Artigo 396

Citação não pode ser entendida como processo penal instaurado

Autor

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular de Direito Processual Penal da UFPR chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR representante da Área do Direito junto à Capes e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.

20 de setembro de 2008, 0h00

Das recentes reformas parciais do CPP – em largos espaços, desastradas –, levadas a efeito pelas Leis 11.689, 11.690 (ambas de 9 de junho de 2008) e 11.719, de 20 de junho de 2008, algumas ganham desde logo maior relevo em função de terem criado verdadeira balbúrdia no mundo judiciário e acadêmico nacional.

Algo de bom, porém, veio, mormente no rito do Júri (Lei 11.689), no qual se procurou ajustar o procedimento à realidade nacional, percebida que foi por René Ariel Dotti, seu principal mentor e articulador, enquanto suportou as idiossincrasias de Brasília.

Com a Lei 11.719 (com vigência a partir do dia 22 de agosto de 2008, em face do prazo de vacatio legis de 60 dias), inovou-se com um novo artigo 396 para o CPP.

Tal dispositivo, ainda como o artigo 395, quando da tramitação do Projeto de Lei 4.207/01 no Congresso Nacional, recebeu a Emenda 1, de 17 de maio de 2007, do deputado João Campos, com proposta (acolhida) de inclusão do verbo “receber”, em mesóclise, restando assim a redação definitiva: “Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.” (g.n.). O Senado tentou mudar a alteração feita, para se retornar ao texto originário, mas se voltou ao texto da Câmara dos Deputados, o qual se tornou definitivo após a Emenda 8, da lavra do ilustre deputado federal Regis Fernandes de Oliveira, então relator: a remuneração do artigo (de 395 para 396) veio com o substitutivo apresentado.

Ocorre, não obstante, que a reforma ali processada pretendia (desde o projeto originário) criar um verdadeiro contraditório prévio, não só altamente democrático como isonômico, em face da equiparação a outros ritos, máxime aquele destinado aos que têm prerrogativa de função (Lei 8.038, de 28/5/90). A mudança, porém, não era bem como se dizia, ou seja, havia um problema técnico a ser contornado e, mesmo que se tivesse conhecimento disso, nada se fez. O resultado foi – como não poderia deixar de ser – aquele apresentado no substitutivo.

O fundamento da emenda precitada mostra bem o desconforto causado pela proposta do projeto, no que se refere ao aspecto técnico-processual-penal. Assim, refere a Emenda 8: “pretende alterar no caput do artigo 395, do Código de Processo Penal, o termo ‘recebê-la-á’ sob a justificativa de que o ato de recebimento da denúncia está previsto no momento descrito no artigo 399. O instrumento que é o processo, não pode ser mais importante do que a própria relação material que se discute nos autos. Sendo inepta de plano a denúncia ou queixa, razão não há para se mandar citar o réu e, somente após a apresentação de defesa deste, extinguir o feito. Melhor se mostra que o Juiz ao analisar a denúncia ou queixa ofertada fulmine relação processual infrutífera. Rejeita-se a alteração proposta pelo Senado.” (g.n.).

Desta forma, o projeto que se discutia, na forma como proposto, ao fugir da tradição nacional, deu azo ao fundamento apresentado, o qual só na aparência – como se vê desde logo – é democrático. Afinal, mais que tudo, com ele vai-se o tão sonhado contraditório prévio; ou pode ir.

A única mudança cabível, em tal direção, teria sido a substituição, de todo correta, da palavra citação (que todos sabem o que é) pela palavra notificação (também conhecida de todos, embora substancialmente distinta daquela), de modo que se pudesse manter a tradição do país em termos de contraditório prévio, ou seja, não se permitir a existência de processo senão após o juízo de admissibilidade da ação, inclusive para se separar de maneira correta institutos (se se pudesse assim referir) completamente diferentes, com os efeitos daí decorrentes.

Assim, como já aparecia em outros ritos (v.g. no do artigo 513 e seguintes, do CPP), antes do juízo de admissibilidade da ação (vero e próprio), positivo ou negativo, dever-se-ia prever um contraditório prévio a fim de que os denunciados (ou querelados, se fosse o caso) oferecessem defesa prévia (esta sim, de fato, prévia, e não confundida com aquela do antigo artigo 395, do CPP, em geral chamada de defesa prévia e que sempre foi tão-só alegações preliminares) e, assim, estabelecessem condições técnicas para o precitado juízo de admissibilidade da ação, tendo em vista, na referida defesa, discutir-se a procedência (ou não) da ação, antes exercida pelo órgão do MP ou pelo querelante, tudo em face das condições (da ação), genéricas e específicas.

