Caso os responsáveis pelos crimes da ditadura militar não sejam punidos pela Justiça brasileira, as entidades de defesa dos direitos humanos devem recorrer aos tribunais internacionais. Esse é o entendimento de Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos da PUC-SP. Para ela, o Estado brasileiro é responsável por punir esses crimes, pois é signatário de tratados internacionais que caracterizam a tortura como um crime lesa-humanidade. “Se o Estado não o fizer, deve-se apelar para o sistema jurídico internacional que tem conseguido influenciar processos semelhantes na Argentina, Uruguai e Chile.”
A anistia de acusados de crimes políticos foi tema de debate que aconteceu na quarta-feira (24/9) na Faculdade de Filosofia, Letras de Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Além de Flávia Piovesan, participaram o procurador do Ministério Público Federal Marlon Weichert e Edson Teles, professor da Uniban e autor de uma das ações declaratórias contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-diretor do DOI-CODI.
A professora Flávia Piovesan acredita que a tendência do Supremo Tribunal Federal é de não permitir a punição de acusados de crimes políticos cometidos durante a ditadura. Por isso que ela defende que grupos de defesa dos direitos humanos recorram aos tribunais internacionais, como o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda. Ela lembra que Argentina, Chile e Uruguai julgaram e condenaram militares após condenações dos militares por órgãos internacionais.
No último dia 11, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, votou contra um pedido de extradição dos governos da Argentina e Uruguai referente a um acusado de participar na Operação Condor. O ministro aplicou a presunção de morte em caso de desaparecimento, prevista na Lei de Anistia, o que caracteriza o crime de homicídio, e não de seqüestro, e, nesse caso, a punibilidade estaria extinta.
Marco Aurélio observou ainda, antecipando um entendimento jurídico, que “anistia é definitiva virada de página, perdão em sentido maior, desapego a paixões que nem sempre contribuem para o almejado avanço cultural. Anistia é ato abrangente de amor, sempre calcado na busca do convívio pacífico dos cidadãos”.
Os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia e Eros Grau seguiram o entendimento de Marco Aurélio. Ricardo Lewandowski discordou e declarou que não se trata de homicídio, mas de crime permanente. Cezar Peluso pediu vista por ter dúvidas em relação ao reconhecimento do crime de homicídio sem o corpo de delito.
Além desse caso envolvendo a Operação Condor, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, já declarou publicamente que acha que a discussão da punição dos crimes da ditadura deve ser encerrada sob a pena de provocar desestabilização política.
Anistiados punidos
Durante o seminário na USP, o procurador Marlon Weichert defendeu a punição dos torturadores, mas afirmou que, para isso, não é preciso mudar a Lei de Anistia de 1979. Para ele, a lei vigente não impede que se instaure processo, pois anistia apenas os crimes políticos e conexos, categoria que não incluiria tortura e seqüestro praticados por agentes do Estado. O procurador considera que esses delitos se encaixam na categoria de crimes contra a humanidade e são, portanto, imprescritíveis.
Os crimes lesa-humanidade foram caracterizados internacionalmente após os massacres dos povos armênio e judeu durante as Guerras Mundiais. Embora inicialmente atrelado à noção de genocídio, hoje está pacificado que o assassinato sistemático de pessoas também é crime contra a humanidade, afirma o procurador. Além disso, para ele, se a Lei de Anistia cobrisse esses crimes, ela configuraria auto-anistia, o que vai contra um dos princípios fundamentais do Direito.
O professor Edson Teles comparou a anistia brasileira com o que aconteceu no período pós-regime autoritário da África do Sul. A diferença, segundo o professor, é que no país africano a anistia não foi generalizada, mas esteve condicionada a um processo de confissão pública dos atos criminosos. Somente os atos confessados e os criminosos reconhecidos publicamente foram anistiados, gerando o que o professor nomeia de “narrativa da memória política”. No Brasil, foi privilegiado o segredo dos arquivos. Teles vincula essa atitude à atual tolerância para com os desrespeitos a direitos humanos no Brasil.
Em busca da democracia
O procurador Weichert justifica historicamente o objetivo de investigar e punir os crimes da ditadura citando o conceito de Justiça Transacional. “Trata-se de um termo muito comum na Justiça internacional, usado freqüentemente pela ONU, OEA e a Corte Européia de Direitos Humanos para descrever um tipo específico de justiça, que é aplicada na reconstrução de um Estado de Direito, em bases mais sólidas, após o fim de um regime autoritário”, afirma o procurador. Descreve ainda os cinco objetivos dessa justiça: buscar a verdade, punir os criminosos, reparar os prejudicados, conservar a memória das atrocidades cometidas e reformar os órgãos de segurança da nação.
No caso brasileiro, diz o procurador, cuidou-se apenas da reparação financeira às vítimas, “o que alguns mal-intencionados tacharam de dinheiro para calar a boca”.
Em resposta aos argumentos de que a anistia foi concedida de maneira bilateral e, portanto, não pode ser revogada de maneira unilateral, o procurador da República afirmou que não vê problema em apurar e eventualmente punir quem cometeu atos de terrorismo, caso venha a ser caracterizado também como crime contra a humanidade. Ressalva, porém, que “a maior parte desses acusados já foi punida durante o governo militar”.
O procurador criticou ainda o STF. “Não é papel dos ministros decidirem a pertinência ou não de discutir a anistia, pois não tem mandato eletivo. A função do STF nesse debate, importantíssima, diga-se de passagem, é de guiar o processo legal de acordo com as normas constitucionais.”
Os três palestrantes citaram estudos da cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota, que comparou países latino-americanos marcados por ditaduras no passado recente e demonstrou que as nações que puniram os crimes do período de exceção, hoje, têm mais sucesso em proteger os direitos humanos. Para Flávia Piovesan, o Brasil se recusa a julgar os crimes da ditadura e essa impunidade alimenta até hoje o uso da tortura como ferramenta nas delegacias.
Para a professora, a tortura praticada por agentes do Estado compromete o próprio contrato social entre povo e governo. “O monopólio da violência que a população concede ao Estado foi deturpado e usado contra ela de maneira indevida”, diz Flávia. “O Brasil assinou tratados internacionais proibindo a tortura e precisa prestar contas à comunidade internacional, pois, em última instância, a vítima da tortura é a própria humanidade.”