Maria da Penha

É o CPC que deve ser aplicado em casos de violência doméstica

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29 de setembro de 2008, 14h44

Há três meses tenho defendido, inclusive publicamente, a inconstitucionalidade da lei de violência doméstica (Lei 11.340/07). Não é surpresa para mim que a questão que suscitei (e não sou o pioneiro), qual seja, a da ausência de uma autorização específica para tratamento diferenciado entre homens e mulheres enquanto sujeitos processuais ou vítimas de crimes tendo em linha de conta exclusivamente os sexo, ainda não tenha recebido um argumento sequer contrário que demonstrasse onde está, na Constituição, esta autorização, cuja necessidade se faz presente diante da reserva constitucional legislativa exclusiva e expressa, criada pelo artigo 5º, inciso I, da CF/88. Tal questão irei retomar mais adiante.

O tema que irei tratar como enfoque principal desta exposição está na (até agora), incorreta aplicação do CPC aos procedimentos de medidas protetivas. Tal práxis está conduzindo a uma inconstitucionalidade procedimental e tem profundas imbricações com a possibilidade de constitucionalização hermenêutica da lei, que poderá ser obtida através de uma interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto e ampliativa, cuja operacionalização carece da correta aplicação do CPC a esta espécie de tutela.

Pretendo ao final fazer o leitor ver a necessidade de aplicação do CPC a estes procedimentos como um imperativo inarredável, o que, me parece, não está ocorrendo. Explicarei o porquê.

Luzes sobre a inconstitucionalidade

A temática já foi objeto de outro trabalho de minha autoria[1]. Será retomada aqui de forma breve. Na verdade, a celeuma criada em torno de aproximadamente três dezenas de decisões[2] de extinção de medidas protetivas que tomei no mês de julho de 2008, quando à frente da 2ª Vara Criminal de Erechim-RS, mais se devem ao desconhecimento da esmagadora maioria acerca da questão central das decisões e da atividade do juiz.

Pessoas leigas e, infelizmente, algumas outras com formação jurídica, teceram críticas ao posicionamento sem sequer conhecer o fundamento da decisão, chegando-se ao absurdo de se afirmar que a “lei prescinde da atividade de interpretação do juiz para se ver aplicada”. Tal assertiva é verdadeira ignomínia jurídica, uma vez que é fato notório e conhecimento basilar, aprendido já ao início da cátedra jurídica (ao menos deveria ser), que a atividade de aplicação do Direito é, antes de tudo, uma atividade de interpretação, não só do Juiz, mas de todos os operadores jurídicos. Direito é linguagem, e linguagem é interpretação, pois a linguagem freqüentemente não se apresenta com significados inequívocos ou impassíveis de cognição diferenciada conforme o sujeito. Ao contrário.

Sob o prisma hermenêutico, a clareza lapidar com que o artigo 5º, inciso I, estabelece a igualdade como regra e a necessidade de que a exceção a esta regra seja estabelecida de forma expressa pelo próprio texto constitucional, torna todos os argumentos até agora elencados pela constitucionalidade ineficazes.

É princípio comezinho de hermenêutica que estabelecida uma regra, mormente em preceptivo de tal envergadura (primeiro inciso do mais importante artigo da Constituição), tratando de direitos e garantias individuais, somente através de exceção expressa se pode criar diferenciação.


A tanto concluir bastaria só a topologia da regra. Ocorre, no entanto, que o inciso foi mais longe, estabelecendo de forma clara e expressa uma reserva legislativa constitucional exclusiva. Só as diferenças que estão estabelecidas no texto original da Constituição podem ser lícitas, pois diz ele que a igualdade será regulada “nos termos desta Constituição.”

Isso se explica porque a mesma topologia acima ressaltada também tem por corolário inserir o artigo 5º, inciso I, dentre as cláusulas pétreas, ex artigo 60, parágrafo 4º, da CF/88.

Por conseguinte, emendas constitucionais decorrentes do poder constituinte derivado não podem alterar, de forma direta ou indireta, o já estabelecido em cláusulas pétreas. Por outras palavras e simplificando, as diferenças que havia no texto constitucional originário, porque estabelecidas pelo poder constituinte originário (que é ilimitado), e porque ressalvadas no inciso I do artigo 5º da CF/88 são constitucionais.

As que decorram diretamente de emenda ou de norma que ingressa hoje em nosso ordenamento com status de norma constitucional, por força da Emenda 45, ou seja, de forma indireta, não podem violar o conteúdo substancial do artigo 5º, da CF.

