Direito a perguntas

Delação só é prova quando permitido o contraditório

Autor

  • André Luiz Prieto

    é defensor Público do estado de Mato Grosso pós-graduado em ciências criminais professor de Direito Penal e Processual Penal em Cuiabá-MT.

24 de setembro de 2008, 16h43

A delação se dá quando uma pessoa profere acusação a outra a respeito da prática de infração penal, em geral traindo-lhe a confiança obtida por meio de laços de amizade, parentesco, vínculo empregatício entre outros. É, em regra, um produto de um sentimento sórdido (ódio, vingança), mas pode ocorrer, no caso de co-réu, visando-se uma benesse legal, como a minoração de eventual reprimenda penal ou mesmo a perda do direito de punir estatal.

Trata-se, na verdade, de um meio de prova anômalo. Não é testemunho, pois como testemunhante só pode servir aquelas pessoas eqüidistante das partes e sem interesse na solução da demanda, o que não acontece com o delator, especialmente quando também é réu.

É, nessa hipótese, realmente uma prova anômala, totalmente irregular, pois viola o princípio do contraditório, uma das bases estruturantes do processo penal. Como a acusação surge, a rigor, no interrogatório em juízo, sem a presença do delatado e de seu defensor, ou na ouvida policial, igualmente sem essa presença de ambos, deixa de existir o contraditório, pois o atingido nada pode perguntar ou reperguntar.

Mittermayer renegou força condenatória à delação, afirmando expressamente que: “O depoimento do cúmplice apresenta graves dificuldades. Têm-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado ou mais difícil, ou porque esperam obter tratamento menos rigoroso, comprometendo pessoas colocadas em altas posições.” (in, Tratado das Provas em Direito Criminal, p. 295-6).

Os nossos tribunais tem imposto restrições a tal meio de prova. Vejamos:

“A incriminação feita pelo co-réu, escoteira nos autos, não pode ser tida como prova bastante para alicerçar sentença condenatória.” (Ver. Crim. 103.544, TACrimSP, Rel. Octavio Roggiero).

“Não se pode reconhecer como prova plena a imputação isolada de co-réu para suporte de um ‘veredictum’ condenatório, porque seria instituir-se a insegurança no julgamento criminal, com possibilidade de erros judiciários.” (Rev. Crim. 11.910, TACrimSP, rel. Ricardo Couto, RT 410:316).

“Se as declarações dos réus não bastam, sequer, para auto-acusarem-se, muito menos servirão, por si só, para enredar a outrem, imputando-lhe a prática de infração penal.” (TAcrim. 102.516, TACrimSP, Rel. Goulart Sobrinho).

Sobre esse tema, o Desembargador Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, com propriedade, acentua que: “Temos para nós que a chamada do co-réu, como elemento único de prova acusatória, jamais poderia servir de base para uma condenação, simplesmente porque violaria o princípio constitucional do contraditório. Diz o artigo 153, parágrafo 6º da Constituição Federal, que a ‘instrução criminal será contraditória.’ Ora, se ao atingido pela delação não é possível interferir no interrogatório do acusador, fazendo perguntas ou reperguntas que poderão levar a verdade ou ao desmascaramento, onde estará sendo obedecido o princípio do contraditório? Se as partes, o acusado e seu defensor, obrigatoriamente devem estar presentes nos depoimentos prestados pelo ofendido e pelas testemunhas, podendo perguntar e reperguntar, sob pena de nulidade por violar o princípio constitucional do contraditório, como dar valor pleno à delação, quando no interrogatório e na ouvida só o juiz ou a autoridade policial podem perguntar? No nosso modesto entender não vale como prova incriminatória.” (in, Da Prova no Processo Penal, ed. Saraiva, p. 76).

Esse entendimento tem feito eco no âmbito do Excelso Pretório. No julgamento do Hábeas Corpus 84.517-7-SP, relatado do então ministro do STF Sepúlveda Pertence, restou pacificado que:

“II – A chamada de co-réu, ainda que formalizada em Juízo, é inadmissível para lastrear a condenação (Precedentes: HHCC 74.368, Pleno, DJ 28.11.97; 81.172, 1.ª T, DJ 07.3.03). Insuficiência dos elementos restantes para fundamentar a condenação.”

