Jurisprudência e crítica

Reflexões sobre a obrigação de transmitir a Voz do Brasil

Autor

  • Ericson Meister Scorsim

    é advogado doutor em Direito pela USP autor do livro “Televisão Digital e Comunicação Social: aspectos regulatórios” e mantém o site www.tvdigital.adv.br

16 de setembro de 2008, 12h18

“Mais que nunca se torna necessário reformular o problema da liberdade como uma dimensão do pensamento e da ação humana, e, em particular, o da liberdade política, cuja função primordial, em nossa época, consiste ‘em preservar a pluralidade’, sem a qual a liberdade não chega sequer a constituir um problema”[1]

I. Contorno do problema

O programa de rádio Voz do Brasil foi instituído à época da ditadura Vargas, precisamente pelo Decreto-lei 1.915/39.[2]

A única voz que se ouvia era a do chefe soberano, pois o Congresso Nacional encontrava-se fechado. Originariamente, chamava-se A Hora do Brasil.

Depois, a obrigatoriedade de retransmissão do programa oficial de notícias foi incorporada no Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117, de 27.08.62).

Com efeito, tal dever imposto às emissoras de rádio privadas está contido no artigo 38 da Lei 4.117/62:

“Art. 38 Nas concessões, permissões ou autorizações para explorar serviços de radiodifusão, serão observados, além de outros requisitos, os seguintes preceitos e cláusulas:

(…)

e) as empresas de radiodifusão, excluídas as de televisão, são obrigadas a retransmitir, diariamente, das 19 às 20 hs, exceto aos sábados, domingos e feriados, o programa oficial de informações dos Poderes da República, ficando reservados trinta minutos para divulgação do noticiário preparado pelas duas Casas do Congresso Nacional”.

Cumpre destacar que, em determinado período, a então Radiobrás resolveu flexibilizar a divulgação da Voz do Brasil, permitindo horários diferenciados para sua retransmissão, principalmente nos centros urbanos onde as pessoas se encontravam presas no trânsito. Igualmente, a prerrogativa foi estendida para a transmissão de jogos de futebol e festas religiosas.[3]

Entretanto, em razão de inúmeros abusos quanto à liberalização da transmissão em horários alternativos, o Senado Federal determinou que a Radiobrás mantivesse a Voz do Brasil no horário tradicional.

Ademais, o Congresso Nacional chegou a mobilizar-se em prol de uma emenda constitucional que validasse a exigência da Voz do Brasil. Felizmente, tal absurdo jurídico não foi aprovado.

Tal obrigação legal está sendo questionada na Justiça pelas emissoras de rádio que argumentam no sentido de sua não recepção pela Constituição de 1988.

A jurisprudência é controvertida quanto à interpretação do dever de retransmissão da Voz do Brasil, imposto pela Lei 4.117/62, à luz da Constituição de 1988.

A maioria das decisões é favorável à manutenção da retransmissão compulsória do programa Voz do Brasil.

Contudo, há decisões em favor da obrigatoriedade, com uma pequena diferença, algumas admitem a flexibilização no horário de retransmissão, facultando à emissora de horário escolher um horário alternativo, diferente das 19h às 20h.

A presente análise tem como foco a jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, observando os argumentos utilizados pelos julgadores e, eventualmente, apresentando críticas ao entendimento dominante quanto à aplicação do direito relativo à radiodifusão.

Com efeito, algumas decisões judiciais representam um grande avanço democrático na medida em que possibilitam a retransmissão da Voz do Brasil em horário diferente das 19h às 20h.

Mas, o presente trabalho pretende demonstrar que não é suficiente a flexibilização no horário de retransmissão do programa oficial de notícias. A melhor medida é a decretação da não recepção do artigo 38, letra e, da Lei 4.112/62, em face da Constituição de 1988.

Também, é objeto deste artigo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal. Destaque-se que estes tribunais, embora não tenham decidido o mérito propriamente da questão, possuem uma pré-compreensão a respeito do tema que merece o seu respectivo estudo, aqui feito ainda de modo superficial.

II. A solução oferecida pelos Tribunais Regionais Federais

a) Tribunal Regional Federal da 1ª Região

O TRF da 1º Região, em Brasília (DF), responsável pela jurisdição federal no Distrito Federal, Minas Gerais e Bahia, é favorável à manutenção do programa Voz do Brasil.

O referido tribunal entende que o dever legal imposto às emissoras de rádio representado pelo programa Voz do Brasil foi recepcionado pela Constituição Federal de 1998.

Assim, afirmou: “o referido dispositivo insere-se no contexto jurídico como instrumento que assegura a difusão de informações de interesse público, não restringindo, de modo algum, a liberdade de criação e de informação jornalística”.[4]

Além disso, o órgão jurisdicional analisou a questão do ângulo da isonomia entre as emissoras de rádio e televisão, vez que a obrigatoriedade recai apenas sobre os serviços de radiodifusão sonora.

