Mantras coletivos

Discursos da mídia colocam policial como culpado

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7 de abril de 2009, 14h15

Nossos juízes não vêm de outro planeta. Ainda que perplexos com o discurso vigente e receosos com os mecanismos de sedução, não estão imunes à teia social que se tece. As paixões e o mundo que os cercam se refletem em suas sentenças. Afinal, quando decidem, o fazem com o conhecimento acumulado, adquirido nas grandes universidades, durante longas horas de estudo, suportado nos grandes autores, em julgados.

Mas não só nisso. O processo de apreensão do imaginário coletivo, a conversa com colegas, os telejornais, as revistas e todo um mundo subliminar conduzem magistrados a essa ou aquela corrente jurídica. A isto se somam fatores culturais, como origem, religião, histórico familiar abastado ou não. O raciocínio que se traça leva em conta fatores paralelos, vetores, fatos e circunstâncias que acabam afastando ou aproximando os juízes do tecnicismo legal, para afinal decidirem com base em leis elaboradas por outros cidadãos que, à semelhança deles, também não vieram de outro planeta.

É esse somatório que os faz produzir sentenças, que os norteia à hermenêutica individual, que desperta neles os mecanismos idiossincrásicos, os quais serão determinantes para organizar mentalmente o manejo que possibilitará interligar o caráter sistêmico de uma Constituição.

Sendo o Direito uma ciência que se materializa segundo quem, segundo alguém, segundo algo, as opiniões pessoais reduzem-se a fragmentos. Afinal, escrevem “segundo Carrara”, “conforme Kelsen”, “o preclaro Rui Barbosa foi enfático”, “como já pontificou a Egrégia Câmara”… Assim o dizem, ad solemnitatem, pois uma expressão latina também reforça um discurso. Pouco importa o instrumental retórico para abalizar falas. O Direito é, definitivamente, segundo alguém, segundo quem.

Tudo, não raro, para demonstrar visões distintas sobre um mesmo fato ou dispositivo, residindo neste último o fator mais grave ou mais polêmico, já que a Constituição Federal e o Código de Processo Penal utilizado pela Suprema Corte têm a mesma fonte, quiçá a mesma redação.

Em síntese, o Código Penal do delegado de Polícia, do advogado e de um ministro do Supremo Tribunal Federal é o mesmo. O que difere, então? Sem dúvida alguma, além de circunstâncias outras, o que faz a diferença é a leitura movida ou influenciada por fatores nada transcendentais, e sim absolutamente materiais decorrentes do fato de sermos todos do mesmo planeta.

Mas dizia o autor que o Direito é segundo quem, segundo alguém, e nesse sentido não ousaria ser diferente. A filósofa Marilena Chauí conseguiu sintetizar bem essa ideia dos discursos autorizados. “Não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer circunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram predeterminados para que seja permitido falar e ouvir e, enfim, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência”. (CHAUÍ, 2003, p. 7).

Existem, pois, os referenciais previamente autorizados, atestados e provados, reconhecidos que servem de baliza para o que se diz. Nesse sentido, não integrando o autor ao rol dos previamente reconhecidos e autorizados, não é, portanto, “quem”, para mais uma provocação aos operadores do Direito, o que não impede, dentro de uma democracia, de manifestar sua opinião.

Sob esse prisma, se de um lado tem-se o speaker autorizado, de outro também se sobressaem as palavras-chaves, os vocábulos autorizados, verdadeiros mantras, por meio dos quais se congelam raciocínios, e que estão muito em voga. Sob a perspectiva desses discursos e falas autorizadas, em que seres deste planeta produzem e aplicam leis, cumpre a eles relembrar algumas sutilezas, em especial escondidas em certas palavras para mascarar a realidade ou “criar realidades ficcionais”, em que "os meios de informação e comunicação julgam ter tomado o lugar dos deuses". E olha Marilena Chauí aí de novo.

Pois bem. Dentro desse contexto, ações assinadas pela Polícia Federal acabam sendo debatidas em um contexto em que não se sabe o que é mais grave, se a “espetacularização das prisões” ou “escandalização das solturas”. Figuram como ingredientes desses fenômenos verdadeiros mantras ou versões semânticas de palavras, fatos, situações. A anomalia dá sinais de vida no fato de que já não se fazem mais buscas em escritórios de advocacia, mas sim invasão. Com pouco escrúpulo ou escrúpulo algum, os discursos autorizados reverberam, por meio daqueles que tomaram o lugar dos deuses, o termo “invasão”. Com isso, pouca distinção se faz entre os advogados que defendem causas e clientes dos que eventualmente possam defender ou praticar o crime. Semeada a palavra invasão, de posse de um microfone e indagando a uma autoridade sobre o que diz da “invasão”, ela certamente a condenará. Assim, com a manchete Ministro condena a invasão, claro, o discurso autorizado se propaga.

