Bom senso

Constituição Federal não proíbe a prática do nepotismo

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30 de setembro de 2008, 17h27

A continuada insistência em dar combate legal estrito ao cenário do nepotismo no Brasil como apanágio das mazelas sociais que nos afligem, pode estar refletindo uma atitude inteiramente desprovida de bom senso.

Malthus (Essays on the Principle of Population) explica que a escassez dos bens econômicos é móvel para a dissensão humana. Isso também pode explicar os móveis que agilizam corações e mentes no trato das utilidades presentes nos predicados do Estado, entre os quais os espaços que tradicionalmente vêm sendo reservados à ocupação por agentes que detenham vínculos de confiança com os que, também pertencentes à estrutura do Estado, são instados a promover escolhas entre alternativas que se considerem válidas.

Quanto ao nepotismo, vem sendo disseminado o entendimento segundo o qual não devem prevalecer as relações parentais como substrato da confiabilidade devida ao Estado, enquanto categoria jurídico-política, portanto não se confundindo com a intersubjetividade entre quem indica e quem é nomeado.

Ora, a situação não é de fácil compreensão porque reflete um sentimento que está presente na raiz de nossa formação enquanto sociedade. É claro que, em se tratando de cultura, eventuais vícios dessa ordem de acontecimentos não podem ser simplesmente erradicados por meio de imposição legal estrita. É fenômeno que não se decreta, apenas se induz historicamente na proporção dos valores sociais prevalecentes e não midiatizados. Seria o mesmo que retirar dos sistemas fundamentalistas islâmicos, por exemplo, a pena de morte por decapitação em face de ultraje ao Alcorão, seu livro sagrado. Ou como deixar de considerar uma abjeção compatível com os cenários mais odiosos e dignos de penalidade igualmente capital o adultério em outras tantas sociedades ainda não excepcionalmente incluídas no regime clássico que decorre da consciência humanitária e do advento do sistema de liberdades fundamentais. Padrões de comportamento arraigados socialmente não são jamais objeto de controle formal, porque o Direito que aí prevalece é o costumeiro.

Pensando assim, não pode haver justificativa ao azáfama que se descreve de toda uma movimentação midiática no sentido de opor ao Poder Judiciário — e, por algum tempo, somente a este Poder! — a restrição ao recurso proveniente do costume de que seus membros venham a indicar parentes até o terceiro grau na linha de seus serviços comissionados ou de estreita confiança pública. Efetivamente, não se deve chegar ao ponto de também fazer confusão entre confiança doméstica e confiança pública. Este é, entretanto, um outro capítulo dessa história que comporta uma digressão a respeito, mas não aqui.

Vale ao intento deste escrito suscitar a reflexão coletiva segundo a qual o nepotismo pode, sim, ser tomado como um desvalor social e uma expressão de comprometimento ético. No entanto, tratando-se de um costume entre nós histórico e que data do próprio descobrimento, não se teria como erradicá-lo de modo seletivo e pronto mediante afetação ao princípio isonômico, constitucionalmente agasalhado pela Ordem Jurídica e que não se compraz de igual sorte a todos os segmentos do próprio Estado ao qual se diz proteger em se tendo combatido até então o expediente no âmbito exclusivo do Poder Judiciário bem como por reduzir determinado grupo de pessoas (os parentes na linha de vedação) a algum tipo de cidadania mitigada, como se o parentesco fosse capaz, por si só, de retirar de uns e de outros, suas faculdades humanas e a sua própria compostura ética (senso de responsabilidade).

O primeiro desses problemas, bem ou mal, foi resolvido com o advento da Súmula Vinculante 13, do Supremo Tribunal Federal, norma de etiologia judiciária que passou a ocupar um espaço tradicionalmente reservado ao Congresso Nacional, até aqui silente quanto ao trato jurídico da matéria, muito embora se tenha debruçado em debatê-la pelo menos desde há mais de dez anos (PEC 334/1996).

Resta a segunda hipótese desse problema complexo. Como considerar — com apreço ao conjunto dos valores preconizados pela própria Constituição Federal — a segmentação da cidadania em face das relações parentais junto ao serviço público sem ferir a dignidade pessoal e o potencial humano, igualmente objeto de proteção jurídica? Ora, o vício da generalização é sempre eticamente mais grave do que o risco que a generalização intenta evitar. Comporta, então, encontrar uma solução, digamos aristotélica, virtuosa, que não se preste a violar os princípios regentes da Administração Pública e, ao mesmo tempo, tampouco a malbaratar a dignidade humana: In medio stat virtus.

Com efeito, se se quiser de verdade eliminar da cena institucional brasileira a prática do nepotismo só há duas alternativas igualmente esclarecidas e potencialmente eficazes a seguir: a primeira delas diz respeito à eliminação, na estrutura funcional do Estado, em todos os seus segmentos e hierarquias, da figura jurídica do “cargo comissionado” ou “de confiança”; a outra alternativa diz com o princípio constitucionalmente ativo da razoabilidade, pelo qual se reclama que a maior gravidade se situa no plano dos abusos, motivo pelo qual comporta disciplinar a possibilidade dessa prática para que dela não se venha abusar sob alegação de lacuna ou obscuridade do próprio sistema jurídico.


