Falta de ética profissional

Dirigentes não se atentam ao sistema de desporto nacional

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4 de abril de 2009, 12h13

Ao contrário do que acontece no sistema nacional de desporto profissional, no qual há regras claras a reger as relações entre clubes e atletas, bem como as situações e transações inter-agremiações, no desporto amador prevalecem outros valores. A míngua de um arcabouço jurídico a tutelar as relações, a ética funciona como elemento fundamental a pautar as decisões e atitudes tanto de dirigentes como de atletas.

No futebol, por exemplo, a mais profissional das modalidades de desporto coletivo, vigora a regra da “indenização por promoção ou formação” de atletas, diante do que declara o artigo 14 do Regulamento de Transferências da FIFA, in verbis:

“cuando un jugador no-aficionado concluya un contrato con un nuevo club, su antiguo club tendrá derecho a una indemnización de promoción y/o formación"

O Brasil adotava a regra do “passe”, segundo a qual um clube deveria indenizar o outro pela contratação de um jogador, mesmo após a extinção do vínculo contratual (conforme Lei 6354/76, artigo 11). Tal regra passou a ser contestada a partir da vigência da Carta Constitucional de 1988, que estabeleceu entre suas cláusulas pétreas a liberdade de ofício (artigo 5º, inciso XIII). Todavia, a jurisprudência manteve posicionamento no sentido da vigência da “lei do passe” e a Suprema Corte terminou por reconhecer a sua recepção dentro do novo sistema constitucional.

A situação somente se altera em 1998, sob clara influência da Lei Bosman aplicada na Comunidade Européia, com a edição da Lei 9.615, mais conhecida como “Lei Pelé”, que, em seu artigo 28, parágrafo 2º, estabeleceu que “o vínculo desportivo do atleta com a entidade contratante tem natureza acessória ao respectivo vínculo de emprego …". Por força do que estabeleceu a Lei 9981/2000, tal regra passou a viger apenas a partir de 26 março de 2001. E, mais adiante, a Lei 10.672/2003, incluindo disposições no referido parágrafo 2º do artigo 28 traçou três hipóteses de extinção do vínculo clube-atleta, a saber: I) término da vigência do contrato de trabalho, II) pagamento de cláusula penal por outra agremiação e III) inadimplemento salarial por parte da entidade desportiva empregadora.

Já no desporto amador, denominado pela Lei 9.615 de “desporto não-profissional”, o traço identificador é a liberdade de prática e a inexistência de contrato de trabalho (art. 3º, parágrafo único, II). Assim, embora autorizada a concessão de “incentivos materiais” e “patrocínios”, não é compatível com o desporto amador a entabulação de contrato de trabalho entre atletas e agremiações.

Diante de tal contexto, a realidade tem demonstrado que alguns dirigentes de modalidades do chamado “desporto amador” ou nunca leram as normas gerais do sistema de desporto nacional ou não conhecem os mínimos postulados éticos, tanto na relação clube-atleta como no trato com outras agremiações. Primeiro porque, no afã de formar equipes vencedoras, entabulam legítimos e incontestáveis liames empregatícios com seus atletas, o que, como já dissemos, desnatura, por completo, a natureza não-profissional da prática desportiva. E, via de regra, em que pese ofertar “salários” aos atletas (mesmo que travestidos sob outras rubricas), não reconhecem o liame empregatício, sonegando ao atleta os mais elementares direitos trabalhistas, tais como férias, 13º salário e, acima de tudo, sua vinculação com o sistema previdenciário público.

A legislação, ao prever a possibilidade do pagamento de “incentivos materiais” e “patrocínios”, claramente, traçou um vínculo entre tais concessões e os objetivos a serem alcançados com os mesmos. Diferente do que ocorre no desporto profissional, aonde os incentivos têm nítido cunho remuneratório, transformando o atleta em verdadeiro trabalhador, submetido, inclusive, a jornada de trabalho e subordinação ao empregador; no desporto não-profissional o incentivo material ou patrocínio justificasse apenas e tão-somente como um meio para que o atleta tenha condições de evoluir na prática desportiva. Ali a remuneração é entregue ao atleta que pode dela dispor com total liberdade, como qualquer trabalhador comum; aqui, no desporto não-profissional, o incentivo material deve se destinar a aplicação em meios que proporcionem melhorias diretas e específicas na prática desportiva. É dizer: o incentivo material é entregue mediante contraprestação específica.

A concessão de remuneração direta aos atletas no desporto não-profissional, fora de dúvidas, é uma transgressão aos sistema nacional do desporto e uma prática anti-ética. Ela dispensa o dirigente de obrigações tipificadas na legislação trabalhista, assim como das vinculações com o sistema previdenciário decorrentes. Mais, ela faz com que a agremiação burle as exigências traçadas na Lei 9615 para o desporto profissional, como é o caso do registro do contrato de trabalho, da submissão a exames clínicos e médicos dos atletas (artigo 34), a contratação de seguro acidente de trabalho (artigo 45) e da elaboração e publicação de demonstrações financeiras, após auditagem (artigo 46). E, com tudo isso, ela cria categorias diversas de agremiações dentro do “desporto amador”.

Do ponto de vista da relação entre agremiações, o acirramento do nível competitivo e o desejo de vencer acima de tudo desencadearam situações de aliciamento criticáveis. Dirigentes incompetentes na tarefa de criar canteiros em suas agremiações, buscam suprir tal deficiência através do aliciamento de atletas formados em outras agremiações, geralmente prometendo-lhe o pagamento de remunerações que, como se viu, desnaturam os elementos centrais do desporto não-profissional. E aqui cabe mencionar, pela primeira vez, o princípio da “diferenciação” plasmado no artigo 2º, inciso VI, de nossa Lei do Desporto, a estabelecer tratamento específico e finalidades diversas ao desporto profissional e ao desporto não-profissional.

Com tal agir, tais dirigentes afrontam a função social e pedagógica do desporto que, sem dúvida, encontra-se muito acima dos meros anseios particulares de “vitória acima de tudo”. Na Europa, cujos povos possuem nível cultural inquestionavelmente superior ao nosso, a declaração relativa ao desporto anexa ao Tratado de Amsterdã "salienta o significado social do desporto, em especial o seu papel na formação da identidade e na aproximação das pessoas". Formar um atleta no desporto não-profissional é, antes de tudo, imbuí-lo de atitudes, valores e princípios éticos e morais que lhe possibilitem atuar na sociedade como cidadão; transformando-o em ator não só dentro das quadras e pistas, mas também no teatro da vida.

A corroborar ao que sustentamos, Rodrigo Ferreira da Costa e Silva, especialista em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia de São Paulo, anota que, “embora o atleta não-profissional seja livre para se transferir para qualquer clube sem dar satisfação ao seu formador (…) dirigentes devem ficar atentos ao aliciarem jogadores em formação por outros clubes porque a falta de ética neste aspecto pode manchar moralmente a administração e o clube em si”. E é exatamente por atuar num campo em que não há regulamentação específica, como é o caso da situação do atleta amador, que a ética se revela postulado de suma importância a distinguir o bom do mau dirigente.

Como reflexão sobre a ação humana, a ética no desporto não-profissional se torna cada dia mais importante à própria sobrevivência e cumprimento das finalidades da prática. Mas, como sintetiza o professor e filósofo Vanderlei de Barros Rosas, “ética é algo que todos precisam ter; alguns dizem que têm; poucos levam a sério e ninguém cumpre à risca”.

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