Sobre este argumento o tribunal assim decidiu: “o fato de a obrigatoriedade recair apenas sobre as emissoras de rádio não fere o princípio da isonomia, uma vez que meios de comunicação diversos possuem contratos de concessão regidos por normas próprias”.[5]

Concluiu, também, que não há ofensa ao dispositivo constitucional que proíbe o monopólio ou oligopólio nos meios de comunicação da seguinte forma: “não há que se falar em violação ao parágrafo 5º do artigo 220, da CF, posto que o fato de existir a possibilidade de prestação de serviço público por ente privado, mediante concessão, em nada altera a natureza jurídica do serviço, que é público”.[6]

Ou seja, o TRF-1 entendeu que os argumentos constitucionais referentes à liberdade de informação jornalística, isonomia, proibição do monopólio e oligopólio nos meios de comunicação social, não são suficientes para afastar a obrigatoriedade da retransmissão da Voz do Brasil.

A seguir a análise sobre a jurisprudência do TRF-2, cuja sede é no Rio de Janeiro e a jurisdição recai sobre Rio de Janeiro e Espírito Santo.

b) Tribunal Regional Federal da 2ª Região

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região é favorável à manutenção do dever de retransmissão da Voz do Brasil no horário das 19h às 20h.

No acórdão de lavra do desembargador federal André Fortes, da 6ª Turma, do TRF-2, ficou consignado a exigência de transmissão da Voz do Brasil não é ofensiva à liberdade de expressão, “porquanto representa expressão da própria União, que age diretamente comunicando no exercício do monopólio constitucional”.[7] Além disso, a decisão dispôs que a “programação veiculada no referido programa, está em consonância com os princípios contidos no artigo 221 da Constituição da República Federativa do Brasil”.[8]

Em outro caso foi analisada a possibilidade de retransmissão da Voz do Brasil em horário alternativo, principalmente nos dias de jogos de futebol carioca e copa do Brasil.

Nesta decisão, a 6ª Turma do tribunal entendeu pela constitucionalidade da Lei 4.117/62, em razão da supremacia do interesse público sobre o interesse econômico da concessionária, sendo que a obrigação igualmente é imposta a todas as prestadoras de serviços de radiodifusão sonora.[9]

c) Tribunal Regional Federal da 3ª Região

A jurisprudência do TRF-3, sediado em São Paulo e com jurisdição em São Paulo e Mato Grosso do Sul, encontra-se dividida sobre a matéria. No entanto, em alguns julgados tem reconhecido a possibilidade de retransmissão em horários alternativos.

De um lado, a 3ª Turma entende pela obrigatoriedade integral de retransmissão da Voz do Brasil.

De outro lado, a 6ª Turma manifesta-se no sentido da flexibilização do horário de retransmissão do referido programa.

Primeiro, a reflexão recai sobre a manutenção do referido dever legal imposto às rádios.

Assim, a 3ª Turma decidiu que o regime de autorização, concessão ou permissão não é incompatível com a imposição de ônus e gravames, fundados no interesse público, concernente à divulgação de dados, informações e atividades dos poderes da República.

Segundo o acórdão ora trazido para análise:

“A outorga originária do direito de exploração de serviço público, sob condição, não permite, somente agora e tempos depois, considerar ofendido qualquer dos princípios relativos à liberdade de expressão, informação ou transmissão, no âmbito da comunicação social. Não se tem censura ideológica sobre conteúdo da programação, mas apenas reserva de tempo, previsto em lei, para a retransmissão oficial, de interesse público”.[10]


Quanto ao argumento do “monopólio radiofônico” em ofensa ao artigo 220, parágrafo 5º, da CF trazido para justificar o afastamento do dever legal, a decisão respondeu o seguinte:

“O monopólio radiofônico, que se poderia alegar com base no artigo 220, parágrafo 5º, da Carta Federal, limita a concentração do exercício da titularidade do direito de exploração, e não, por evidente, a prerrogativa da União de estabelecer regra geral de limitação, ou de imposição de gravame ou condição, a concessionários do respectivo serviço público”.[11]

Quanto ao argumento da proporcionalidade da medida legal, o acórdão expressou o seguinte: “Sequer cabe alegar que a retransmissão oficial em tal horário viola o princípio da proporcionalidade, pois assim deduzido o que se tem, como foco do recurso, é o prejuízo comercial que a concessionária estaria a sofrer em função da perda da audiência e de anunciantes no horário nobre …”.[12]

Ao final, a conclusão é no sentido de que o interesse econômico da concessionária em relação ao aproveitamento do horário comercial não pode prevalecer em face do interesse público, consagrado na legislação e na Constituição. Assim, é impossível a fixação por intermédio de decisão judicial, sem qualquer base legal, “a retransmissão em condições alternativas, seja de horário, seja de período, seja de conteúdo”.[13]

Também, a 4ª Turma manifestou-se pela obrigatoriedade de retransmissão do referido programa de rádio. Como argumento novo no acórdão de lavra do Juiz Fabio Pietro, foi invocado o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão.

