Requisição insólita

Emenda Regimental não se sustenta frente à CF

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10 de abril de 2009, 15h40

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Gilmar Mendes, vem empreendendo, a duras penas, uma inexcedível campanha pela racionalização e também pela perfeita constitucionalização dos procedimentos e das rotinas judiciárias no país. O esforço da-se sobretudo em função de certas carências operacionais há muito diagnosticadas e da urgência na defesa dos direitos fundamentais.

Sucede que não é de bom tom criticar as inadequações alheias, antes mesmo de estabelecer a varredura do próprio território. Um estranho regulamento da lavra do STF, por isso atacável por via de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) a ser proposta por qualquer dos entes legitimados, na forma do artigo 103, da Constituição Federal, é o Ato Normativo 22/07 que se consubstancia numa Emenda Regimental à Constituição Interna da própria Suprema Corte (RISTF).

A referida Emenda, levada a cabo por tal dispositivo, dentre outras normas, instituiu a possibilidade de serem designados “magistrados para atuação como Juiz Auxiliar do Supremo Tribunal Federal em auxílio à Presidência e aos Ministros, sem prejuízo dos direitos e vantagens de seu cargo, além das que são atribuídas aos Juízes Auxiliares do Conselho Nacional de Justiça”.

É o que consta do inciso XVI-A, do artigo 13, do Regimento Interno do STF que, indubitavelmente, desafia a competente provocação da Jurisdição Constitucional, pelos motivos que, embora não exaustivamente, agora se vão elencados:

Primeiro: trata-se de ato da Administração Pública que invade a competência do Poder Legislativo, criando figura normativa geral, cuja exigência formal se aperfeiçoa, conforme a espécie, por iniciativa de Emenda Constitucional ou de lei em sentido estrito que decorrem, uma e outra, de processos legislativos próprios.

Ora, o inciso vergastado da norma regimental em comento extrapola, descerimoniosamente, a competência privativa dos Tribunais, conforme estabelecida no artigo 96, inciso I, da Constituição Federal, em virtude da qual a possibilidade de convocação de magistrados ao desempenho do suposto mister de “Juiz Auxiliar” é nula, porquanto não prescinda de alteração em nível constitucional.

A nova disposição contida no Regimento Interno do STF confere interpretação desmedida ao inciso III, do parágrafo 5º, do artigo 103-B, da Constituição da República, para “autorizar” em causa própria e sem prefiguração legal a criação de cargos e funções específicos. Cuida-se de extensão analógica que inaugura norma jurídica no plano constitucional com o agravo de se tratarem de funções próprias de agentes políticos: “Juízes Auxiliares”! E, mais grave, vedado pela própria Constituição (artigo 95, Parágrafo Único, inciso I).

Ao fazê-lo em sede administrativa, lamentavelmente, a Suprema Corte adjudica para si, sem submeter-se ao regime dos “freios e contrapesos” (checks and balances), função de competência que simplesmente não lhe foi reservada pela Constituição Federal: legislar primariamente fora dos casos de Mandado de Injunção (artigo 102, inciso I, al. “q”, da Carta). O parágrafo 5º, do artigo 103-B, inciso III, da Constituição, prevê a possibilidade do Ministro do Superior Tribunal de Justiça encarregado do importante papel de Corregedor Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça, “requisitar e designar magistrados, delegando-lhes atribuições, e requisitar servidores de juízos ou tribunais, inclusive nos Estados, Distrito Federal e Territórios".

Sobre isto, tem-se como claríssima — in claris cessat interpretatio — a redação ofertada pelo texto constitucional à hipótese, sendo taxativa em mencionar a única e tão só figura do Ministro-Corregedor Nacional de Justiça, que exerce, naturalmente, atribuição administrativa de controle e disciplina da Magistratura e do Poder Judiciário. Por isso mesmo, observa-se que o Ministro-Corregedor fica excluído da “distribuição de processos no Tribunal”, evitando-se, assim, interferências que possam cristalizar restrição ao exame sobranceiro e isento das causas submetidas à Jurisdição. Sabidamente, uma interpretação verdadeiramente sistemática sobre o assunto não descamba para sentido diverso; desse modo, a possibilidade de requisição e designação de Magistrados tem índole administrativa e diz com o natural desempenho de funções de igual natureza, a dizer, diversas das jurisdicionais.


