Judiciário político

O papel político dado ao Supremo pela Constituição

Autor

  • Manoel Gonçalves Ferreira Filho

    é professor emérito e titular aposentado de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo). Doutor honoris causa da Universidade de Lisboa. Doutor pela Universidade de Paris. Ex-professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence (França). Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Presidente do Instituto "Pimenta Bueno" — Associação Brasileira dos Constitucionalistas.

8 de abril de 2009, 8h00

Após quase vinte anos de vigência da Constituição de 1988, a ordem constitucional por ela conformada manifesta aspectos que certamente não foram previstos pelos seus autores, nem identificados pelos juristas que, por primeiro, a comentaram.

Destes, um, talvez o mais importante, é o papel político assumido pelo Judiciário e, em especial, pelo Supremo Tribunal Federal. Sem dúvida, é a Constituição disso responsável em última instância, em razão de suas peculiaridades e dos institutos que adotou, aos quais se agregaram os aportes de Emendas e da legislação promulgada neste período.

Não me parece, porém, que isso tenha sido almejado pelos constituintes, nem pelos que elaboraram suas alterações e complementações. Está nisso um bom exemplo de como as constituições “crescem”, num processo evolutivo que alguns diriam auto-poiético. É óbvio que tal evolução muito tem dependido da mentalidade dos magistrados contemporâneos, mas ela própria foi indubitavelmente estimulada pelo texto constitucional.

Quando se fala em papel político, torna-se mister esclarecer o sentido da locução. Ela, com efeito, pode sugerir uma atuação em prol de grupos políticos, de modo faccioso. Não é este, contudo, o tema deste trabalho, mas sim o fenômeno de o Judiciário vir assumindo um papel na formulação da política do Estado brasileiro. Quer dizer, tomando decisões que não só conformam a ordem constitucional, mas também direcionam a ação administrativa e legislativa do país.

Explicite-se melhor a ideia. O Judiciário, desde a República, vem, de mais em mais, exercendo um controle sobre a atuação dos demais Poderes. Ele desde então fiscaliza os atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, apreciando a constitucionalidade e a legalidade dos mesmos. Entretanto, até ontem esse controle tinha um caráter que se pode chamar de negativo. Desfazia atos inconstitucionais e ilegais. Hoje, porém, a esse controle negativo se acrescenta um outro, que se deve qualificar de positivo. É o de determinar a ação governamental, até de modelar a própria ordem constitucional. Isto se tem realizado de vários modos, inclusive pela utilização, num rumo novo, dos instrumentos de controle negativo.

É o que se vai examinar adiante.

Do controle negativo ao controle positivo

Logo nos primeiros passos da República, o Judiciário, e em especial o Supremo Tribunal Federal, foi chamado a exercer um controle sobre os atos do Poder Executivo. Instaurava-se assim o controle negativo. Quem conhece a história jurídica do Brasil não ignora as batalhas de Rui Barbosa e outros contra atos abusivos do governo.

Isso levou à chamada doutrina brasileira do Habeas Corpus, com a utilização desse writ para a defesa de direitos outros além da liberdade de locomoção, seu objetivo natural na origem inglesa. Igualmente, age a imaginação criadora dos advogados, servindo-se para o mesmo desiderato dos interditos possessórios.

Quando as Emendas de 1926 estancaram aquele expediente, imediatamente se cuidou de criar outro. Veio com a Constituição de 1934 o Mandado de Segurança, “para a defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade” (artigo 113, nº 33). Com esse, aliado ao Habeas Corpus (artigo 113, nº 23), armava-se o indivíduo de meios expeditos para a garantia de seus direitos, abrindo-se ao Judiciário o controle dos abusos de autoridade de toda espécie.

Esses dois instrumentos foram acolhidos pela Constituição de 1946.[1] Essa, na verdade, alargou-lhes o campo ao afirmar que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual” (artigo 141, parágrafo 4º), o que eliminava o bloqueio do controle pela invocação de “ato político”.