É de uma clareza palmar que qualquer norma internacional que ingresse em nosso ordenamento com status de norma constitucional por força da Emenda 45, somente poderá criar ou ampliar direitos, jamais suprimi-los, e sempre observando o quanto já consta do artigo 5º. Pensar-se de forma diversa, implicaria chancelar uma inconstitucionalidade indireta.[3] Cai por terra um dos argumentos simplórios que tem sido invocado para asseverar autorizado o legislador a estabelecer as diferenciações criadas pela lei de violência doméstica com arrimo em tratados ou convenções internacionais. Estas normas se limitam pelas cláusulas pétreas.

Outro argumento, data venia, destituído de validade lógico-científica reside na invocação do paradigma dos idosos e crianças e adolescentes. É invalido porque tenta parificar situações absolutamente distintas. A uma porque em relação aos idosos e crianças e adolescentes, ao contrário do que ocorre em relação aos direitos de homens e mulheres, não há dispositivo constitucional estabelecendo reserva legislativa constitucional exclusiva (não há um “nos termos desta Constituição”). Tratamento diferenciado em relação a eles por lei infraconstitucional não estaria violando norma constitucional, ao menos não de forma direta.

Indiretamente, lei que cria tratamento diferenciado para estas categorias sociais violaria somente o artigo 5º, caput, da CF/88, que não prevê expressamente reserva constitucional legislativa. Mas tal violação não ocorre, porque há previsão, pelo poder constituinte originário, de tratamento diferenciado (art. 226, da CF/88), de forma específica para estas categorias, o que se constitui na segunda razão para afastar este paradigma de comparação.[4]

Há um último argumento que tem sido invocado em favor da presença de uma autorização tácita de tratamento diferenciado entre homens e mulheres, e este é de longe o mais fraco. Tal argumento reside em se invocar a proteção à família, estatuída no artigo 226, da CF/88, com o fito de justificar uma lei de proteção à mulher. Digo que é o mais fraco argumento porque me parece evidente que falar em família implica falar em grupos compostos indistintamente por homens e mulheres, ou seja, não é o sexo de uma pessoa fator determinante para que possa ela fazer parte ou não de uma família.


Poderá se afirmar que tal dispositivo deveria ser interpretado de acordo com a realidade, e neste caso a mulher é comumente, mais fraca fisicamente que o homem, carecendo de proteção específica. Tal assertiva não passa de uma falácia. Superioridade física é uma circunstância sujeita à conjunturas de cada caso específico[5], e pode ser relativizada pelo emprego de armas, por exemplo. Generalidade e abstratividade são características necessárias da lei, que não pode se render a casuísmos, fazendo-os regra.

Se a Constituição estabelece uma necessária proteção à família, a lei deveria ser de repressão à violência doméstica, seja ela perpetrada por quem for, seja a vítima homem ou mulher, pois o que há de especial e que justifica ação diferenciada da tutela estatal é a situação de as pessoas conviverem juntas, em um grupo familiar, não o sexo de quem é vítima.

Hipótese hermenêutica de constitucionalização

Como não existe autorização constitucional para o estabelecimento de diferenciação entre homens e mulheres enquanto sujeitos processuais e vítimas potenciais ou efetivas de crimes (o que deveria ocorrer de forma clara e expressa, recordo, na própria Constituição), há inconstitucionalidade da lei, que é fundamento legal da causa de pedir das medidas protetivas.

Insta aqui referir e lembrar que as medidas protetivas são um dos desdobramentos decorrentes da aplicação da lei, materializando-se em procedimentos de natureza cível. Adiante, versaremos acerca de sua real natureza. Por ora, importa saber que, sendo procedimentos cíveis e havendo inconstitucionalidade do fundamento legal, é viável o indeferimento da liminar e da própria inicial, sob este argumento.

Há, no entanto, uma hipótese de constitucionalização hermenêutica da lei, o que pode ser realizado através de uma interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto e ampliativa.

A premissa de tal processo hermenêutico é bastante singela. Se a inconstitucionalidade (evidente) tem por fundamento o estabelecimento de diferenciado tratamento (não autorizado constitucionalmente) entre homens e mulheres, uma interpretação que afaste tal diferenciação afastaria igualmente a inconstitucionalidade. Para tanto, basta considerar a lei como diploma indistintamente invocável por homens e mulheres, o que faria com que a lei estivesse em consonância com o artigo 5º, inciso I, da CF/88. Ao menos este argumento de inconstitucionalidade estaria afastado.

