Segunda Leitura

Segunda Leitura: Somos solidários como manda a Constituição?

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  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

21 de setembro de 2008, 0h00

Vladimir Passos de Freitas 2 - por SpaccaSpacca" data-GUID="vladimir_passos_freitas1.jpeg">No dia 1º de agosto, na praia da Enseada, Guarujá (SP), um jovem fez refém a turista Lílian de Souza, de 29 anos, por três horas, sob a mira de um revólver, e depois suicidou-se com um tiro na cabeça. Jonatan (sem h) era o seu nome.

A foto publicada na imprensa mostra um rapaz de boné e bermuda. A origem norte-americana do nome revela nossa subserviência cultural. Incógnito, com 19 anos de idade segundo informou à Polícia nas tratativas, de cor parda, com uma tatuagem no braço, no dia 3 ainda não havia sido identificado. Dele não se tem outros dados. A notícia durou dois dias e desapareceu por perda de interesse.

Mas o perfil do jovem suicida, seu modo de trajar, é o mesmo de milhares de jovens da periferia de dezenas de cidades brasileiras de médio e grande porte. Pressupõe-se que fosse fruto de uma família dissolvida. Possivelmente vinda do interior, no incessante processo de migração interna que nenhuma política pública tenta ou consegue fazer cessar. Em “Para escapar da barbárie humana”, artigo que bem examina o tema, Washington Novaes alerta que “não é com políticas e medidas paliativas/clientelistas que se pode fugir a desse destino” (Estado de S. Paulo, 19/9/08).

Jonatan, com certeza, jamais ouviu falar dos requisitos do mundo corporativo. Que de um profissional se exige saber atuar em equipe, adaptar-se, ter disciplina e criatividade. Ou que é imprescindível, cada vez mais, fluência em inglês. Ou, ainda, que o currículo deve ser objetivo e nas entrevistas deve apresentar-se com roupas adequadas ao perfil do profissional procurado.

A jovens como Jonatan, no disputado mercado de trabalho, poucas são as opções. Ingressar no futebol profissional é missão quase impossível. Exige talento, sorte, pouca idade. Para receber R$ 700 ou R$ 800 em profissões que não exigem formação especial, é preciso ter experiência. Concurso público, nem pensar, pois as vagas são disputadas por milhares de pessoas e, entre elas, grande parte com graduação universitária. Enfim, as oportunidades são quase inexistentes. Para alguns, o financiamento de uma moto é a saída, já que possibilita ser moto-boy, com algum ganho, ainda que sem carteira assinada e risco diário no trânsito.

O trágico destino de Jonatan e de tantos outros como ele não é (ou não foi) um problema só seu. Na verdade, é de todos. E foi, em especial, da refém Lílian de Souza, auxiliar de enfermagem, que havia ido à praia com o marido em busca de lazer e que acabou sofrendo risco de morte. Alguém que, buscando o descanso, acaba por ver-se envolvida em conflito de possíveis repercussões psicológicas, inclusive nos familiares.

Jonatan tinha alguma perspectiva de vida? Emprego, salário digno, moradia, saúde, estavam ao seu alcance? No filme Linha de Passe o diretor Walter Salles relata, com brilho, o destino cruel vivido pelos jovens da periferia das grandes cidades. E ressalta algo que passa ao largo das discussões, que é a ausência de pais nas famílias. No filme, a mãe convive e luta bravamente a cada dia com seus quatro filhos e outro no ventre, de pais diferentes. Na película, um deles já tem também o seu filho, vivendo em casas diferentes, como ele, sem pai. A passar para a geração seguinte o problema da dissolução familiar, com seus graves reflexos.

Abstraindo o dever do poder público, da responsabilidade social das empresas (vide Mônica Araya, revista Ambiente e Desenvolvimento de CIPMA, XIX/74), dos outros, enfim, cabe perguntar se nós, cidadãos, somos solidários com essas pessoas. Olhamos nos seus rostos? Ensinamos nossos filhos que pobreza não é sinônimo de marginalidade? Cumprimentamos o porteiro do edifício e demonstramos algum tipo de interesse por sua vida? Cumprimos corretamente os deveres da legislação trabalhista? Dedicamos algumas horas de nossa semana a algum tipo de serviço voluntário? Doamos um trocado ao pagar a pizza ao entregador? Atendemos, com paciência, a jovem operadora de telemarketing que nos oferece pela décima vez um cartão de crédito? Ajudamos, pessoalmente ou indicando advogado, um carente social mais próximo a retificar uma certidão de nascimento errada, que tantos problemas lhe traz? Ou a faxineira a levantar o FGTS do marido ou companheiro falecido? Damos oportunidade a um jovem que se envolveu em uma ocorrência policial?

Em suma, o que fazemos para, na condição de pessoas de nível universitário (ou prestes a sê-lo), minorar o problema? O jornalista Gilberto Dimenstein, sensível à questão social, aponta soluções criativas, principalmente na área da educação (p. ex., Cidades sem catracas, Folha de S. Paulo, 14/9/08, C9). A criatividade, sabidamente é uma das virtudes do brasileiro. E nós, no Direito ou na vida, somos criativos nessa área? Estamos sendo solidários, como propõe a Constituição no artigo 3º, inciso I?

Do que foi escrito, em breve síntese, é preciso dizer que o caso Jonatan não é apenas um caso de Polícia. Vai muito além. E, nele, saibamos ou não, queiramos ou não, estamos todos envolvidos. O que aconteceu na praia pode ocorrer com qualquer um, na serra ou na saída do shopping.

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