Parece evidente que não pode ocorrer mistura de paradigmas ou de ordens logicamente inconciliáveis. Com efeito, não existe essa figura de “Juiz Auxiliar” para o exercício de funções típicas da Jurisdição em Órgão diverso de sua titularidade ou exercício substitutivo, ou ainda mediante convocação regimental própria, de modo que a Emenda Regimental 22/07 não encontra a mínima carga de supedâneo na Constituição Federal. E muito menos na Lei Orgânica da Magistratura Nacional e nem em lei alguma.

Ademais, a hipótese dessas requisições atípicas se constitui em atentado aos princípios da Administração Pública, conforme inscritos no artigo 37, da Carta, porquanto opera um prestigiamento subjetivo de pessoas (“procedimento de domesticação”, na célebre locução de Zaffaroni) em detrimento do juízo universal em que se assentam os fundamentos do Estado Democrático de Direito, a própria estrutura republicana e a tecnicalidade organizacional da Magistratura no Brasil.

Bem por isto, Eugenio Raúl Zaffaroni classifica o Poder Judiciário brasileiro como sendo um modelo “empírico-primitivo”, no seguinte sentido: “É necessário compreender claramente que para conceder independência a nossos poderes judiciários, o primeiro passo deve consistir em desbaratar o poder formal das cúpulas, que até agora não é mais do que um poder partidarizado, para conceder poder real a órgãos racionalmente distribuídos.” (in Poder Judiciário – Crise, Acertos e Desacertos, Revistas dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 120).

Antes, ainda, o exponencial pensador argentino insiste com autoridade de cátedra: “Um juiz independente, ou melhor, um juiz simplesmente, não pode ser concebido em uma democracia moderna como um empregado do executivo ou do legislativo, mas nem pode ser um empregado do supremo tribunal. Um poder judiciário não é hoje concebível como mais um ramo da administração e, portanto, não se pode conceber sua estrutura na forma hierarquizada de um exército.

Um judiciário verticalmente militarizado é tão aberrante e perigoso quanto um exército horizontalizado.” (op. cit., p. 88). E vai além: “Através deste poder vertical satisfazem seus rancores pessoais, cobram dos jovens suas frustrações, reafirmam sua titubeante identidade, desenvolvem sua vocação para as intrigas, desprendem sua egolatria etc., mortificando os que, pelo simples fato de serem juízes de diversas competências, são considerados seus ‘inferiores’. Desse modo, desenvolve-se uma incrível rede de pequenez e mesquinharias vergonhosas, das que participam os funcionários e auxiliares sem jurisdição. A maledicência é convertida em moeda corrente, faz-se preza de todos e substitui as motivações racionais dos atos jurisdicionais: as sentenças não são confirmadas, revogadas ou anuladas por razões jurídicas, mas por simpatia, antipatia, rancor, ciúme do colega.” (op. cit., p. 89)

Por outro lado, com a reiterada e não resistida efetivação do mecanismo requisitório em foco ocorre não somente um desestímulo nas carreiras judiciárias no país como, de resto, sugere-se a implosão do que há de organização corporativa e institucional em torno delas. Pior: agrava-se a atmosfera política em que deveriam florescer os espíritos mais independentes e lúcidos para realizar justamente a tão decantada racionalização preconizada pelo próprio Supremo Tribunal Federal, segundo a respeitável dicção do seu atual presidente, sintonizado com a Carta Política de 1988.

Realmente, dos dispositivos reservados pelo Constituinte derivado à disciplina do Conselho Nacional de Justiça, não há qualquer menção à suposta figura do “Juiz Auxiliar”, salvo aquela já exposta no texto, quando se demonstrou que se cuida de requisição e designação ao desempenho de exclusivas atividades administrativas e correcionais. Admitir o contrário, em linhas gerais, é chancelar a possibilidade, consoante vem ocorrendo, de que um “Juiz Auxiliar”, assessor de Ministro de STF, possa ter “assento” em julgamento, ainda que indiretamente e sem subscrição de votos e Acórdãos, acerca de matéria que lhe diga respeito ou de que seja de algum modo interessado de forma a comprometer a desejada imparcialidade que informa os pronunciamentos jurisdicionais.