Não adotei esta linha de raciocínio e interpretação porque alguma experiência na área já é o suficiente para vermos que não só de inconstitucionalidade padece a lei. Há questões funcionais e de ordem filosófico-jurídica.

Funcionalmente, a questão nodal é que a lei, na prática, é absolutamente utópica, na medida em que considera exemplos de outros países, com realidades sociais e com aparatos estatais absolutamente diferentes. Veja-se, ad exemplum, o caso das medidas de afastamento do acusado ofensor do lar ou da vítima e parentes. Nos EUA, que aprecem ter sido a fonte de inspiração da adoção de tal medida, a fiscalização da execução da medida pelo acusado ou réu é feita, em alguns Estados, através de monitoramento eletrônico, com coleiras ou tornozeleiras emissoras de sinais de rádio.


No Brasil, infelizmente, diante da carência de recursos e efetivos policiais, o deferimento de uma medida com este teor acaba por se transformar em nada mais do que mera exortação inócua. De fato, será viável deixar uma viatura policial fiscalizando a casa da afirmada vítima, ou um efetivo policial a segui-la o dia inteiro? Claro que não. Descumprida a medida pelo réu, tem a beneficiada de se valer de um chamado policial e neste caso tenha ela ou não um mandado de afastamento, não fará diferença. SE inexistisse a ordem igualmente teria de chamar a polícia.

Outro aspecto que parece ter sido amplamente negligenciado pelo legislador é a proporcionalidade. Os casos graves envolvendo violência doméstica são minoria. Ordinariamente, tomadas providências para aprazamento de audiência nas medidas protetivas, não raro (pelo contrário, ocorre no mais das vezes), o oficial de justiça encontra uma situação já pacificada e superada por pretensos vítima e agressor. No crime, a situação é ainda pior. Recente decisão do STJ implica em necessidade de continuidade da ação criminal mesmo com o dissenso da vítima. Neste caso, uma instrução e uma sentença alguns meses depois de ocorrido um fato de menor gravidade faz com que a atividade jurisdicional, antes de pacificar, reavive um incidente de há muito superado. Em outras hipóteses, se vê a vítima na situação de falsear a verdade para salvar o companheiro, quiçá se sujeitando a um procedimento criminal ela mesma.

Sob o prisma filosófico-jurídico, não me parece conveniente, em tempos onde há uma consolidação de direitos fundamentais, a presença de tratamentos desiguais estabelecidos a partir da criação de privilégios para classes ou segmentos sociais. Tais privilégios, partindo de generalizações, nos demonstra a história, serviram de semente para muitos dos mais graves atos de arbítrio e tirania. As mulheres, como cidadãs que representa mais da metade da força de trabalho do País e são, hoje, chefes de muitos lares, seja qual fora camada social considerada, não carecem de um tutor estatal a presumi-las fracas. Elas têm direito, isso sim, ao reconhecimento de sua condição de cidadãs plenamente capazes e absolutamente iguais aos homens.

Medida protetiva e CPC

Adotada que seja a solução pela nulidade ipso iure da lei, o feito de medida protetiva (cível) será extinto, esteja em tramitação ou seja a inicial indeferida de plano.

Ao revés, considerando-se constitucional a lei de violência doméstica ou se considerando inconstitucional o diploma, mas adotada a interpretação conforme a constituição e extensiva, que acima sugeri, surge a questão do processamento da medida após a concessão da liminar e audiência preliminar de conciliação.

Aqui há uma generalizada práxis que tem produzido danosos efeitos, qual seja, não se está observando a necessidade de um processamento ulterior dos feitos desta natureza. Deveras, o que se tem observado é que deferida uma dentre as medidas, de forma liminar, não se está assegurando ao réu, posteriormente, o direito de ampla defesa e contraditório, havendo, na esmagadora maioria dos casos, exaurimento da medida pelo decurso de tempo ou mesmo por sua natureza, ou, ainda, por conciliação. No último caso, certamente que o escopo magno do processo, que é a pacificação social, foi atingido. Alliter nas outras hipóteses.