Por elementar, o supracitado contraditório prévio era marcado pelo ato do juiz que incidia sobre a inicial (denúncia ou queixa), com a conseguinte ordem de expedição de notificação. Tratava-se, como se sabe, de um juízo de admissibilidade, mas não do juízo de admissibilidade da ação penal. Afinal, tinha ele por base a mera aparência, razão por que o juiz só poderia liminarmente rejeitar a inicial se fosse flagrante a falta de condição da ação ou de algum aspecto formal do ato acusatório (regularidade da acusação). Do contrário, acolhia (o juiz) o ato (garantido por sua força constitucional de direito de petição, mutatis mutandis como o rechtsschutzanspruch, de Wach) e determinava a notificação do denunciado (ou do querelado) a fim de que – repita-se – discutisse a procedência ou não da ação.


Após a defesa prévia, fazia, então, o juiz, o verdadeiro juízo de admissibilidade da ação, negativo e positivo, sempre como uma decisão e não mero despacho como, insistentemente, querem alguns, mormente para negar vigência ao artigo 93, IX, da CR e, portanto, não o vincular à obrigatoriedade de fundamentação. Naquele caso (decisão negativa), como se sabe, determinava o arquivamento dos autos. Neste (no juízo de admissibilidade positivo), recebia denúncia ou queixa e determinava a citação do réu para apresentar suas alegações preliminares. Tal decisão – é do conhecimento geral – não só instaurava o processo como – muito importante – funcionava como causa interruptiva da prescrição, nos termos do artigo 117, I, do CP.

Tal estrutura técnica, ao que tudo indica, não foi sequer percebida na Câmara dos Deputados. Basta ver que no relatório do ilustre deputado Regis Fernandes de Oliveira, resta expresso: “Em apertada síntese, as principais modificações introduzidas pelo presente PL são: (…) 7) Prevê a apresentação da resposta do acusado antes do exame da admissibilidade da denúncia, criando a possibilidade do juiz absolver sumariamente o acusado;” (g.n.). Ora, parece haver um equívoco técnico inexplicável: prega-se que “o exame de admissibilidade da denúncia” será feito tão-só após “a apresentação da resposta do acusado”, mas, já no substitutivo (fora da linha antes traçada no projeto originário), vem a previsão do novo artigo 363, do CPP: “O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado.”). Assim, há processo com a citação; e ela é fruto do juízo de admissibilidade positivo da denúncia ou da queixa, deixando sem sentido aquele juízo de admissibilidade posterior.

Agora, com o novo artigo 396 e as duas mudanças substanciais (uma promovida pela Comissão de Reforma: citação ao invés de notificação; e outra do Congresso Nacional, como a inclusão da mesóclise do verbo receber: “recebê-la-á”; após lobby político do MP, como se noticiou à época), buscou-se acabar com o contraditório prévio e se prestou um desserviço à nação, usurpando a democracia processual embora, no discurso de justificação, a retórica fácil tenha induzido em erro algumas pessoas.

Não obstante, ambas as hipóteses apontam à inconstitucionalidade, o que deve ser discutido perante o Supremo Tribunal Federal em forma de controle concentrado – e que demanda urgência –, porque se causou uma balbúrdia hermenêutica no país e, não se sabendo bem o que fazer, está cada um a agir do seu modo (mormente os magistrados que têm que dar conta da situação), tudo levando a apontar na direção de infindáveis problemas que só se resolverão – em detrimento da Justiça – na via recursal, abarrotando-se ainda mais os tribunais, ou seja, algo que se deve evitar. Ademais, curvou-se a doutrina à jurisprudência – o que é um desastre – que, ao fim e ao cabo, acabará por dizer o que consta na lei, algo extremamente perigoso quando em jogo estiverem interesses ligados a casos concretos, na via recursal. Eis, portanto, mais um motivo de peso para se levar a questão ao STF a fim de que seja discutida em tese e, por isso, resolva o problema criado em todo território nacional.

A solução para a questão (no sentido de Carnelutti) está na declaração de inconstitucionalidade ou, se assim não se entender, em uma interpretação conforme à Constituição, ou mesmo numa nulidade parcial sem redução de texto.

Quanto à inconstitucionalidade, pouco há para discutir, porque se conseguiu ofender não só o sistema constitucional principiológico do direito de ação (o qual cobra, pela maior extensão do referido direito/dever e na forma como metido no due process of law, um contraditório prévio de verdade), como, também, a imparcialidade da jurisdição, obrigando-a a um duplo juízo sobre a ação quando, como parece primário, já foi ela (a ação) superada com a instauração do processo em face da citação do denunciado ou do querelado, nos termos do novo artigo 363. Parece induvidosa, portanto, a inconstitucionalidade.

