Reforma de pensamento

Novo Código de Processo Penal pede nova mentalidade

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor doutor titular de Direito Processual Penal da UFPR conselheiro federal da OAB pelo Paraná e membro da Comissão Externa de Juristas do Senado Federal que elabora anteprojeto de mudanças no Código de Processo Penal.

6 de abril de 2009, 11h34

O ano de 1987 foi muito rico em discussões sobre a possível promulgação, na Itália, de um novo Código de Processo Penal, em face do anteprojeto estar concluído e o governo ter recebido poderes para emaná-lo a partir de uma legge delega de 16 de fevereiro de 1987. Pelas mãos de Giuliano Vassali, então ministro di Grazia e Giustizia e habilíssimo articulador político, o CPP italiano ora em vigor acabou promulgado em 24 de outubro de 1988, após 25 anos de debates. A Itália, dizia-se, enfim chegara à democracia processual. Em 12 de janeiro de 1988, Franco Coppi, estupendo professor de Direito Penal da Universidade de Roma “La Sapienza”, e até hoje um dos grandes advogados militantes, publicou um ensaio no jornal romano Il Messaggero no qual o título expressa quase tudo: “Arriva la nuova procedura, ma serve anche una nuova mentalità” (Chega um novo processo, mas é preciso também uma nova mentalidade).

Coppi sabia o que dizia: o grande desafio para um novo código como aquele — onde se mudou o sistema processual penal de inquisitório para acusatório — era fazer com que as pessoas, principalmente os aplicadores da lei, conseguissem entender a mudança e, com ela, mudassem também seu modo de dar sentido às regras ali dispostas em sistema. Isso parecia óbvio, ma non troppo. Afinal, desde 1215 — pelo menos — pensavam-se as regras processuais penais a partir de alguns postulados e, sendo assim, havia uma verdadeira “cultura” a impregnar as mentalidades. Daí o pertinente alerta, com serventia universal.

Agora que uma Comissão de Juristas nomeada no âmbito do Senado federal faz um anteprojeto (global, de todo o Código), do que pode vir a ser o novo CPP brasileiro, a questão começa a se colocar por aqui. E isto porque se decidiu, na dita comissão, mormente para se cumprir a Constituição da República, mudar o sistema processual penal, talvez se começando a enterrar a base inquisitorial que, na legislação atual, copiada do Codice Rocco (italiano), de 1930, fazia — e ainda faz — a sobrevida dos papas Inocêncio III, Gregório IX, Inocêncio IV e tantos outros, não fosse facínoras conhecidos como Torquemada, Bernardo Guy e Nicolau Eymerich, só para ficar em alguns mais antigos e, assim, poupar os atuais. Homem e poder formam uma dupla que, neste aspecto, não muda quase nada no curso da História.

O núcleo de um sistema — sabem todos ou deveriam saber, por Kant e outros — está no princípio reitor dele, ou seja, aquilo que como linguagem faz a ligação dos elementos que o compõem, a fim de lhe dar o conjunto organicamente estabelecido e, assim, permitir seu desenvolvimento até o fim demarcado, no caso dicere jus por juris dictio. Para se poder dizer o direito no marco da Constituição — principalmente com a possibilidade de algumas decisões se tornarem imutáveis em face da coisa julgada —, é preciso se ter, antes, um devido processo legal e, nele, o conhecimento sobre o fato pretérito que se apura — e chega pela prova — não pode ter suporte em uma lógica deformada, na qual prevalece o primato dell’ipotesi sui fatti (Franco Cordero. Guida, p. 51). Em suma, primeiro se decide, como resultado também do pensar; depois se vai à cata da prova — como meio para se dizer sobre o objeto, o crime —, de modo a justificar a decisão anteriormente tomada. Como diz Cordero, può darsi che giovi al lavorio poliziesco ma sviluppa quadri mentali paranoidi, ou seja, “pode ser que ajude no trabalho policialesco, mas desenvolve quadros mentais paranóicos” (Op. cit., idem). Os resultados todos conhecem, embora sejam figuras emblemáticas os justiceiros; e a democracia processual vai-se pelo ralo de uma hermenêutica vesga ou cega. O problema é que aqui não há nada de anormal e sim compatibilidade plena com o modo de pensar da civilização ocidental: ninguém age e depois pensa. Eis, então, a razão por que qualquer um que esteja naquele lugar tende a agir exatamente do modo como se age, deformando a lógica. Sendo impossível mudar isso, parece óbvio que se tenha de tentar evitar, por todos os meios, que aconteça.

A solução inicial para tanto, assim, é mudar para o sistema acusatório, retirando a gestão das provas das mãos do juiz e se fazendo cumprir o onus probandi às partes. Deste modo o juiz pode ter — se ganhar consciência de seu principal mister constitucional — a possibilidade concreta de funcionar como garante da Constituição — talvez o principal — e, por elementar, do cidadão; justo porque livre do dever referente à iniciativa probatória. Sem ele, não corre o risco de agir guiado pelos fantasmas das decisões a priori e, portanto, pode se colocar corretamente no lugar de equidistância das partes, como exige a CR.

Disso decorrem múltiplas consequências, embora a mais importante seja aquela que dá ao Ministério Público o lugar devido, já ocupado na Constituição, mas não de fato, por certo pela incorreta e inquisitorial sobreposição de funções entre ele e o juiz.

Restaria, por fim, dizer sobre a situação do juiz, no processo, diante da dúvida, ou seja, quando produzida a prova — sempre por iniciativa das partes —, permanecer uma indefinição, razoável, sobre ponto capital do caso penal. Nesta hipótese, optou a Comissão de Juristas do Senado — contra a minha posição e a do ministro Hamilton Carvalhido, ilustre presidente dela — que o juiz poderia ter a iniciativa probatória se fosse em favor do réu. A posição é de duvidosa constitucionalidade — embora lotada de boas intenções —, à evidência porque se não pode dizer por completo e ex ante se a iniciativa é mesmo para sanar dúvida em favor do réu e, assim, faz-se uma exortação à ética dos magistrados, dificultando-lhes a vida, dado se estar diante de questão que pode demandar o gasto desnecessário de muita energia psíquica e, portanto, sofrimento.

Em definitivo, não parece de bom alvitre a proposta se se precisa de um juiz bem resolvido e o mais equilibrado possível. Ademais, em processo penal, conforme consagrado na modernidade — embora já existisse antes dela —, se terminada a instrução restar dúvida, razoável, o réu deve ser absolvido. É o princípio do in dubio pro reo. Não foi assim que entendeu a comissão, porém, e a quem não concordou coube se conformar. Isso mostra, por outro lado, quão democráticos têm sido os trabalhos nela desenvolvidos; e quão importante será a opinião de todos que venham em paz e possam e queiram ajudar.

Uma lei de tal porte é para todos — se ainda se crê na isonomia constitucional — e o mínimo a se ter é humildade para reconhecer que se não é dono da verdade, cabendo construir um código onde se erre o menos possível. Este é o espírito que preside a comissão e, assim, não só se recolhem sugestões desde o início de seu funcionamento, através do site do Senado federal como, concluídos provisoriamente os trabalhos, passar-se-á a fazer audiências públicas, abrindo-se os debates.

Enfim, pode-se ter um novo CPP, constitucionalmente fundado e democraticamente construído, mas ele será somente linguagem se a mentalidade não mudar.

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    é professor doutor titular de Direito Processual Penal da UFPR, conselheiro federal da OAB pelo Paraná e membro da Comissão Externa de Juristas do Senado federal que elabora anteprojeto de mudanças no Código de Processo Penal

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