Reforma penal

O impasse na interpretação do artigo 396 do CPP

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18 de setembro de 2008, 0h00

É difícil dizer qual é o principal problema da mini-reforma do Código de Processo Penal. De todo modo, uma coisa é certa: para os que são contra e para os que são a favor, o mercado editorial tem sido generoso, com dezenas de publicações, todas buscando separar o joio do trigo (com muitos deles ficando com o joio). Umas das partes mais conturbadas — que, paradoxalmente, não tem recebido a necessária crítica — reside na insistência do legislador em apostar “todas as suas fichas” no protagonismo judicial.

Mesmo aquelas críticas mais contundentes ao sistema inquisitório não se apercebem da ligação umbilical entre “sistema inquisitório, positivismo jurídico e discricionariedade judicial” (no direito processual penal, Jacinto Coutinho vem travando uma luta sem fronteiras contra esse “solipsismo processualístico”, porque atinge o cerne do problema: o paradigma representacional).

Por tudo isso, sempre é bom lembrar — na esteira do que também vem trabalhando essa nova e sofisticada safra de estudiosos da ciência processual, como Flaviane Barros, Dierle Nunes, André Cordeiro Leal e Marcelo Cattoni — que desde Oskar von Büllow — questão que também pode ser vista em Anton Menger e Franz Klein —, a relação publicística vem sendo lastreada na figura do juiz, “porta-voz avançado do sentimento jurídico do povo”, com poderes para criar direito mesmo contra legem, tese que viabilizou, na seqüência, a Escola do Direito Livre.

Essa aposta solipsista está sustentada no paradigma representacional, que atravessa dois séculos, podendo facilmente ser percebida em Chiovenda, para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei; em Carnelutti, de cuja obra se depreende que a jurisdição é “prover”, “fazer o que seja necessário”; também emCouture, para o qual, a partir de sua visão intuitiva e subjetivista, chega a dizer que “o problema da escolha do juiz é, em definitivo, o problema da justiça”; em Liebman, para quem o juiz, no exercício da jurisdição, é livre de vínculos enquanto intérprete qualificado da lei; já no Brasil, afora a doutrina que atravessou o século XX (v.g., de Carlos Maximiliano a Paulo Dourado de Gusmão), tais questões estão presentes na concepção instrumentalista do processo, cujos defensores admitem a existência de escopos metajurídicos, estando permitido ao juiz realizar determinações jurídicas, mesmo que não contidas no direito legislado, com o que o aperfeiçoamento do sistema jurídico dependerá da “boa escolha dos juízes” e, conseqüentemente, de seu (“sadio”) protagonismo.

Sob outra perspectiva, esse fenômeno se repete no direito civil, a partir da defesa, por parte da maioria da doutrina, do poder interpretativo dos juízes nas cláusulas gerais, que devem ser preenchidas com amplo “subjetivismo” e “ideologicamente”; no processo penal, não passa despercebida a continuidade da força do “princípio” da verdade real e do livre convencimento; já no direito constitucional, essa perspectiva é perceptível pela utilização descriteriosa dos princípios, transformados em “álibis persuasivos”; com isso, cinde-se a interpretação: para os casos fáceis, aplicam-se as regras mediante a subsunção (sic); já os casos difíceis abrem espaço para o uso da ponderação de princípios (como se pondera, afinal?), circunstância que, uma vez mais, fortalece o protagonismo judicial. Portanto, é impossível discutir as (mini)reformas — tanto processual penal como processual civil — sem um ataque ao núcleo do problema.

Na especificidade, uma das partes da aludida mini-reforma que mais chamou a atenção da comunidade jurídica foi a alteração produzida no artigo 396, a partir da qual, a pretexto de atender as antigas demandas em relação à “formação do processo”, criou-se uma “duplicidade” de momentos para o recebimento da denúncia ou queixa. Vem, então, a questão: como (con)viver com esse proto bis in idem?

Algumas soluções já foram propostas, por considerarem incompatíveis as disposições previstas nos artigos 396 e 399 do Código de Processo Penal. Para explicar: o art. 396 determina o recebimento da denúncia e a citação (sic) do acusado (sic) para oferecimento de defesa; só então haverá o “definitivo” recebimento da peça acusatória (agora já estamos falando do art. 399).