Emblemático sintoma desta ausência de regular processamento conforme os ditames do CPC, se materializa na ínfima quantidade de recursos que são interpostos no caso de medidas protetivas, diversamente do que ocorre nos processos criminais correlatos, onde o contraditório é uma imposição da aplicação do CPP.[6]


O motivo da quase ausência de recursos é o fato de o réu da medida protetiva não ser citado, não apresentar defesa, não haver instrução e uma sentença apreciando o mérito da lide estabelecida.

Ora, se a própria lei de violência domestica ressalva a aplicação do CPC ao processamento das medidas protetivas, e sendo o contraditório e a ampla defesa corolários da aplicação do artigo 5º, incisos LIV e LV, da CF/88, cuja implementação, dentro do devido processo legal, se faz, sobretudo, com a possibilidade de resposta e produção probatória do réu, motivo plausível algum há para se negar o pleno cabimento de uma citação e uma instrução no caso das medidas protivas, como consectário lógico da seqüência de atos após o deferimento, ou não da medida liminar, mormente tendo em conta a espécie de algumas medidas, como v.g, a fixação de alimentos, que podem se tornar irreversíveis e ostentam natureza satisfativa, empiricamente falando, no plano do direito material.

Neste passo é importante descortinar a natureza processual das medidas protetivas. É induvidoso que a configuração que lhes conferiu a lei de violência doméstica coloca-as entre processos de natureza cautelar. Apresentam, elas, todavia, uma singularidade. É que inexiste menção de um processo a cuja eficácia venham resguardar ou de que sejam medidas preparatórias.

A cautelaridade advém, de forma irretorquível, do fato estarem alicerçadas sobre cognição sumária. A rigor o que fez a lei foi permitir que um procedimento cautelar seja ajuizado sem patrocínio de causídico, uma vez que, feita a solicitação perante a autoridade policial pela afirmada vítima, o expediente é encaminhado diretamente ao juiz. Estabelecida a apreciação dos pedidos com a prova que instrui o expediente[7], tem-se que a análise se faz com cognição sumária.

A singularidade da ausência de uma ação, ainda que em caráter de mera expectativa, a que venham instrumentalizar ou cuja eficácia intentem assegurar, lhes imprime o caráter de uma inovação no direito processual civil brasileiro, pois, a partir desta conformação, constituem exemplo de direito material de cautela. De fato, é tutela cautelar (não antecipatória), que resguarda diretamente um direito material, não a eficácia de um processo, como soe ocorrer com a doutrina tradicional das medidas cautelares.

A partir desta premissa, parece-me axiomático que tem de ser aplicável à medidas protetivas a disciplina do processo cautelar após a fase inicial e específica prevista na lei de violência domestica. Em termos práticos, deferida ou não a medida liminarmente, deve ser o réu citado para responder, na forma do artigo 802, do CPC.[8]

À citação, deve seguir-se, contestação, e, se for o caso, instrução, sendo o feito sentenciado, ao fim. Tal concepção reflete a imperativa necessidade de que seja resguardado o direito de defesa e de contraditório. A presença de um direito material de cautela, cuja efetivação através do procedimento pode tomar cunho de satisfatividade e irreversibilidade (v.g alimentos, afastamento do lar e do convívio com os filhos), traz como conseqüência necessidade de um procedimento que resguarde a possibilidade de manifestação do réu, prejudicado ou atingido pela medida. Sintetizando, provimentos que podem tornar-se jurídica ou faticamente irreversíveis não podem ser deferidos sem que em, alguma fase do processo, ainda que posterior, possa o atingido manifestar-se.


Vou ainda mais longe. Adotado o entendimento da inconstitucionalidade da lei, e, repiso, não me parece possível conclusão diversa sem ofensa ao que se pode razoavelmente extrair do artigo 5º, inciso I, da CF/88, e adotada a interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto e extensiva, que pode constitucionalizar a lei, permitindo igualdade dos sujeitos à luz do diploma ordinária, é possível alvitrar-se, inclusive, a possibilidade de reconvenção na medida protetiva por parte do réu.

Outro aspecto que não tem sido objeto da atenção que merece pelos operadores jurídicos é a observância, quanto às medidas protetivas, do sistema recursal do CPC.

Da decisão que defere ou indefere medida protetiva liminarmente, o que ocorre após o encaminhamento do expediente pela autoridade policial, cabe agravo de instrumento, interposto diretamente ao Tribunal respectivo.