Segundo ele:

“Trata-se de dispositivo recepcionado pela atual Constituição Federal. Nesta, o sistema de radiodifusão é regido pelo princípio da complementaridade, pelo qual os segmentos privado, público e estatal compartilham a responsabilidade pela execução do serviço, nos termos do artigo 223, ‘caput’. A disciplina da complementaridade prevista na Constituição Federal é privativa dos Poderes Legislativo e Executivo”.[14]

Em sentido contrário, a 6ª Turma tem garantido a retransmissão da Voz do Brasil em horários alternativos, diversamente dos acórdãos antes mencionados.

Em acórdão de lavra do relator juiz federal Lazarano Neto decidiu-se que:

“Ao restringir a um único horário a transmissão das notícias das atividades dos Poderes da República, o Estado não está respeitando a liberdade de opção do cidadão quanto às informações que deseja receber, na medida em que não lhe faculta a possibilidade de escutar outro programa de transmissão radiofônica. Assim, à segunda parte do artigo 38, alínea ‘e’ da referida lei, entendo não guardar conformidade com o preceito consagrado no artigo 5º, XIV, da Constituição Federal. Rejeitada a inconstitucionalidade, para deferir à apelante a possibilidade de retransmissão do programa em questão no horário alternativo melhor adequado as suas necessidades”.[15]

Outro acórdão também da 6ª Turma, no mesmo sentido, é de lavra da desembargadora federal Consuelo Yoshida, segundo a qual “a obrigatoriedade de retransmissão do programa a Voz do Brasil para as concessionárias de radiodifusão, não é incompatível com as disposições da atual Constituição, não ferindo a liberdade de informação da apelada, tem em vista não há qualquer interferência estatal no conteúdo da programação normal diariamente transmitida”.[16]

E prossegue o referido acórdão:

“É, contudo, incompatível com o novo texto constitucional a obrigatoriedade de retransmissão no horário fixado pela Lei 4.117/62, entre às 19h e 20h. Há uma grande diferença entre assegurar a todos o acesso ao direito às informações de utilidade pública veiculadas pelo programa Voz do Brasil e, de outro lado, induzir de certa forma a coletividade, pela falta de opção quanto à programação no horário, a assistir obrigatoriamente referido programa”.[17]

Vê-se que o entendimento pela flexibilidade no horário de retransmissão pauta-se, basicamente, no fundamento referente ao direito de opção dos cidadãos quanto às informações que quer receber.

d) Tribunal Regional Federal da 4ª Região

A jurisprudência dominante do TRF-4, sediado em Porto Alegre e com jurisdição sobre Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, consolidou-se no sentido de garantir a flexibilização quanto ao horário de retransmissão da Voz do Brasil.

Entende-se que as emissoras de rádio não podem se eximir de retransmitir a Voz do Brasil, em razão do disposto no artigo 21, II, a, da CF. Contudo, admite-se a possibilidade de retransmissão em horário alternativo, a partir da interpretação do artigo 220, parágrafo 1º, da CF que protege a liberdade de informação jornalística.[18]

Segundo outro acórdão da 2ª Seção é inafastável o dever de retransmissão por força do interesse público. Apesar disto admite-se o horário alternativo que não seja o compreendido entre as dezenove às vintes horas, das segundas às sextas-feiras.[19]

Em uma outra situação uma emissora de rádio catarinense pretendia transmitir as sessões do legislativo local. Contudo, o relator entendeu que: “… não há que se cogitar em sobrepor os interesses da administração local ao interesse nacional relativo à publicação da atividade dos Poderes da República. Cabível seria, portanto, a veiculação dos atos locais em horário diverso”.[20]

e) Tribunal Regional Federal da 5ª Região

O Tribunal Federal da 5º Região, com jurisdição sobre Alagoas, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Sergipe, adota uma postura em favor da manutenção integral da retransmissão da Voz do Brasil no horário das 19h às 20h.

Assim, no acórdão de lavra do desembargador federal Edílson Nobre da 3ª Turma sustentou-se a constitucionalidade do dever legal a partir do princípio da publicidade na administração pública (artigo 27, caput, parágrafo 1º, da CF). Ou seja, a liberdade de informação jornalística é suscetível de sofrer condicionamento pelo princípio da publicidade.[21]

Ademais, decidiu-se que a medida evita que o erário gaste recursos com a contratação de espaço jornalístico, vez que se trata de encargo do concessionário dos serviços de radiodifusão.