Criado o problema, põe-se o debate. De um lado, Geraldo Prado assevera que ou a inicial será recebida em seguida ao seu oferecimento ou será recebida após a citação e, conseqüentemente, também após a apresentação de resposta/defesa prévia. Como solução, Prado propõe o “sacrifício parcial” da primeira norma — propondo uma saída nitidamente pragmatista —, visto que indispensável ao recebimento da denúncia o contraditório representado pela defesa prévia.


De outro lado, Antônio Scarance Fernandes critica a técnica legislativa, mas concorda com a finalidade prevista na nova Lei. Nesta linha, observa que, pela reforma do art. 396, em sua combinação com o artigo 399, há dois atos distintos, ambos com a finalidade de análise da possibilidade de ser aceita a acusação. Haveria, assim, para ele, um recebimento preliminar ou provisório, do qual decorreria a citação para apresentação de resposta (artigo 396) e um recebimento definitivo quando da análise efetiva da admissibilidade da acusação. Destaca, pois, a existência de dois juízos de admissibilidade.

Tais soluções, contudo — embora Geraldo Prado esteja mais próximo da solução — não adentram o cerne da questão, qual seja, o problema ocasionado pela redação do novo dispositivo, que trata da possibilidade de se iniciar o processo, após o recebimento da denúncia ou queixa e da citação (art. 396), antes da apresentação de resposta ou defesa prévia. Não pode haver o “sacrifício parcial” da primeira norma (fase) e também não pode ocorrer a concomitância de dois juízos de admissibilidade. Veja-se: o artigo 396 diz que, oferecida a denúncia (ou queixa), o juiz, não a rejeitando in limine, deve recebê-la, ordenando, em seguida, a citação do acusado para o oferecimento da resposta.

De pronto, dois problemas: o processo somente se completa com a citação válida; logo, já haverá processo desde a “saída”? É um “processo provisório”? Repetindo: se há ordenação de citação e ela sendo efetivada, em seguida, há formação do processo; mais ainda, a lei já chama o suposto criminoso de “acusado”. Consequentemente, há um “limbo” entre “duas admissibilidades acusatórias” Ora, se já há processo, em face da existência de uma citação e já se chama o indigitado de acusado, então esta é uma primeira fase, que Scarance chama, ao meu sentir, indevidamente, de “provisória”.

A questão é saber por que razão e sob qual fundamento deve existir uma fase anterior em que se recebe “parcialmente” a denúncia (ou queixa) para, depois, existir uma fase em que a denúncia (ou a queixa) é “totalmente” recebida.

Perceba-se, desde logo, outro problema que surge a partir da atecnia legislativa que diz respeito ao momento em que será interrompida a prescrição. Com efeito, consoante estabelece o artigo 117 do Código Penal, a primeira causa interruptiva de contagem do lapso temporal para efeito de extinção da punibilidade é o recebimento da denúncia ou da queixa. Ora, vingando a tese da existência de dois recebimentos da denúncia (mesmo que, como se queira, diferentemente adjetivados: provisório e definitivo), qual deles acarretará a interrupção da prescrição? Pode ocorrer que se passem meses e meses entre uma “fase” e “outra”. E, quando o “acusado”, ainda no “limbo”, for retirar uma certidão, ele é o quê? Tecnicamente, é réu. Afinal, conforme o artigo 363 — levado às últimas conseqüências da ciência processual — ele está respondendo a processo, pela simples razão de que foi citado, já se tendo esgotado a ação penal.

Penso que qualquer solução que se dê à controvérsia não pode provocar um minus do novo procedimento em relação ao que já existe, desde há muito, em favor de autoridades, como é o caso da Lei 8.038/90 (lembremos o art. 4 da Lei 8.038/90: Apresentada a denúncia ou queixa ao Tribunal, far-se-á a notificação para oferecer resposta no prazo de 15 dias).

Aliás, espera-se que esta tenha sido a voluntas legislatoris (sic) que informou o processo de formação da nova Lei, isto é, isonomizar os demais crimes com aqueles cometidos por autoridades, etc, que sempre tiveram a possibilidade, antes de serem chamados de acusados, de terem a seu favor o prévio contraditório. Portanto, já de há muito havia essa inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, ou seja, já de há muito a denúncia só deveria ser recebida, para todos os tipos de crimes e pessoas, após o oferecimento da resposta, conforme a holding prevista no artigo 4 da Lei. 8.038.