Não desapareceram esses writs do Direito Constitucional brasileiro, mesmo no período autoritário de vigência da Constituição de 1967, e depois, da Emenda 1/69, embora os Atos Institucionais os tenham de fato cerceado.


Eles estão presentes na Constituição vigente, o Habeas Corpus — no artigo 5º, inciso LXVIII —, e o Mandado de Segurança — no artigo 5º, inciso LXIX. Adotou, mais, o Mandado de Segurança coletivo (artigo 5º, inciso LXX) e o Habeas Data (artigo 5º, inciso LXXII), sempre visando à correção de abusos de poder.

Vale, neste passo, remontar à Constituição de 1934. Esta, além do Mandado de Segurança, instituiu a Ação Popular (artigo 113, nº 38), dando um importantíssimo passo para o controle da atuação governamental. Tal ação serviria para obter “a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos ao patrimônio da União, dos Estados e Municípios”.

Foi ela recebida pela Lei Magna de 1946, bem como pelo Direito Constitucional posterior, com a complementação de que seu alcance abrangia todas as entidades públicas e, portanto, as autarquias, sociedades de economia mista etc. Por sua vez, a jurisprudência veio a dar um entendimento amplo ao conceito de patrimônio, para abranger também o patrimônio histórico, cultural, artístico e ambiental. Com isso, abriu-se a porta para uma forma insofismável de controle substantivo de ações e políticas públicas, pois o conceito de lesividade permite muitas interpretações. Assim, abriu-se um outro caminho para a intervenção do Judiciário na formulação política, a partir de um instrumento concebido para o controle negativo.

A Constituição de 1988 formalizou a extensão dada pela jurisprudência ao conceito de patrimônio público. É explícita ao atribuir-lhe a finalidade de “anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural” (artigo 5º, inciso LXXIII).

Acrescente-se que, em 1985, foi instituída a Ação Civil Pública, voltada, entre outras finalidades, para a defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis e, portanto, para a tutela dos direitos difusos. Este novo instrumento já se prestava melhor que os writs para um controle positivo.

A Lei Magna em vigor a consagrou, ampliando-lhe o alcance. E fez mais. Atribuiu ao Ministério Público a função institucional de “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” (artigo 129, inciso III).

Ora, a Constituição vigente deu ampla autonomia ao Ministério Público. Encarou-o como um fiscal da administração, de modo que lhe abriu as portas para a multiplicação de postulações perante o Judiciário, que redundam em outras tantas ocasiões de controle da administração pública, quer do ângulo negativo, quer, frequentemente, do ângulo positivo

Os instrumentos apontados, construídos para o controle negativo, têm servido para que o Judiciário exerça um papel político. Com efeito, decisões judiciais, por ocasião de sua apreciação, têm imposto correções de rumo ou exigências condicionantes, que significam muitas vezes opções políticas.

Isso é facilitado por uma peculiaridade da atual Constituição. Esta não restringe o controle judicial ao aspecto da legalidade, em sentido estrito. Ela impõe à Administração diversos princípios, além da legalidade, como a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência (artigo 37, caput). Assim sendo, o Judiciário pode e deve verificar a observância desses princípios.

É evidente que esses princípios são amplos, abertos, e ensejam desdobramentos discricionários, senão arbitrários. Por meio deles, a decisão judicial pode amoldar o próprio mérito dos atos administrativos e, consequentemente, impor à ação governamental rumos que não são os preferidos pelas autoridades. Ou seja, assumir um papel político.

Assinale-se, enfim, um desenvolvimento importante, e certamente imprevisto, em 1988. É a imposição de políticas públicas por parte do Judiciário. Ou seja, uma flagrante atuação política positiva por parte deste, desde as instâncias inferiores.


