera o procurador de Justiça de Santa Catarina Nelson Ferraz[9]:

“O recurso de ofício, venia petita, revela-se resquício do inquisitorialismo’, situação que merece ser expungida, de vez, do processo penal brasileiro”.


Resta ao Judiciário superar os arquétipos do “modelo jacobino de ‘juiz executor’, passivelmente fiel à vontade do legislador (a boca que prenuncia as palavras da lei) ou de ‘juiz declarativo’, limitado a declarar, mas nunca criar o Direito”[10], para, ao invés disso, interpretar e aplicar (ou não) os institutos jurídicos de modo a conferir a máxima efetividade aos princípios constitucionais. A conclusão inevitável desta postura apontará no sentido de extinguir o recurso “ex officio” em matéria penal do ordenamento brasileiro, admitindo que esse instituto é incompatível com o Estado Democrático d


[1] O novo artigo 574 dispõe que “Os recursos serão voluntários”. E o novo 577 prevê, como únicos legitimados a recorrer: o Ministério Público, o querelante, o ofendido, nas hipóteses previstas em lei e o acusado ou seu defensor.

[2] Endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal, consulta realizada em 20.07.2008 in http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=423.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas.

[3] DEPINÉ FILHO, Davi Eduardo. "A soberania dos veredictos e o princípio da motivação das decisões judiciais". Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo. 2008. No prelo – fl. 165".

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito Processual Penal – tomo II. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. fl. 200.

[5] MORAES, Maurício Zanoide de. Interesse e legitimação para recorrer no processo penal brasileiro. São Paulo: RT, 2000. fl 254.

[6] Aury tece interessantes reflexões sobre a diferença entre o direito de punir e o de acusar no capítulo IV dessa obra. LOPES JR. Aury, Direito Processual e sua conformidade constitucional. RJ: Lúmen Júris, 2007.

[7] “A função do processo penal não pode limitar-se a aplicar o poder de penar, pela simples razão de que também está destinado a declarar o direito à liberdade do cidadão inocente” (SENDRA, Germano. Derecho Procesal Penal Apud LOPES JR. Aury, Direito Processual e sua conformidade constitucional. RJ: Lúmen Júris, 2007. fl. 94).

[8] Inciso LXV, art. 5º, CRFB 1988.

[9] Parecer em recurso de ofício registrado como ‘Apelação criminal No. 32065”, datado de 25.09.1994, consulta realizada em 10.07.2008 in http://www.geocities.com/Athens/Acropolis/1312/PARECERES/ac32065.html.

[10] CANOTILHO, J.J.G. Um olhar jurídico-constitucional sobre a judicialização da Política. IN Revista de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, maio/agosto de 2007. fl. 91.

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