No seu judicioso voto, o então decano da Suprema Corte Brasileira mencionou nesse aresto que: “(…) não se trata somente de uma fonte de prova particularmente suspeitosa (o que, dado o princípio da livre convicção do juiz seria insuficiente para justificar a regra cogitada), mas de um ato que, provindo do acusado, não se pode, nem mesmo para certos efeitos, fingir que provenha de uma testemunha. O acusado, não apenas não jura, mas pode até mentir impunemente em sua defesa (…) e, portanto, suas declarações, quaisquer que sejam, não se podem assimilar ao testemunho, privadas como estão das garantias mais elementares desse meio de prova.” E mais adiante disse que: “O conteúdo do interrogatório, que não é testemunho com respeito ao interrogado, tampouco pode vir a sê-lo a respeito dos demais, porque seus caracteres seguem sempre os mesmos. O que se designa como chamada de co-réu não é mais que uma confissão, que além de o ser do fato próprio, o é do fato alheio, e conserva os caracteres e a força probatória dos indícios e não do testemunho.” Tudo para concluir que: “Dos co-denunciados do mesmo delito, por conseguinte, um não pode testemunhar nem a favor nem contra o outro, já que suas declarações mantém sempre o caráter de `interrogatório´, de tal modo que seria nula a sentença que tomasse tais declarações como testemunhos.”

E no julgamento do Habeas Corpus 74.368-4-MG, o mesmo ministro, que honrou a toga quando ainda em atividade, ressaltou em seu voto que: “(…) Mesmo em juízo, a chamada de co-réu não pode ser prova suficiente para condenação nenhuma, pois evidentemente lhe falta o requisito básico da aquisição sob a garantia do contraditório: é o que resulta da impossibilidade, em nosso direito, de o réu ser questionado pelas partes, incluídos os co-réus que delatou.” E acentuou por fim que: “Prova idônea é apenas, portanto, a obtida sob o fogo cruzado do contraditório ou, quando impossível esta produção contraditória original, ao menos – e é o que sucede, por exemplo, nas perícias sobre vestígios passageiros do fato – quando posteriormente possam ser submetidas à crítica do contraditório das partes. Como acentua Magalhães Gomes Filho, na monografia preciosa que acaba de publicar – o Direito à Prova no Processo Penal, Ed. RT, p. 135 -, o contraditório não é uma qualidade acidental, mas constitui nota essencial do conceito mesmo do processo.”

Recentemente o colendo Supremo Tribunal Federal voltou a reafirmar esse mesmo entendimento, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 94.034, ocorrido em 13 de março de 2008, relatado pela ministra Carmem Lúcia, onde os ministros, por unanimidade, anularam a condenação e o processo, desde a fase da instrução, porque fundamentada única e exclusivamente na delação de co-réu.

Nessa mesma esteira o Tribunal de Justiça de Mato Grosso tem sedimentado o entendimento que:

“A delação do réu que visa eximir-se de sua culpabilidade, prestando depoimentos contraditórios, não corroborados por nenhum outro elemento de prova dos autos, não se presta para sustentar a condenação do co-réu. A absolvição, neste caso, é medida que se impõe.” (Ap. Criminal 25.172/2003, Rel. Des. Donato Fortunato Ojeda).

“A condenação por tráfico ilícito de entorpecentes não pode se fulcrar em mera delação. Tratando-se de prova imprestável obtida por meios ilícitos, por meio da violência policial, e à míngua de elementos seguros que autorizem juízo de condenação, deve o réu ser absolvido.” (Ap. Criminal 7.700/2004, Rel. Des. Rui Ramos Ribeiro).

“Não ganha foros jurídicos a prisão preventiva decretada a pedido de delegado, com amparo em delação de “colaborador” anônimo, no curso do inquérito policial, cujo pleito contraria o órgão acusador que sequer oferece denúncia após decorridos 90 (noventa) dias da segregação.” (HC 24.961/2003, Rel. Des. Manoel Ornellas de Alemida).

Sendo assim, temos que para ser válida e assim, utilizada como elementos de convicção pelo julgador, a delação necessariamente deve ser realizada na presença do delatado e seu defensor, assegurando-se a estes, em nome do princípio constitucional do contraditório, o direito a reperguntas.

E mais. O conteúdo desses elementos deve encontrar ressonância nas demais provas de forma harmônica — jamais restar isolada —, pois só assim se prestará para fundamentar uma decisão de natureza condenatória, não obstante a adoção pelo nosso Código de Processo Penal do princípio da livre convicção fundamentada ou persuasão racional do juiz.

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