Salvar o texto, porém, pode parecer ser a solução mais adequada, em que pese não se possa deixar de registrar o absurdo de uma proposta do Congresso Nacional que busque solapar (para não dizer destruir) a CR, mormente se correta a informação de que os interesses não são legítimos, assim como – da mesma forma – não ser adequada (para dizer o mínimo) uma redação (da Comissão de Reforma) que escreve citação onde o correto (sabiam todos, há de se presumir) era notificação.

A salvação, destarte, pode vir por uma interpretação conforme à CR, entendendo-se que onde se disse citação (e diante dos postulados constitucionais) só se pode tomar por sentido a notificação, sob pena de inconstitucionalidade, mutatis mutandis como se fez no caso do artigo 114, I, da CR, em face da redação determinada pela Emenda 45/2004, tratando-se da competência da Justiça do Trabalho para julgamento dos casos decorrentes da “relação de trabalho”.


Em decisão liminar (confirmada pelo Pleno), o ilustre ministro Nelson Jobim entendeu que só seria constitucional o texto se no lugar onde se lia “relação de trabalho” fosse lido “relação de emprego” (suspendendo “toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do artigo 114 da CF, na redação dada pelo EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a ‘…apreciação… de causas que… sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo’”) como, de fato, foi, apaziguando os ânimos e bloqueando um mar de demandas.

De outra parte, pode-se entender que a mesóclise, somada à referência à citação, violam o sistema e deveriam – ou poderiam – levar a uma abdução de sentido, razão por que se deveria atuar com uma nulidade parcial, mas sem redução de texto. Tal é possível porque, ao não se fazer a redução de texto, a opção seria pela abdução de sentido, deixando-se intacto o preceito embora, aqui, não se trate da mesma coisa, ou seja, citação e notificação não são o mais em relação ao menos.

Sobre toda a matéria aqui tratada, teve-se por cautela ouvir ao professor doutor Lenio Luiz Streck (A jurisdição constitucional e o “duplo juízo de admissibilidade” do artigo 396 do CPP: uma solução hermenêutica, In www.leniostreck.com.br; c.f. tb: Reforma Penal: O impasse na interpretação do artigo 396 do CPP, In: http://www.conjur.com.br/static/text/69984,1. Acesso em 19/9/2008), da Unisinos, do Rio Grande do Sul, o qual, com precisão e inteligência, opinou sobre o tema, não deixando dúvida de que a questão deve ser resolvida hermeneuticamente: “Como resolver o problema dessa pretensa duplicidade de ‘fases’? Levando em conta a perspectiva garantidora que deve ter o Código de Processo Penal e sua inserção nos quadros de um direito que não permite retrocessos sociais e que deve, a cada dia, avançar em direção ao seu desiderato acusatório, só existe uma resposta adequada à Constituição, uma vez que a simples expunção da expressão ‘citação’ – e isso se faria a partir de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto – não resolve o problema, porque, neste caso, não é possível colocar outra expressão no lugar daquela. (…). A solução, portanto, é a aplicação da técnica da verfassungskonforme Auslegung (interpretação conforme a Constituição). Esta operação de jurisdição constitucional elimina a possibilidade de uma duplicidade de ‘fases’, porque, onde está escrito citação, leia-se notificação. A fórmula – seguindo a equação ‘a norma é o resultado da interpretação do texto’ – será: ‘O dispositivo do artigo 396 somente é constitucional se entendido no sentido de que, não rejeitada liminarmente a denúncia ou a queixa, o juiz recebê-la-á e ordenará a notificação do acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito’. Recordemos: ‘O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado’ (artigo 363), ou seja, feita citação já se terá processo e, assim, o que se decidirá (sendo ele o due processo of law, naturalmente), daí por diante, não é mais a ação. A regra do artigo 396, assim – se não se fizer a verfassungskonforme Auslegung – estará quebrando/violando o sistema constitucional processual, o que vem reforçado pela redação do artigo 397, quando permite uma ‘absolvição sumária’, inclusive em razão da extinção da punibilidade (sic). Desta forma, o processo somente será instaurado após a defesa escrita e circunstanciada. Essa é a chave do problema. Citação implica processo penal instaurado. E isso não pode ocorrer se quisermos preservar a tese de que a reforma veio para instaurar o império da igualdade, da ampla defesa e do contraditório”.

Por elementar, todos os juízes e tribunais podem fazer a interpretação conforme à Constituição e, se for o caso, usar a técnica da nulidade parcial sem redução de texto, não sendo necessário esperar pela decisão do STF em controle concentrado. Só assim podem resolver, desde logo, os problemas que vieram com o novo texto legal do artigo 396.

A matéria é de importância transcendental e, por elementar, atinge a todo cidadão comprometido com a defesa da CR e da cidadania, razão por que a questão deve ser discutida e solucionada com urgência.

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    Jacinto Nelson de Miranda Coutinho é professor titular de Direito Processual Penal da UFPR, chefe do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR, representante da Área do Direito junto a Capes e Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pelo Paraná.

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