Com efeito, têm sido frequentes as decisões judiciais impondo à Administração Pública condutas destinadas a efetivar programas ou metas previstas na Constituição ou na legislação infraconstitucional. Isto se tem dado, o mais das vezes, em nome da efetivação de direitos fundamentais, com apoio no artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei Magna, que confere a tais direitos aplicabilidade imediata. Assim, inúmeras são as decisões que, a fim de concretizar o direito à saúde, têm determinado o fornecimento de medicamentos; para concretizar o direito à educação, impõem a instituição de vagas escolares; afora as que vêm dispor sobre a proteção de minorias, de espécies animais ameaçadas de extinção etc. Isso especialmente por meio de Mandados de Segurança, individuais ou coletivos, ou por meio de Ações Civis Públicas.

Essas decisões envolvem, muitas vezes, delicados problemas para o Executivo, que está jungido a normas orçamentárias e a limitações de recursos, o que põe o problema da chamada “reserva do possível”. Não os ressente, todavia, o Judiciário, pois o cumprimento de suas deciões é encargo alheio.

A conformação do ordenamento constitucional.

Igualmente, a evolução do controle de constitucionalidade registra a passagem de um controle negativo para um controle positivo.

Desde a República, o Direito Constitucional brasileiro possui o controle de constitucionalidade. Nasceu ele como um controle difuso, incidental, de eficácia inter partes, segundo o chamado “modelo americano”. Adotou o pressuposto de que o ato inconstitucional seria nulo e de nenhum efeito. Por isso, a decisão judicial que reconhecesse a inconstitucionalidade teria caráter declaratório e importaria numa desconstituição ex tunc dos efeitos do ato condenado.

Nesse enfoque, o controle de constitucionalidade seria um típico exemplo de controle negativo. Seria, por analogia com o controle de legalidade aplicado aos atos administrativos, um controle de supralegalidade, considerando-se a Constituição com a lei das leis. Apesar desse enfoque despolitizante, ainda assim se reconhecia ao Supremo Tribunal Federal o papel de legislador negativo, o que, à evidência, insinua um aspecto político.

Esse controle seria uma operação meramente jurídica, abstraindo-se por inteiro os aspectos políticos que poderia suscitar. Seria o mero afastamento da aplicação de uma norma contrária à Constituição num caso concreto e determinado. Tanto assim que, mesmo depois de declarada a inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, poderia ela continuar a ser aplicada.

Com a Constituição de 1934, procurou-se corrigir este contra-senso, prevendo-se que o Senado suspendesse “a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário” (artigo 91, inciso IV).

Tal sistema de controle foi mantido pelas Constituições posteriores e ainda está presente no direito vigente.

Entretanto, ele coexiste desde 1965 com outro sistema, qual seja o do controle concentrado, principal, abstrato. De fato, a Emenda 16/65 instituiu uma “representação contra a inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador Geral da República”, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (artigo 101, inciso I, alínea “k”). Neste caso, segundo a interpretação do próprio Supremo Tribunal Federal, a declaração de inconstitucionalidade teria efeito erga omnes, independendo da suspensão da execução por obra do Senado.

Isto perdurou no Direito Constitucional posterior, sem maior reflexo, eis que, sendo então o Procurador Geral da República livremente nomeado e exonerado pelo Presidente da República, apenas submetia ao Supremo Tribunal Federal as arguições de inconstitucionalidade que conviessem ao Governo.

O quadro acima mudou com a Constituição de 1988 e vem mudando cada vez mais, em razão da legislação infraconstitucional e, mais recentemente, da Emenda 45/04. De mais em mais, o controle concentrado ganha terreno e, diga-se desde logo, se politiza.


Por um lado, a legitimidade ativa para a ação direta de inconstitucionalidade foi conferida a inúmeras autoridades e também a entes como o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, partidos políticos com representação no Congresso Nacional, confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, de modo que sua propositura não mais fica freada pelo interesse governamental, bem ao contrário. Por outro, o texto constitucional, frequentemente fruto de acordos entre propostas incompatíveis, enseja controvérsias de interpretação, nem se falando que é mal redigido e, pela consagração de princípios abstratos, dá oportunidade às mais variadas arguições.