Observe-se que essa previsão já constava bo casos dos crimes funcionais e na nova Lei de Tóxicos, que estabelece exatamente a necessidade de notificação (veja-se: notificação e não citação) e defesa prévia ampla.

De todo modo, poder-se-ia (para usar, aqui, a mesóclise utilizada estilisticamente no art. 396) dizer que, caso mantidas as duas “fases”, o acusado de traficar teria um procedimento específico mais garantístico que qualquer outro cidadão da República. Claro que não se pode olvidar, contudo, que até estes foram atingidos pela criação das aludidas “fases”, uma vez que, consoante dispõe o artigo 394, parágrafo 4o, do Código de Processo Penal, aplicam-se as novas disposições a todos os procedimentos penais de primeiro grau.


Mas — para argumentar e levados os princípios constitucionais no seu aspecto garantidor — os procedimentos que garantiam diretamente a possibilidade de prévia defesa sofreram um prejuízo, porque provocaram retrocesso em termos de garantias (e, como se sabe, no Estado Democrático o direito aponta para o futuro, bastando para tanto ver o acórdão 39/84, do Tribunal Constitucional de Portugal, que institucionaliza a cláusula de proibição de retrocesso social).

Sendo mais claro: assim como acontece com a legislação que garante o foro prerrogativa de função (por todas, a Lei 8.038/90), somente há processo depois do juízo de admissibilidade positivo (da ação penal) feito após apresentação da prévia defesa pelos apontados como suscetíveis de responder a processo criminal (lembremos o caso recente do “mensalão”). Insistindo: não pode haver um “recebimento preliminar” para depois haver um juízo definitivo sobre o recebimento da denúncia ou queixa. Afinal, como se sabe, ação e processo não se confundem diante da Constituição.

O processo penal não está imune à filosofia, e nem o juiz consegue abstrair aquilo que já fez no juízo “preliminar”: há, ali, de forma evidente, um juízo de admissibilidade, mas não um juízo de admissibilidade da ação, com o recebimento (ou não) vero e próprio, da denúncia ou queixa e, portanto, causa interruptiva da prescrição. Aqui todo o busílis. Por outro lado, um mínimo “olhar preliminar” já contamina o momento seguinte. O círculo hermenêutico (hermeneutische Zirkel) não possui fases ou frestas pelas quais possam ser isolados sentidos já anteriormente atribuídos. Aqui, aliás, poderíamos lembrar a crítica que Gadamer faz à interpretação em partes ou em fatias: não há uma subtilitas intelligendi, uma subtilitas explicandi e, depois, uma subtilitas applicandi. Pensar assim é reproduzir o esquema sujeito-objeto.

Por isso Gadamer vai dizer que, embora tenhamos uma subtileza d´alma, quando interpretamos já estamos aplicando. Interpretar é aplicar. Por tais razões é difícil compreender a existência de um “recebimento” de denúncia (ou queixa) em duas fases distintas, uma “isolada” da outra, como se fosse possível criar um grau zero de sentido na avaliação definitiva da peça acusatória.

Nesta direção, Jacinto Coutinho diz que chega quase a não ser humano determinar (sobre um comando é que se refere a regra) que o juiz faça um julgamento do mérito na “abertura do processo” e, depois, como se fizesse um “delete” — tal e qual se faz em computadores —, decida com imparcialidade (para alguns ingênuos também neutralidade), ao final da instrução (assim se “comportando”, por óbvio, durante ela inteira) e, embora tenha livre apreciação da prova, deve tudo fazer sem usar aquela (prova) não obtida senão no crivo do contraditório, conforme o irrazoável preceito do novo artigo 155.

Ora, é ele inconstitucional, mormente em face do novo art. 156, I, da Lei n° 11.690/08, o qual lhe dá poderes para intervir na primeira fase da persecução penal e ordenar a produção de provas (In: Apresentação de (Re)forma do Processo Penal. Flaviane Barros. BH, Del Rey, 2008).

Pense-se: por que um instituto jurídico que sempre se perfectibilizou com o juízo de admissibilidade da ação tem, agora, a necessidade de uma segunda “fase”?