Por outro lado, da decisão extinguindo a medida protetiva, que é uma sentença, cabe apelação. A interposição de recurso na forma do CPP (cabível em relação a um processo criminal que tenha se originado do mesmo fato), sem as razões ou invocando norma processual penal caracteriza hipótese clássica de erro grosseiro, o que afasta, segundo a melhor doutrina e jurisprudência, a fungibilidade.

Em síntese, o fato der serem as medidas processadas em varas criminais não afasta a aplicação do CPC.

Sem que seja assegurada uma citação e uma defesa, estamos, em verdade, incorrendo em uma inconstitucionalidade procedimental, que fere de morte o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório.

Conclusões

Cidadania não se milita ao voto. É direito e dever do cidadão participar da vida legislativa da nação. Para tanto é mister que a lei seja levada ao conhecimento da população e que se instaure o debate.

Todavia, lamentavelmente, não estamos acostumados ao debate científico. A ele não equivale a vociferação de vitupérios ou a manifestação de opiniões pessoas tisnadas de conteúdo sentimental. Debate científico se faz com argumentos escudados em premissas válidas e em conhecimento de causa.

No caso da questão da constitucionalidade da lei de violência doméstica ainda não se instaurou um debate científico. Há, inclusive, um generalizado desconhecimento, por parte de leigos, e mesmo de pessoas formadas nas letras jurídicas, acerca da funcionalidade efetiva da citada lei na prática. Até agora não vi nenhuma estatística que tenha efetuado o levantamento de quantos casos efetivamente se revelaram, após judicialização, justificados, ou de quantas vezes a lei foi utilizada com outra finalidade, para cortar caminho processual ou como mecanismo de pressão, através de alegações inverídicas. Limitam-se a mencionar números de medidas[9] solicitadas ou, no máximo, a mencionar o número de ingressos de pedidos em juízo.[10]Onde estão os dados do resultado concreto destes feitos?

Pessoas que falam sem conhecimento de causa acabam por extrair conclusões equivocadas e as tomam como certas. Concito todos a que busquem informações com juízes, oficiais de justiça e servidores cartorários, a partir do que poderão aquilatar precisamente como a lei está sendo aplicada e quais os resultados práticos que produz. Sem esta premissa, qual seja, conhecimento de causa, não há como argumentar cientificamente de forma válida.


Este conhecimento da realidade forense é que me levou a não adotar uma interpretação constitucionalizante da lei a partir da parificação de homens e mulheres frente ao diploma. Tal constitucionalização é possível através da utilização da técnica de interpretação conforme a Constituição, sem redução de texto e ampliativa ou extensiva.[11]

Para aqueles que considerem a lei constitucional, ou que, apesar de a considerarem inconstitucional, aplicarem a interpretação supra, dando processamento ao feito, é imperativo considerar que, por implicação da incidência do artigo 5º, incisos LIV e LV, e por força de ressalva da própria lei de violência doméstica, tem de ser aplicado o CPC, de forma que, deferida ou não a liminar, tem o réu direito a uma citação, contestação, instrução e sentença, tenhamos em mira a aplicação do procedimento cautelar ou ordinário do processo de conhecimento.

Se adotada a interpretação conforme a Constituição, com muito mais razão deve ser o CPC aplicado no processamento posterior da medida protetiva, com possibilidade, inclusive, de reconvenção e de aplicação, ao final, de pena de litigância de má-fé, se as alegações do autor ou autora solicitante da medida forem notoriamente inverídicas.

Isso hoje não está acontecendo. As medidas se exaurem ou são extintas sem presença de contraditório e ampla defesa, o que bem se pode ver pelo insignificante número de recursos interpostos em relação a estes procedimentos.

Está ocorrendo uma omissão no processamento, que tem por corolário uma inconstitucionalidade procedimental, violando o devido processo legal, e tolhendo o direito de ampla defesa e contraditório dos réus.

Está na hora de isso mudar. Sem respeito integral à Constituição, que tem no juiz o seu mais devotado defensor, pois que, além de um compromisso, esta tarefa é inerente a sua função, e talvez seja a mais importante que realiza, jamais teremos uma cidadania efetiva e uma justiça concreta.


[1] “Compreendendo a Inconstitucionalidade da Lei de Violência Doméstica”, disponível na internet.

