Crimes da ditadura

Crimes da ditadura podem ser julgados em tribunal internacional

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29 de setembro de 2008, 15h32

Caso os responsáveis pelos crimes da ditadura militar não sejam punidos pela Justiça brasileira, as entidades de defesa dos direitos humanos devem recorrer aos tribunais internacionais. Esse é o entendimento de Flávia Piovesan, professora de Direitos Humanos da PUC-SP. Para ela, o Estado brasileiro é responsável por punir esses crimes, pois é signatário de tratados internacionais que caracterizam a tortura como um crime lesa-humanidade. “Se o Estado não o fizer, deve-se apelar para o sistema jurídico internacional que tem conseguido influenciar processos semelhantes na Argentina, Uruguai e Chile.”

A anistia de acusados de crimes políticos foi tema de debate que aconteceu na quarta-feira (24/9) na Faculdade de Filosofia, Letras de Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Além de Flávia Piovesan, participaram o procurador do Ministério Público Federal Marlon Weichert e Edson Teles, professor da Uniban e autor de uma das ações declaratórias contra o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-diretor do DOI-CODI.

A professora Flávia Piovesan acredita que a tendência do Supremo Tribunal Federal é de não permitir a punição de acusados de crimes políticos cometidos durante a ditadura. Por isso que ela defende que grupos de defesa dos direitos humanos recorram aos tribunais internacionais, como o Tribunal Interamericano de Direitos Humanos e o Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda. Ela lembra que Argentina, Chile e Uruguai julgaram e condenaram militares após condenações dos militares por órgãos internacionais.

No último dia 11, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, votou contra um pedido de extradição dos governos da Argentina e Uruguai referente a um acusado de participar na Operação Condor. O ministro aplicou a presunção de morte em caso de desaparecimento, prevista na Lei de Anistia, o que caracteriza o crime de homicídio, e não de seqüestro, e, nesse caso, a punibilidade estaria extinta.

Marco Aurélio observou ainda, antecipando um entendimento jurídico, que “anistia é definitiva virada de página, perdão em sentido maior, desapego a paixões que nem sempre contribuem para o almejado avanço cultural. Anistia é ato abrangente de amor, sempre calcado na busca do convívio pacífico dos cidadãos”.

Os ministros Menezes Direito, Cármen Lúcia e Eros Grau seguiram o entendimento de Marco Aurélio. Ricardo Lewandowski discordou e declarou que não se trata de homicídio, mas de crime permanente. Cezar Peluso pediu vista por ter dúvidas em relação ao reconhecimento do crime de homicídio sem o corpo de delito.

Além desse caso envolvendo a Operação Condor, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, já declarou publicamente que acha que a discussão da punição dos crimes da ditadura deve ser encerrada sob a pena de provocar desestabilização política.

Anistiados punidos

Durante o seminário na USP, o procurador Marlon Weichert defendeu a punição dos torturadores, mas afirmou que, para isso, não é preciso mudar a Lei de Anistia de 1979. Para ele, a lei vigente não impede que se instaure processo, pois anistia apenas os crimes políticos e conexos, categoria que não incluiria tortura e seqüestro praticados por agentes do Estado. O procurador considera que esses delitos se encaixam na categoria de crimes contra a humanidade e são, portanto, imprescritíveis.

Os crimes lesa-humanidade foram caracterizados internacionalmente após os massacres dos povos armênio e judeu durante as Guerras Mundiais. Embora inicialmente atrelado à noção de genocídio, hoje está pacificado que o assassinato sistemático de pessoas também é crime contra a humanidade, afirma o procurador. Além disso, para ele, se a Lei de Anistia cobrisse esses crimes, ela configuraria auto-anistia, o que vai contra um dos princípios fundamentais do Direito.

O professor Edson Teles comparou a anistia brasileira com o que aconteceu no período pós-regime autoritário da África do Sul. A diferença, segundo o professor, é que no país africano a anistia não foi generalizada, mas esteve condicionada a um processo de confissão pública dos atos criminosos. Somente os atos confessados e os criminosos reconhecidos publicamente foram anistiados, gerando o que o professor nomeia de “narrativa da memória política”. No Brasil, foi privilegiado o segredo dos arquivos. Teles vincula essa atitude à atual tolerância para com os desrespeitos a direitos humanos no Brasil.

Em busca da democracia

O procurador Weichert justifica historicamente o objetivo de investigar e punir os crimes da ditadura citando o conceito de Justiça Transacional. “Trata-se de um termo muito comum na Justiça internacional, usado freqüentemente pela ONU, OEA e a Corte Européia de Direitos Humanos para descrever um tipo específico de justiça, que é aplicada na reconstrução de um Estado de Direito, em bases mais sólidas, após o fim de um regime autoritário”, afirma o procurador. Descreve ainda os cinco objetivos dessa justiça: buscar a verdade, punir os criminosos, reparar os prejudicados, conservar a memória das atrocidades cometidas e reformar os órgãos de segurança da nação.

No caso brasileiro, diz o procurador, cuidou-se apenas da reparação financeira às vítimas, “o que alguns mal-intencionados tacharam de dinheiro para calar a boca”.

Em resposta aos argumentos de que a anistia foi concedida de maneira bilateral e, portanto, não pode ser revogada de maneira unilateral, o procurador da República afirmou que não vê problema em apurar e eventualmente punir quem cometeu atos de terrorismo, caso venha a ser caracterizado também como crime contra a humanidade. Ressalva, porém, que “a maior parte desses acusados já foi punida durante o governo militar”.

O procurador criticou ainda o STF. “Não é papel dos ministros decidirem a pertinência ou não de discutir a anistia, pois não tem mandato eletivo. A função do STF nesse debate, importantíssima, diga-se de passagem, é de guiar o processo legal de acordo com as normas constitucionais.”

Os três palestrantes citaram estudos da cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, professora da Universidade de Minessota, que comparou países latino-americanos marcados por ditaduras no passado recente e demonstrou que as nações que puniram os crimes do período de exceção, hoje, têm mais sucesso em proteger os direitos humanos. Para Flávia Piovesan, o Brasil se recusa a julgar os crimes da ditadura e essa impunidade alimenta até hoje o uso da tortura como ferramenta nas delegacias.

Para a professora, a tortura praticada por agentes do Estado compromete o próprio contrato social entre povo e governo. “O monopólio da violência que a população concede ao Estado foi deturpado e usado contra ela de maneira indevida”, diz Flávia. “O Brasil assinou tratados internacionais proibindo a tortura e precisa prestar contas à comunidade internacional, pois, em última instância, a vítima da tortura é a própria humanidade.”

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