Parece óbvio indagar, mas, por que alguém que já é chamado de acusado e é citado, somente então oferecerá a defesa, podendo, em face do sucesso desta, ficar liberado do processo? No caso, como ele já é acusado e foi citado para se defender, a decisão que “não recebe definitivamente a denúncia” não seria, na verdade, uma absolvição, tecnicamente falando? Tais questões fazem com que busquemos soluções no plano da jurisdição constitucional. Isto sem considerar e lembrar que, em sendo o direito penal, no Estado Democrático de Direito, a ultima ratio — e, como tal, sustentado nos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade —, parece coerente a exigência de procedimento contraditório prévio à instauração do processo, como, aliás, sempre existiu para uma espécie de criminosos do “andar de cima” de terrae brasilis. Ora, parece estranho que, quando as garantias chegam até a “patuléia”, o legislador estabeleça um elemento obstaculizador, isto é, somente depois de ser “declarado meio-acusado” é que haverá a oportunidade da plena defesa.

A questão deve ser resolvida hermeneuticamente. O acentuado grau de autonomia alcançado pelo direito nesta quadra da história não permite “grau zero” na interpretação e nem substituição do direito por discursos adjudicadores, de cunho pragmático-axiologista e com funções teleológicas. Os “gaps” da legislação e seus arranhões semânticos devem ser resolvidos no direito e a partir do direito, sendo o instrumento para tal a jurisdição constitucional, sob a diretiva da hermenêutica constitucional. A interpretação deve acontecer (Ereignen) a partir de princípios, e não de políticas (Dworkin).


Por outro lado, é necessário levar em conta o papel do direito no Estado Democrático de Direito. Com efeito, o constitucionalismo é eminentemente pós-positivista, superando, assim, aquilo que vem marcando o positivismo há mais de um século: a questão das fontes sociais (agora o direito é transformador e dirigente — daí a perspectiva garantista de fazer democracia a partir do direito); a questão da separação direito-moral, resolvida pela institucionalização da moral no direito (essa questão é especialmente bem resolvida por Habermas) e, por último, o problema da discricionariedade, valendo lembrar o principal debate sobre teoria do direito ocorrido no século XX, entre Dworkin e Hart. A discricionariedade é ligada, destarte, ao positivismo. Os princípios constitucionais, antes de serem álibis teóricos para aberturas interpretativas, são, agora, mecanismos importantes de “fechamento” interpretativo (sobre o assunto, remetemos o leitor ao nosso Verdade e Consenso — Lúmen Júris, 2007 e ao pós-posfacio da oitava edição do Hermenêutica Jurídica em Crise — Livraria do Advogado, 2008).

Tudo isso para dizer que, se nesta quadra da história a jurisdição assume um papel de especial relevância em face do conteúdo compromissório e dirigente da Constituição, devemos ter especial cuidado para que a jurisdição não substitua a legislação produzida democraticamente.

Portanto, para que uma legislação seja anulada, rechaçada ou “corrigida” a partir de sentenças interpretativas, o intérprete deve preservar o grau de autonomia alcançado pelo direito no Estado Democrático de Direito, o respeito à integridade e à coerência, o dever fundamental de justificar as decisões e o direito fundamental que cada cidadão tem de receber uma resposta que esteja condizente com a Constituição. Todos os caminhos devem levar, pois, à Constituição. Os obstáculos a ela devem ser removidos no plano da jurisdição constitucional. E todos sabemos das inúmeras possibilidades que esta nos oferece.

Em outras palavras, afirmamos que o Poder Judiciário somente pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóteses:

a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, vindo a violar uma norma ou princípio da Constituição, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso de constitucionalidade stricto sensu);

b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias. Neste caso, há que se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias deixam de ser relevantes;

c) quando aplicar a técnica da interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião em que se torna necessária uma adição de sentido ao artigo de lei para que haja plena conformidade da norma à Constituição. Neste caso, o texto de lei permanece intacto. Trata-se, aqui, da aplicação hermenêutica de diferença (ontológica) entre texto e norma;

d) quando aplicar a técnica da nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung), pela qual permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendungsfälle) do programa normativo sem que se produza alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto na interpretação conforme há uma adição de sentido, na nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma abdução de sentido;

e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto, ocasião em que a exclusão de uma palavra conduz à manutenção da constitucionalidade do dispositivo.