Curiosamente, outros Tribunais vêm agindo do mesmo modo no rastro desse insólito precedente. Por meio dessa institucionalização às inversas, aliás, esses Tribunais também se aventuram à empresa de desconstruir a carreira da Magistratura no Brasil e de transformá-la em mero emprego público de boa formatação tanto para os iniciantes comoc para as cúpulas.

Sufocada e sem espaço em face da atitude silenciosa das Associações de Classe nesse segmento, as quais se esmeram em não criar zonas de atrito com as cúpulas do Poder Judiciário (as relações hodiernas com o Ministro Gilmar Mendes traduzem uma excepcionalidade impressionante nesse histórico de silêncios corporativos), segue a imensa maioria dos Juízes do Brasil, alheios ao fenômeno associativista e até mesmo à vida da Instituição a que pertencem, por se reconhecerem incapazes de fazer prevalecer os próprios méritos aprimorados na carreira, os ideais profissionais que abraçaram desde a investidura e um dia, pela razão da experiência não raro também fraudada, a efetiva contribuição para os seus destinos.

No Brasil, as instituições são muito boas na concepção de origem, mas o seu funcionamento sofre um "sarapatel" (como diria um grande amigo jornalista) de influências subsistemáticas que quase as anulam como categoria de Estado. O ciclo é por demais vicioso e nada sugere que vá ocorrer transformação tão cedo. O STF inventou uma Emenda Regimental que se lhe autoriza a requisitar, fora de toda previsão constitucional e complementar, conforme já referido, juízes em geral para atuarem em funções de auxílio junto aos Gabinetes dos seus respectivos Ministros (Emenda Regimental 22/2007 – clique aqui para ler).

Ou seja, foi concebido ao talante de sua composição de momento uma espécie de mobilização nas carreiras da Magistratura e um título a mais para ser arbitrariamente acrescido ao patrimônio jurídico-funcional de Magistrados privilegiados pelo fisiologismo de ocasião. As Associações de Classe de Magistrados, outrossim, paradoxalmente, têm servido a esse propósito de aproximação subjetiva. Não é coisa rara observar que ex-presidentes logo se tornem Desembargadores, Ministros, Conselheiros e até Deputados. No vácuo desses cargos judiciais, verdadeiros "burros de carga" tomam nas costas, em silêncio e humilhados, o serviço amontoado do colega que subiu meteoricamente, assim como mágico ou foguete, e deixou os seus acervos para trás. E ainda falam em morosidade estrutural da Justiça e nos condenam, midiaticamente, por isso.

Ninguém sabe aonde vamos parar! Ao que parece, a Magistratura, ao contrário do que vem sendo difundido pela grande imprensa, está sitiada por uma grande conspiração do cinismo. Enquanto isso, postulações sérias que tratam dessas e de outras contradições que partem geralmente das cúpulas jazem sem solução em Tribunais e Órgãos Administrativos, preferencialmente sem audição colegiada que é para facilitar o efeito pretendido, mas não confessado, quanto ao desvio do curso natural dessas demandas de fato perturbadoras e para as quais não há resposta juridicamente válida e moralmente aceitável. Também o Poder Legislativo tem adormecido no processamento das matérias que interessam de perto à Magistratura Nacional como forma quase declarada de hostilização de seus quadros porque às vezes se metem a agir fora de seus limites. A menos que se admita de vez que somos o país do “mais ou menos”.

Nada obstante, o maior predicado da Administração da Justiça em todo tempo e lugar é, sem dúvida, a sua intangibilidade e o crédito social sem o qual suas decisões carecem de legitimação, muito embora edulcoradas pelos mais sólidos consideranda que a tudo, afinal, podem “justificar”, embora sem jamais explicá-lo. Mais do que da eficiência, a legitimidade do poder vem da correção.

Livrar a cidadania e a democracia brasileiras de anomalias que tais é responsabilidade de toda a Nação —  O Procurador-Geral da República e o Conselho Federal  da Ordem dos Advogados do Brasil  foram instados a se pronunciar sobre a matéria.

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