Da mesma forma que se desacreditam institutos jurídicos, aquele mesmo discurso ridiculariza um instrumental legal, de forma que a Lei de Interceptação Telefônica é tratada por “Lei do Grampo”, da mesma maneira que já não existem interceptações legais e tudo passa a ser “grampo”. Por ser este um instrumento sistemático de violação à intimidade, de prática reiterada por órgãos oficiais, o Estado – como um contrato social para se atingir o bem comum (Azambuja) – passa a ser o “Estado Policial”.

E pode chamar o mesmo repórter e o resultado será o mesmo. Mande-o entrevistar o presidente da Anistia Internacional e a resposta será óbvia. Mas, por acaso, já se deram ao trabalho de ler algo sobre o termo que empregam? Sujeito a aperfeiçoamentos (claro!), Polícia, Ministério Público, Justiça, Ordem dos Advogados do Brasil, imprensa, todos estão cumprindo seus respectivos papéis constitucionais. O que não ocorre no Estado Policial.

A repetição “mântrica” dessas palavras de ordem alcança o status de vocábulos previamente autorizados, de verdades consagradas, e ganham mais vigor à medida que são proferidas por personalidades também previamente autorizadas, até se chegar a cúmulos. Um exemplo é uma suposta interceptação de conversa telefônica entre duas personalidades da República, cujo áudio nunca se ouviu, está conseguindo se incorporar no imaginário coletivo como verdade. Alguém previamente autorizado já o disse. Eis, pois, o mundo ficcional se incorporando ao verdadeiro ou a ele substituindo.

É nesse mesmo cenário que não existem mais buscas, mas sim “invasão”; não há interceptação, mas sim “grampo”; servidores da Agência Brasileira de Inteligência são tratados por “arapongas”, da mesma forma que não existem mais fiscalizações, mas sim “devassas” e que qualquer intimação expedida para um jornalista – idôneo ou não – configura “ameaça à liberdade de imprensa”.

Dentro da mágica das palavras, recentemente, um representante do Ministério Público propôs a abertura de inquérito contra um delegado federal, por que uma única testemunha disse ter sido “pressionada via telefone”. Vale dizer, não existe advertência quanto ao dever legal de atender aos chamados de interesse da Justiça, legalmente em curso em uma instituição reconhecida pelo Estado. Existe, sim, a palavra “pressão” e ninguém mais é intimado, é “coagido”, e delegado não pergunta, “exige resposta”.

Ainda nessa linha, aparecem os investigáveis e os não investigáveis, os condenáveis e os não condenáveis. Recentemente, um veículo de imprensa conhecido, reverberando outro não menos influente, noticiou que o “Protógenes fez grampo” e “Daniel Dantas teria praticado crime”. Um veículo de imprensa fez matéria acusando um delegado federal de ameaça e em nenhum momento descreveu como, nem em que circunstâncias esta ocorrera. Mas a câmara de eco reverberou e não tardou a aparecer um speaker para defender o veículo e a liberdade de imprensa, em cadeia nacional de televisão.

Posto isto, ainda que vulnerável, o autor às suas próprias colocações, permite-se ir além.

Teme-se que esse vértice não seja mera artimanha de palavras. Inquieta, sobretudo, que aquele glossário já cristalizado possa estimular um embrionário sentimento de reação que já floresce dentro da Polícia Federal. É a denominada “testosterona policial”, protagonizada por alguns servidores novos, com amparo ou incentivo de outros antigos, que tem encontrado guarida em sua congênere do Ministério Público e do Poder Judiciário. Teme-se, pois, que aquela tal testosterona não leve servidores públicos a um surto catatímico, e que disso possam decorrer interpretações distorcidas de gravações telefônicas, da leitura de documentos ou da decodificação de linguagens cifradas.

“O pingo é letra”, os troféus, as vaidades, os concursos de idoneidade, o quixotismo podem ganhar força nessa contracultura. Disso pode derivar a quebra da supremacia da prova e privilegiar deduções. Não há nisso referência implícita ou explícita, mera conjectura de um temor, que na hipótese real implica em fundado receio de que, da reação ao descalabro nacional, possa se consolidar outro discurso que não se agasalhe nas conquistas da democracia.

Pontifique-se: o trabalho até o momento heróico da Polícia Federal, ainda sujeito a grandes melhoras, corre o risco de resvalar no descrédito.

Idêntica preocupação decorre do discurso difundido pela grande mídia, em especial que ganhe espaço no Poder Judiciário, de uma forma tal, que a palavra “presunto” se insira ao acervo vernacular dos magistrados. E assim, em não sendo mesmo os julgadores egressos de outro planeta, se deixem cair, indefinidamente, na armadilha dos mantras idealizados na usina do crime e difundidos pelos que assumiram o lugar dos deuses. O que inquieta é que o Estado de Azambuja, ao invés de existir para atingir “o bem comum”, só venha a se prestar para promover o bem ou os bens de poucos, ainda que obtidos de forma incomum, o que já se tornou comum. Ad gloriam!

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