Ora, as ações diretas têm uma face política que a tecnicidade de seu exame não logra esconder. Elas ensejam, em regra, manifestações em sede de medida cautelar, e, com isto, pouco, pouquíssimo tempo depois de promulgado o texto, ele pode ser confirmado pelo Supremo Tribunal Federal ou ter suspensa a sua eficácia. Isto é visto como uma vitória do proponente da lei — no mais das vezes, o Executivo — ou da oposição. Por esse viés, a aparência política do fato avulta, por mais que a decisão tenha sido estritamente jurídica. Mas neste caso, o viés político se torna de contestação difícil, ao menos na aparência que apercebe a opinião pública.

Os caracteres da Constituição de 1988, mais francamente os seus defeitos, acarretam igualmente uma multiplicação de litígios a serem decididos no controle difuso. Decisões de juízos e tribunais se contradizem sobre o mesmo ponto, criando-se uma verdadeira “babel” judicial, de graves consequências, porque se reflete em ordens e contra-ordens a respeito de obras e políticas públicas importantes.

Para pôr termo a isso, a Emenda 3/93 instituiu uma Ação Declaratória de Constitucionalidade. Esta, como o nome indica, habilita o Supremo Tribunal Federal a declarar a constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Sua decisão, em tal ação, terá eficácia contra todos e efeito vinculante, com isto devendo encerrar a controvérsia.

Em vista de tal ação, o Supremo Tribunal Federal se torna um legislador “ativo”, não apenas um legislador negativo, tornando-se como que uma terceira Câmara do Congresso. Ao decidir esta ação, o Supremo Tribunal Federal tende a tornar-se co-responsável por suas determinações.

Um outro instrumento tem de ser ponderado a propósito do fortalecimento do controle abstrato pelo Supremo Tribunal Federal. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, prevista no parágrafo único do artigo 102 da Constituição, na redação primitiva.[2]

Somente foi ela regulamentada pela Lei 9.882/99. Destina-se a “evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público”, ou “quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição” (artigo 1º).

No que interessa à presente análise, o ponto importante é o de que, no seu curso, pode ser deferida liminar, para que seja suspenso o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da arguição. Ao decidir a questão, o Supremo Tribunal Federal fixará as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental (artigo 10) e a decisão terá efeito vinculante (artigo 10, parágrafo 3º).

A digressão sobre os modos pelos quais se faz o controle de constitucionalidade na ordem vigente não é gratuita. Ela é necessária para que bem se apreenda o papel político que deles deriva em favor do Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, as Leis 9.868/99 e 9.882/99 que, respectivamente, regulam, aquela as Ações Direta de Inconstitucionalidade e Ddeclaratória de Constitucionalidade, e esta, já referida, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, contém, nos mesmos termos, o seguinte:


“Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de qualquer outro momento que venha a ser fixado” (artigo 27 da Lei 9.868, e artigo 11 da Lei 9.882).

Trata-se de uma norma revolucionária, no sentido de que revoluciona a doutrina aceita acerca do valor do ato inconstitucional e, por via de consequência, a própria teoria da Constituição, ao menos tal qual era vista pela grande maioria dos juristas brasileiros.

Fácil é demonstrá-lo. O ato inconstitucional, embora em princípio seja nulo — no sentido de desfeito ex tunc — pode não o ser, pois outra coisa não decorre da possibilidade de restrição dos efeitos da declaração. Isso enseja uma modulação dos efeitos da inconstitucionalidade, como está na doutrina portuguesa[3] e deflui do ensinamento de Kelsen.[4]

Aponte-se mais que, ao restringir os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal está alterando de fato a Constituição. É certo que a fixação do momento a quo da inconstitucionalidade não chega a tanto, mas indubitavelmente é uma apreciação política, uma apreciação de oportunidade.