[2] Tais decisões foram objeto de recursos interpostos de forma equivocada, uma vez que escudados no CPP e sem as respectivas razões, o que motivou o seu não recebimento. Daí a importância de se conhecer a correta aplicação do CPC, pois em relação a todas as decisões que proferi na comarca de Erechim-RS, extinguindo os procedimentos de medida protetiva ao argumento da inconstitucionalidade, houve trânsito em julgado, tendo, o que é de desconhecimento de muita gente, tais decisões se tornado definitivas.

[3] Simplificando ao extremo algo que não é tão simples no escopo de fazer a questão intelegível a todos, mesmo porque o presente texto pode ser objeto de leitura de leigos e estudantes, o poder reformador e derivado incide em inconstitucionalidade indireta quando sua atividade, ordinariamente materializada em emendas, não ofende diretamente nenhuma disposição constitucional, mas abre espaço para que isso seja feito indiretamente. Seria o caso de uma emenda que alterasse o próprio artigo 60º, parágrafo 4º, da CF/88, que estabelece o que uma emenda não pode alterar. Se uma norma ingressa por força de emenda constitucional como norma constitucional em nosso ordenamento (v.g um tratado ou convenção), tal se dá por força e nos estritos lindes do poder constituinte derivado, que é condicionado e limitado pelo conteúdo das cláusulas pétreas.


[4] Por outras palavras, existisse, no mesmo artigo 226, ou em outro, previsão de tratamento diferenciado entre homens e mulheres, tollitur quaestio, a constitucionalidade da lei de violência domestica seria inquestionável. Seria o caso, por exemplo, de o poder constituinte originário, após estabelecer a reserva do artigo 5º, inciso I, ter produzido no texto da Constituição texto como seguinte teor (…) Lei especial disporá sobre a proteção à mulher em relação aos casos de violência doméstica. Mas não o fez e para que faça, somente com nova Constituição, pois não pode fazê-lo o poder derivado, muito menos através de lei ordinária.

[5] Aliás, considerada a premissa da menor capacidade física, poderíamos chegar ao absurdo de uma lei de proteção aos homens de pequena compleição física. Condição da vítima já é sopesada na dosimetria da pena e pode ser considerada como fator relevante em uma causa de pedir cível sem necessidade de uma lei que incorra no equívoco de tornar casuísmo eventualmente presente em regra absoluta.

[6] Afastado o processamento do crime pelo JECrim, ainda mais assegurada está a ampla defesa, no procedimento ordinário do CPP.

[7] Quase sempre a medida protetiva não vem acompanhada com prova alguma, estando estribada exclusivamente na palavra da auto-afirmada vítima. A experiência forense nos demonstra o quanto é temerário o deferimento de medidas nestas condições, pois o quadro fático raramente é aquele que ali vem espelhado, estando a lei a servir para um enorme número de abusos, onde a medida protetiva é utilizada como verdadeiro sucedâneo da ação judicial adequada, na qual seria resguardado o devido processo legal com ampla defesa e contraditório, o que acaba não acontecendo nas medidas protetivas. Muitas vezes sequer há procedimento criminal. Parece-me que melhores resultados sociais teriam sido obtidos no campo da violência domestica com a estruturação das Defensorias Públicas e com o aparelhamento de órgãos para apoio e tratamento. De fato, ressalvada a condição do Poder Judiciário de ator central da prestação jurisdicional, pois que é quem presta a tutela jurisidcional, é hoje a Defensoria a instituição mais importante no sistema judiciário do País. Não obstante, as Defensorias nem de longe estão recebendo a atenção merecida. Deveriam a meu juízo, ter assegurados constitucionalmente independência funcional, administrativa e financeira. Já órgãos de apoio e tratamento da violência são quase inexistentes. A conciliação e o tratamento deveriam ser prioritários, até para que se preserve a família. Ademais, não são leis ou punições que irão resolver problemas familiares. As pessoas é que os resolvem. Muitos parecem desconsiderar esta verdade.

[8] Se, considerada a fase seguinte de processamento se concluir que são medidas de natureza antecipatória, a conclusão resta intacta, pois teria de haver processamento pelo rito ordinário.

[9] Recordo, mais uma vez, ad cautelam, que a medida protetiva não se confunde com o procedimento criminal, que pode ou não existir em relação ao mesmo fato.

[10] No Rio Grande do Sul, ingressaram neste ano, até o presente momento (setembro) 19.756 pedidos.

[11] Ver mais sobre o controle de constitucionalidade no meu “Introdução ao Controle de Constitucionalidade”, Revista Forense, nº 389, jan-fev 20007, p. 113-145, também disponível na internet.

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