Fora destas hipóteses, estar-se-á em face de decisionismos e arbitrariedades interpretativas. Portanto, na não-democracia.

Vamos, pois, ao caso. Antes da reforma, o dispositivo que tratava da matéria era o artigo 394:

“O juiz, ao receber a queixa ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório, ordenando a citação do réu e a notificação do Ministério Público e, se for caso, do querelante ou do assistente.”

Já recebida a denúncia, o acusado tinha o direito de apresentar alegações preliminares (embora todos as chamassem de defesa prévia, nos termos do art. 395). Veja-se que, mesmo que o acusado não apresentasse a defesa — que, lembremos, era posterior ao recebimento da denúncia — o processo seguia a sua marcha. Por evidente que não existia contraditório prévio e a defesa lançada, em geral, limitava-se a arrolar testemunhas como, por certo, lembram todos.

Com a Reforma, o dispositivo que trata na especificidade da matéria é o artigo 396, verbis:

“Nos procedimentos ordinário e sumário, oferecida a denúncia ou queixa, o juiz, se não a rejeitar liminarmente, recebê-la-á e ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias.

Parágrafo único: No caso da citação por edital, o prazo para a defesa começará a fluir a partir do comparecimento pessoal do acusado ou do defensor constituído.”


A grande diferença entre as velhas disposições e a nova previsão legal está na introdução da defesa inicial escrita para o procedimento ordinário e sumário, devendo esta ser produzida por advogado. A inovação substitui à citação que determinava o comparecimento do acusado para ser interrogado, e depois do interrogatório é que o (já então) réu apresentava alegações preliminares (antigo art. 395).

Como resolver o problema dessa pretensa duplicidade de “fases”? Levando em conta a perspectiva garantidora que deve ter o Código de Processo Penal e sua inserção nos quadros de um direito que não permite retrocessos sociais e que deve, a cada dia, avançar em direção ao seu desiderato acusatório, só existe uma resposta adequada à Constituição, uma vez que a simples expunção da expressão “citação” — e isso se faria a partir de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto — não resolve o problema, porque, neste caso, não é possível colocar outra expressão no lugar daquela.

A solução, portanto, é a aplicação da técnica da verfassungskonforme Auslegung (interpretação conforme a Constituição). Esta operação de jurisdição constitucional elimina a possibilidade de uma duplicidade de “fases”, porque, onde está escrito citação, leia-se notificação. A fórmula — seguindo a equação “a norma é o resultado da interpretação do texto” — será:

“O dispositivo do art. 396 somente é constitucional se entendido no sentido de que, não rejeitada liminarmente a denúncia ou a queixa, o juiz recebê-la-á e ordenará a notificação do acusado para responder a acusação no prazo de dez dias, por escrito”.

Recordemos: “O processo terá completada a sua formação quando realizada a citação do acusado” (art. 363), ou seja, feita citação já se terá processo e, assim, o que se decidirá (sendo ele o due processo of law, naturalmente), daí por diante, não é mais a ação. A regra do artigo 396, assim — se não se fizer a verfassungskonforme Auslegung — estará quebrando/violando o sistema constitucional processual, o que vem reforçado pela redação do artigo 397, quando permite uma “absolvição sumária”, inclusive em razão da extinção da punibilidade (sic).

Desta forma, o processo somente será instaurado após a defesa escrita e circunstanciada. Essa é a chave do problema. Citação implica processo penal instaurado. E isso não pode ocorrer se quisermos preservar a tese de que a reforma veio para instaurar o império da igualdade, da ampla defesa e do contraditório. É este o ponto fulcral, resolvido, agora, em sede de interpretação conforme a Constituição, até para não tornar inútil o artigo 399.

Uma pergunta, desde logo, impõe-se: a interpretação conforme — assim como a nulidade parcial sem redução de texto — podem ser aplicadas pelo juízo singular e pelos demais Tribunais, ou tal aplicação se afigura como prerrogativa exclusiva do Supremo Tribunal Federal?