O aspecto político da decisão, porém, fica mais nítido ainda quando se considera o quorum necessário para a modulação e o fundamento a justificá-la.

O quorum é a maioria de dois terços, típica de deliberação política em matérias de grande relevo. Quorum este, aponte-se, que não é o da maioria absoluta necessária para a declaração da inconstitucionalidade (Constituição, artigo 97). Isto é o suficiente para mostrar que se trata de uma deliberação que foge ao comum da atuação ordinária de um tribunal.

Quanto ao fundamento da modulação, um deles — a segurança jurídica — exprime um princípio bem conhecido do mundo do Direito, embora seja aberto a concretizações variadas. Mas “excepcional interesse social” não é conceito jurídico, é um conceito totalmente aberto, de evidente conotação política. É, no fundo, uma apreciação de mérito (conveniência e oportunidade). Uma apreciação política, a refletir o papel político assumido pelo Supremo Tribunal Federal na ordem constitucional vigente.

A Emenda Constitucional 45/04, por meio da súmula que instituiu (artigo 103-A da Constituição, com a redação que deu a esta), atribui ao Supremo Tribunal Federal uma outra função política. Trata-se do poder de editar súmulas, isto é, enunciados normativos, destinadas a definir “a validade, a interpretação e a eficácia de normas (constitucionais) determinadas” (artigo 103-A, parágrafo 1º). Tais súmulas equivalem, no fundo, a leis interpretativas, pois têm efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Judiciário e da administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Seriam elas a condensação da jurisprudência, após “reiteradas decisões sobre matéria constitucional”. Mas aqui, de novo, o quorum exigido e o fundamento justificativo demonstram o caráter político de tal instituto. Tal quorum é a maioria de dois terços dos membros da Suprema Corte e a isto se aplica o que mais alto já se disse. O fundamento seria “grave insegurança jurídica”, o que é uma inegável abertura, e “relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica”, e a referência à relevância representa também incontestável latitude de apreciação.

A conformação do ordenamento infra-constitucional

O constituinte de 87/88, sem dúvida alguma, temeu que preceitos constitucionais ficassem letra morta, por falta de regulamentação, sobretudo legal, que permitisse a sua aplicação.


Inscreveu, por isso, no texto, dois instrumentos que conduziriam a tal regulamentação. Um, a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, outro, o Mandado de Injunção. Traduzem eles, observe-se, a dinâmica da Constituição dirigente por muitos almejada, que obriga o legislador a dar seguimento às opções de futuro tomadas pelo constituinte.

A Ação de Inconstitucionalidade por Omissão não mereceu mais do que um parágrafo, inserido no artigo 103, que trata da legitimidade ativa para a propositura das ações do controle abstrato, bem como do papel nessas ações do procurador-geral da República e do advogado-geral da União. Bom exemplo é da deficiente técnica do texto.

Está neste parágrafo:

“Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias”.

Como se vê, tal ação serviria para constituir em mora — permita-se o símile — o órgão responsável pela omissão. Nada se prevê para o caso de tal órgão dar de ombros e ignorar a advertência. É verdade que juristas há que pretendem que, nesse caso, o Supremo Tribunal Federal editaria a medida.

Entre nós, como lá fora — em Portugal, por exemplo —, a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão não levou a nada e está (quase) esquecida.

O Mandado de Injunção é uma criação do constituinte de 87/88, tendo sido infrutífera a busca de precedente estrangeiro a seu respeito. Está ele previsto no artigo 5º, inciso LXXI, verbis:

“LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

Este instituto provocou forte polêmica entre os juristas. Uma das razões disto é a dificuldade de identificar o seu campo de incidência. Outra, é a que interessa a este trabalho.

O texto, lido sem parti pris, enuncia a hipótese de cabimento do Mandado de Injunção, é silencioso quanto ao mandamento. Assim, deixou indefinido o que imporia o mandado de injunção, constatada a falta de norma regulamentadora dos direitos e prerrogativas a que se refere.