Convém, portanto, definir rigorosamente o conceito de nepotismo como objeto de proibição e o seu alcance institucional sem risco de violação a direitos fundamentais da própria cidadania, a exemplo da criação de uma categoria inferior de cidadãos baseada, preconceituosamente, na simples relação parental e até mesmo conjugal dos personagens envolvidos nesses quadros. Afinal, ninguém pode ser tomado como culpado, e até mesmo sujeito à incidência de culpabilidade, pelo fato dessas relações pessoais, consangüíneas ou afins. No território das relações civilizadas, não cabe estigmatizar ou discriminar quem quer que seja. Os tempos são de inclusão e não de exclusão. Isso, porém, não significa de modo algum falta de controle, regulamentação e limites.

Depois de décadas de pesquisa em torno do assunto, concluí que não se pode evitar a defraudação quando o intento seja, a fundo, perverter a convivência social. Se hoje se fala em combater o refinamento do assim denominado “nepotismo cruzado”, mais tarde se terá de enfrentar um suposto “nepotismo triangular” ou a troca de cargos entre instâncias de Poderes diversos, alguns até então não incluídos no objeto geral de resistência (Legislativo e Executivo), conforme acentuado.

Mesmo agora em que o STF decidiu por conferir elastério à vedação para valer em todos os segmentos da estrutura do Estado brasileiro, sucede que não será jamais possível evitar o fenômeno, porque ele pode ser invariavelmente travestido. Exemplo disso é a possibilidade de “troca” com a iniciativa privada. O parente do agente público vai trabalhar em alguma empresa do conhecimento daquele que ocupará o cargo comissionado no serviço público e o quadro continuará, portanto, rigorosamente inalterado. O salário daquele pode, inclusive, ser bancado por este. Nesse caso, quem haverá de regular também esse espaço afeto à autonomia da vontade? Quais os mecanismos de resistência contra uma tal forma de nepotismo disfarçado?

Convenhamos, proibir pura e simplesmente o assim denominado nepotismo é esforço inglório. Seria um desvario de moralidade duvidosa, ante o preconceito que revela, fazer a norma alcançar tais hipóteses abertas pela sua própria natureza. Enfim, o problema da troca de cargos comissionados e de seus benefícios entre parentes de autoridades envolvidas ou de seu círculo de conhecimentos sempre acontecerá e não há lei que possa impedir essa prática, conforme descrito. Cumpre, outrossim, mitigá-la de modo a que possa sofrer efetivo controle social, político e jurídico. Pois, pior do que o estado de anomia é o excesso de regulação. Bem por isso, Constituições enxutas como a dos Estados Unidos da América do Norte são tão longevas e obedecidas pelo corpo de seus destinatários, tanto do setor público como do setor privado.

Em O Princípio da Razoabilidade e a Questão Judicial (Fabris, 2004, Porto Alegre), descrevi também como será possível pensar em uma hipótese já bem acalentada no inconsciente de muitos do que se pode denominar como “nepotismo à distância”, ou intergeracional, pelo qual um prócer do presente prepara o terreno institucional em que atua, geralmente com apoio em estratégias e práticas bem conhecidas em nosso meio, para as suas descendências, precisamente como se preordenavam os acontecimentos nas Capitanias Hereditárias sem risco de censura pública presente para as eventuais atuações socavadas e sibilinas do passado.

O alcance desses esforços, inclusive no âmbito dos mandatos eletivos, também deve constar dessa pauta de proibições, mas até aqui essa prática não tem sensibilizado a Nação. Essa omissão parece paradoxal porque a prática atua sofisticadamente nos elementos constitutivos da Administração Pública ao ponto de segmentá-la em lotes hereditários. Formalmente, os princípios da impessoalidade e da moralidade no setor público estariam, também nesses cenários, igualmente violados. Afinal, herdar a carga resultante dos nomes dos titulares do serviço público e continuar a exercê-lo intergeracionalmente, ainda que nele se ingresse por concurso ou eleição (mais facilmente superáveis do que aos comuns dos mortais), é como traduzir o seu sistema em um “fundo de comércio”.

Desse modo, o intenso debate que se trava nacionalmente em torno do combate ao nepotismo no Poder Judiciário e nos outros Poderes da República, agravado por força de emblemáticas decisões do Conselho Nacional de Justiça (para o âmbito do Poder Judiciário: Resolução 07) e do Supremo Tribunal Federal (para todo o Poder Público: Súmula Vinculante 13) no mesmo sentido, assim pela forma como na essência de seus conteúdos, não deve causar espécie ao cidadão razoavelmente esclarecido.

Antes traduz um esforço de contribuição para a solução dos problemas relacionados com a questão do nepotismo, tão ou mais midiática quanto resulte da desconstrução de situações particulares, antes de significar a solução essencial e definitiva de um problema de interesse público cujo quadro se descreve como recorrente na história política do Brasil.