Estamos convencidos de que não há qualquer óbice constitucional que impeça juízes e tribunais de aplicarem a interpretação conforme e a nulidade parcial sem redução de texto. Entender o contrário seria admitir que juízes e tribunais (que não o STF) estivessem obrigados a declarar inconstitucionais dispositivos que pudessem, no mínimo em parte, ser salvaguardados no sistema, mediante a aplicação das citadas técnicas de controle. Por que um Juiz de Direito — que, desde a Constituição de 1891, sempre esteve autorizado a deixar de aplicar uma lei na íntegra por entendê-la inconstitucional — não pode, também hoje, em pleno Estado Democrático de Direito, aplicá-la tão-somente em parte?

O mesmo se aplica aos tribunais que, na especificidade da Interpretação Conforme a Constituição e da Nulidade Parcial sem Redução de Texto, estão dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade.

Afinal, parafraseando Rui Medeiros e Hans Paul Prüm, não se justifica aplicar o regime de fiscalização concreta, ou seja, suscitar o incidente de inconstitucionalidade — que é o modo previsto no sistema jurídico brasileiro de aferir a constitucionalidade no controle difuso de forma stricto senso — aos casos em que esteja em causa tão-somente a inconstitucionalidade de uma das possíveis interpretações da lei, pois o juízo de inconstitucionalidade de uma determinada interpretação da lei não afeta a lei em si mesma, não colocando em causa, portanto, a obra do legislador.

Refira-se — e essa questão assume extrema relevância pela sua abrangência temática — que em nada fica maculado este entendimento em face da recente edição da Súmula Vinculante 10 (“Viola a cláusula de reserva de plenário [CF, artigo 97] a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta a sua incidência no todo ou em parte.”), do Supremo Tribunal Federal. Ela não se aplica à Interpretação Conforme e nem à Nulidade Parcial sem Redução de Texto.

E explica-se o porquê: assim como uma decisão de Nulidade Parcial sem Redução de Texto (também chamada de decisão de inconstitucionalidade parcial qualitativa,) feita pelo STF não necessita ser enviada ao Senado, não cabe exigir incidente de inconstitucionalidade, não havendo, assim, violação ao full bench (art. 97 da CF). Isso porque, tanto na Interpretação Conforme a Constituição quanto na Nulidade Parcial sem Redução de Texto, não há expunção de texto ou de parte de texto normativo, apenas havendo o afastamento de uma das incidências do texto.

Como há vários sentidos, e o Tribunal opta por um deles (na Interpretação Conforme há uma adição de sentido), na nulidade parcial qualitativa o resultado hermenêutico faz com que o texto permaneça com um minus. Na medida em que, em ambas as hipóteses, o texto permanece em sua literalidade, não há que se falar em incidente de inconstitucionalidade. Aliás, não haveria como operacionalizar o incidente de inconstitucionalidade de um sentido de um texto. Numa palavra: a Súmula 10 é aplicada apenas aos casos em que há inconstitucionalidade com redução de texto.

À guisa de conclusão

A jurisdição constitucional assumiu nesta quadra da história especial relevância, bastando, para tanto, examinar os históricos julgamentos dos Tribunais Constitucionais da Alemanha, Itália, Portugal e Espanha, para citar apenas estes, por possuírem tribunais ad-hoc. No Brasil, passados vinte anos da Constituição que estabelece um novo paradigma, ainda não atingimos o patamar de controle exigido paradigmaticamente.

Os sintomas de “baixa constitucionalidade” ainda estão presentes na quotidianidade da doutrina e de grande parcela dos tribunais. Por isso, uma intensificação do uso da jurisdição constitucional apresenta duas vantagens: preserva a autonomia do direito (afinal, o direito do Estado Democrático de Direito tem DNA e não admite “grau zero de sentido”) e evita o uso de argumentos teleológicos, de mera conveniência, que são alterados a cada nova situação, como biruta de aeroporto. Argumentos de princípio como os acima propostos têm o condão de tornar definitiva a interpretação, preservando a integridade e a coerência do direito. Esse é um direito que oferece respostas adequadas à Constituição.

No caso concreto, portanto, a constitucionalidade do novo art. 396 do CPP (Lei n° 11.719, de 20.06.08) só pode ser garantida por uma interpretação conforme ou por uma outra construção, a partir de uma nulidade parcial sem redução de texto.

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