Várias correntes formaram-se então que se digladiaram na doutrina, o que repercutiu na jurisprudência. Uma, cautelosa, de que o Mandado de Injunção, por analogia com a Ação de Inconstitucionalidade por Omissão, conduziria simplesmente a dar ciência à autoridade competente dessa falta, ou omissão. Outra, que o tribunal competente supriria essa falta, editando ele próprio a norma, ou as normas regulamentadoras.

O Supremo Tribunal Federal primeiro inclinou-se pela solução cautelosa, mas seu posicionamento evoluiu. Veio a prever que, perdurando por longo prazo a falta de regulamentação, ou, sem mais, pudesse o titular do direito exercê-lo, ou que ao caso concreto se aplicassem normas legais que têm analogia com a disciplina jurídica faltante. Fê-lo há pouco a propósito da regulamentação do direito de greve do servidor público.[5]

Este suprimento de omissões para a completa integração do ordenamento infraconstitucional inscreve-se no plano da decisão política, pois envolve uma apreciação de conveniência e oportunidade.

Esta última questão — a da integração do ordenamento infraconstitucional em suprimento da falta de regulamentação legal — é tecnicamente o que se passou, ainda em 2007, a respeito de tema que concerne à própria conformação da ordem política e, assim, é de enorme importância. Ela transparece de decisões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, que se interligam.

Como se sabe, o Tribunal Superior Eleitoral é o órgão máximo da Justiça eleitoral. Entre suas atribuições está a de responder a consultas sobre matéria eleitoral e partidária. Em resposta a consultas, teve ele de examinar a delicada questão da relação entre o partido e aqueles que, sob sua legenda, se elegeram. Concretamente, a dúvida se os eleitos por um partido perderiam o mandato caso o deixassem. Tal tema, aliás, não mereceu norma explícita na Constituição, embora o artigo 17, parágrafo 1º desta, mande que os estatutos partidários tratem da fidelidade e da disciplina partidárias.


Entendeu o Tribunal Superior Eleitoral que, embora a Constituição não disponha sobre a sanção do abandono do partido, tal sanção estaria nela implícita: seria a perda do mandato, salvo motivo justo. E isto tanto para os eleitos segundo o sistema de representação proporcional — deputados — como para os eleitos em eleição majoritária — como senadores.[6]

Tal orientação já foi corroborada pelo Supremo Tribunal Federal quanto à questão da perda do mandato dos eleitos pelo sistema proporcional que tinham abandonado o partido pelo qual se haviam elegido.[7]

Posteriormente a isso, o Tribunal Superior Eleitoral editou uma Resolução dispondo sobre o assunto.[8] Substituiu-se, pois, ao legislador omisso. Evidentemente desempenhando uma tarefa política.

Quanto aos eleitos em votação majoritária — os senadores e chefes do Executivo — ainda não houve manifestação da Corte Suprema, mas se estima que siga a mesma orientação.

A análise feita demonstra que o Judiciário, e em especial o Supremo Tribunal Federal, tem exercido uma função política, no sentido de que suas decisões têm comandado políticas públicas, bem como conformado a ordem constitucional e infraconstitucional. Este papel certamente não se coaduna com o que a doutrina clássica lhe atribuía, qual seja o de exercer um mero controle negativo, um controle de legalidade e supralegalidade sobre a condução da política estatal. O novo papel, sem dúvida, é ensejado pela Constituição vigente, mas inclui elementos de inequívoca construção jurídica.

O fenômeno apontado tem repercussões que merecem ser levantadas para exame futuro mais profundo. Comece-se por um aspecto de ordem doutrinária.

Este concerne à separação dos poderes, cláusula pétrea da Constituição de 1988. Será esta compatível com o papel político do Judiciário? Ou a separação dos poderes, no sistema da Constituição brasileira, está muito longe da doutrina clássica? Significa, apenas, do ângulo negativo, a proibição da concentração do Poder, e do ângulo positivo, uma repartição de funções que obedece não a critérios científicos, mas ao mero empirismo?