Sobre isso, no plano dos serviços judiciários da União a vedação data de 1996 (artigo 10, Lei 9.421/1996, posteriormente revogada pela Lei 11.416/2006) e, apesar disso, parentes continuaram nos cargos comissionados em que já se encontravam sob o especioso argumento de “direito adquirido”, gerando-se daí uma grave distorção na Administração Pública, entre servidores prestigiados por essa prerrogativa e outros não. No Supremo, há uma clássica vedação à prática do nepotismo a partir do seu Regimento Interno (artigo 355, parágrafo 7º).

Se algum parente de Ministro da Suprema Corte, outrossim, haja em algum momento do passado atuado em cargo comissionado mesmo fora de sua estrutura funcional, certamente não se estaria a violar a vedação específica, mas, sim, o espírito que ensejara a inscrição da norma regimental proibitiva do expediente que agora se tornou radical. Com a expansão universal do vínculo jurídico, ditado por força de Súmula Vinculante, agora uma tal hipótese resultaria em violação formal e expressa do comando aludido.

Diante dessas circunstâncias, reveladoras das linhas tênues nas quais vêm transitando os Poderes Políticos da República, agravadas pela dianteira histórica assumida pelo Supremo Tribunal Federal em esgrimir a disciplina de uma matéria ainda sujeita à atuação constituinte derivada ou mesmo legislativa, realizando, pois, uma espécie de política pública supletiva, cumpre ao Congresso Nacional dar cobro à situação mediante a regulamentação da matéria, conferindo seguimento à já tardinheira PEC 334/1996.

Observa-se, nada obstante, que a questão tem gerado embates ideológicos muito incisivos que não se confundem com a moldura ética que deveriam revelar e, bem por isso, acabam camuflando emulações de todo tipo, inclusive pessoais, que nada têm de republicanas.

Sem nenhum preconceito ou jacobinismo de ocasião, a melhor solução, ao que parece, para a situação desses eventuais quadros de nepotismo entre nós, é, exatamente, estabelecer de vez o preceito proibitivo específico, nos termos da Constituição Federal, e regulamentar, de outra feita, uma parcimoniosa liberação para que a prática, quando for julgada necessária (motivo de confiança, competência pessoal e indisponibilidade demonstrada de quadros, sujeição disciplinar terceirizada em relação à autoridade nomeante, dentre outras condições), seja possível, naturalmente dentro de limites rígidos, excepcionalíssimos e, portanto, socialmente aceitáveis (razoabilidade).

Do ponto de vista antropológico, a tragédia moral que acerca o tema nepotismo no serviço público brasileiro é, sem dúvida, o seu abuso. Abuso que, aliás, não sucede, ordinariamente, em países melhor desenvolvidos — social e politicamente — e em que tampouco se conhece uma proibição constitucional desse tipo: em nosso caso, porém, a questão traduz um varejo capaz de mobilizar as mais elevadas instâncias do Poder Político e, bem por isso, reclamar urgente disciplinamento constitucional específico.

A proibição, no entanto, é em si mesma um prosaísmo que reflete o estágio de nosso desenvolvimento social em que soluções éticas fincadas no sentimento jurídico da cidadania carecem de expressão normativa especial para ser posta em prática e tornada eficaz, ante o propósito de se evitar justamente o abuso como resultado dos desvios de conduta funcional. E mais: de fazer animar a mais alta Corte de Justiça do país à empresa de fixar regras de conteúdo geral fora dos casos de Mandado de Injunção ou de controle concentrado da inconstitucionalidade sem ausculta do próprio Poder Legislativo, muito embora a Emenda Constitucional 45/2004 lhe tenha conferido essa excepcional prerrogativa (editar Súmulas Vinculantes), nos termos como ali ficou estabelecido.

Nesse contexto, e sem tomar em consideração o mérito da dicção jurídica em exame, ao invés de se propor uma normatização realmente inquestionável, inteiramente legítima, se anda a palmilhar, na prática, a tutela da moralidade pública no lugar da Instituição a que compete constitucionalmente realçá-la como Ordenamento Jurídico originário.

Por enquanto, a Carta apenas descreve a moralidade como categoria em aberto (artigo 37). Em nenhum instante define como objeto de proibição a prática do nepotismo e menos ainda a considera como um modelo intrinsecamente imoral. É que essa prática, embora até bem pouco bastante expandida, não pode ser tratada como generalidade porque sua possibilidade empírica é mínima em face da estrutura do Estado por cuja razão ela acaba existindo como fenômeno social.

Desse modo, seu trato deve sempre merecer análise pontual, caso a caso, do mesmo modo como as contas públicas são invariavelmente sujeitas a controle necessário, independentemente de quem sejam os seus responsáveis. Esse regime estaria a garantir o exame das impessoalidades tão bem estatuídas pela Constituição, porque demandaria a aplicação do agente com o objeto do seu compromisso funcional, nada obstante a forma do acesso ao serviço público, e não unicamente seus nomes e suas relações pessoais pelos quais restarão inapelavelmente estigmatizados.

De uma sociedade humana e igualitária (artigo 5º, da Carta) não se pode esperar exclusão e acepção de pessoas, ainda quando se reconheça a ocorrência de um histórico de abuso de direitos.

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