A segunda, embora possa ser incluída no rol das questões doutrinárias, tem maior relevância prática e implicações mais delicadas.

Trata-se da indagação se esse papel político do Judiciário se coaduna com a democracia, ou até que ponto com ela se coaduna.

Lembre-se que os integrantes do Judiciário não são eleitos pelo povo — e Deus nos livre disto. São escolhidos, na carreira, por meio de concurso, fora dela, como no que toca ao Supremo Tribunal Federal, numa seleção com a participação do Executivo e do Legislativo.

Ora, o artigo 1º da Constituição é muito claro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Em face deste princípio — o da soberania popular — estará o Judiciário, ao exercer poder político, usurpando prerrogativas do povo e dos representantes do povo?

Claro está que se pode fugir disto, apontando que todo princípio enseja graus variados de otimização, ou, invocando uma tradição que remonta a Aristóteles, ser o nosso regime um governo misto, do qual o Judiciário seria o elemento aristocrático.

A terceira, e última, volta-se para o problema da politização — agora no mau sentido — do Judiciário.

Acostumando-se a decidir questões políticas, o Judiciário — ou melhor, alguns juízes — podem ceder à tentação de suprir com suas liminares ou julgamentos os demais Poderes, vistos como omissos ou corruptos. É o ativismo judicial que não está ausente do Brasil atual.

Ademais, por decidir questões políticas, o Judiciário tende a se politizar, assumindo ele próprio viés ideológico. Disso, é um passo curto a perda da imparcialidade e a assunção de papel partidário, no sentido lato e no sentido estrito do qualificativo.

Por outro lado, a percepção de que o Judiciário tem um papel político, pode criar a tentação de afeiçoá-lo ao partido, ou partidos que prevaleçam naquele momento na cúpula governamental. À perda da imparcialidade, aí, se somaria a perda da independência.

Seria talvez o caso de despolitizar o Judiciário comum, criando-se uma Justiça Constitucional, esta sim voltada para os problemas políticos? Seria talvez o caso de repensar o modo de seleção dos membros escolhidos do Judiciário? Seria talvez o caso de repensar a vitaliciedade dos membros de determinadas cortes, a fim de evitar que, por muito e muito tempo, os escolhidos por um partido dominem as decisões?

Eis questões merecedoras de análise e debate, como o é certamente a questão geral do papel poítico do Judiciário.

 


[1] Não menciono a Carta de 1937, que alíás previu o habeas corpus, porque esta não teve efetividade.

[2] Hoje, § 1º.

[3] Cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 2ªed., 1998, p. 838 e s.; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, vol. VI, volume este intitulado Inconstitucionalidade e garantia da Constituição (Coimbra Ed., Coimbra, 2001).

[4] Hans Kelsen, Teoria pura do Direito, trad. port., Amado, 2ª Ed., 1962, vol. II, p. 149 e s.

[5] Mandados de injunção: MI 670, Rel. para o acórdão, Min. Gilmar Mendes; MI 708, Rel.: Min. Gilmar Mendes; MI 712, Rel.: Min. Eros Grau.

[6] Sobre deputados que deixaram o partido pelo qual se tinham elegido TSE Consulta nº 1.398, Relator: Min. César Asfor Rocha. Sobre eleitos em eleição majoritária, TSE Consulta nº 1.407, Relator: Min. Carlos Britto.

[7] Mandados de segurança MS 26.602, Rel.: Min. Eros Grau; MS 26.603, Rel. Min. Celso de Mello; MS 26.604, Min. Carmen Lúcia.

[8] Resolução nº 22.610.

Autores

  • Brave

    é advogado, professor titular aposentado de Direito Constitucional e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; é Doutor em Direito pela Universidade de Paris e Doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foi professor visitante da Faculdade de Direito de Aix-en-Provence e é presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas - Instituto Pimenta Bueno, além de ex-vice-governador do estado de São Paulo

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