Em outro caso, foi requerida a autorização para a transmissão de partida de futebol, ao invés da Voz do Brasil.

Aqui, a 2ª Turma do Tribunal entendeu que não poderia prevalecer a transmissão de jogos de futebol sobre o interesse de exercício da cidadania. Ademais, afirmou-se:

“A Voz do Brasil tem por finalidade informar as ações adotadas pelos poderes da República, possibilitando maior efetividade de seu controle, em respeito ao princípio da publicidade dos atos públicos e em fomento ao exercício da cidadania, não se constituindo em violação à garantia de liberdade de expressão e de informação (artigo 220 da CF/88).[22]

f) Superior Tribunal de Justiça

O STJ não analisou o propriamente o mérito da questão caracterizada pelo dever legal de retransmissão obrigatória da Voz do Brasil no horário das 19h às 20h.

Em dois casos o órgão jurisdicional não conheceu do recurso especial por entender que se tratava de matéria eminentemente constitucional, sendo que sua competência incide sobre a ofensa à legislação infraconstitucional.[23]

De fato, ao que parece, a tendência é no sentido de o STJ não conhecer de eventuais recursos especiais contra os acórdãos proferidos pelos Tribunais Regionais Federais que tenham mantido o dever legal de retransmissão da Voz do Brasil no horário tradicional.

Isto porque a função básica do STJ é analisar a conformidade dos acórdãos em relação à legislação federal.

Ocorre que a questão analisada é constitucional. Não se trata de um problema de legalidade, mas sim de constitucionalidade do artigo 38, letra ‘e’ da Lei 4.117/62.

Com isso, a análise final dos acórdãos dos referidos tribunais acabará fatalmente no STF, para verificação da constitucionalidade da exigência da Lei 4.117/62 quanto à retransmissão obrigatória da Voz do Brasil.


g) Supremo Tribunal Federal

O STF não analisou ainda todos os argumentos constitucionais apresentados em defesa da não recepção do artigo 38, letra ‘e’ pela Constituição de 1988.

Contudo, um dos acórdãos anteriores citou a decisão do STF na ADI-MC 561-DF, rel. Celso de Mello, de 23.8.95, enquanto paradigma para demonstrar a recepção da Lei 4.117/62.

De fato, a referida decisão alegou que a referida lei foi rececpionada pela CF, especialmente foi mantido o conceito técnico-jurídico de telecomunicações.

Eis o que dispôs o acórdão:

“A noção conceitual de telecomunicações — não obstante os sensíveis progressos de ordem tecnológica registrados nesse setor constitucionalmente monopolizado pela União Federal — ainda subsiste com o mesmo perfil e idêntico conteúdo, abrangendo, em conseqüência, todos os processos, formas e sistemas que possibilitam a transmissão, emissão e recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons e informações de qualquer natureza. O conceito técnico-jurídico de serviços de telecomunicações não se alterou com o advento da nova ordem constitucional”.

Note-se que a decisão ateve-se basicamente ao conceito de telecomunicações, bem como à competência regulamentar do Presidente da República. Estas foram as questões centrais decididas pelo STF.

Destaco que o STF afirmou que há “reserva de estatalidade” imposta pela Constituição tão-somente aos serviços públicos de telecomunicações e não aos serviços de radiodifusão. Em tese de doutorado, defendi que tal “reserva de estatalidade” no campo da radiodifusão deve ser afastada justamente em razão do princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal.

No mencionado acórdão não houve a análise específica da constitucionalidade do artigo 38, letra ‘e’, da Lei 4.112/62 em face de diversos argumentos a seguir narrados.

Portanto, a constitucionalidade da Voz do Brasil é um tema a ser ainda enfrentado pelo STF.

III. Análise crítica dos argumentos da jurisprudência

A seguir serão vistos os motivos invocados pela jurisprudência que entende pela obrigatoriedade da veiculação do programa oficial Voz do Brasil, ainda que em horário alternativo.

A apresentação a seguir não segue necessariamente a ordem dos fundamentos colocados anteriormente, pois o objetivo é demonstrar que a Constituição não tolera a imposição da retransmissão da Voz do Brasil sobre as emissoras de rádio privadas, razão pela qual não foi recepcionado o artigo 38, letra ‘e’, da Lei 4.117/62.

Preliminarmente: o Estado Democrático de Direito

Como já referido, a obrigação de veiculação do programa oficial de rádio nasceu no contexto de uma ditadura, isto é, um regime em favor do poder autoritário e contrário às liberdades fundamentais.

Hoje, no Brasil vigora o Estado Democrático de Direito, cuja nota característica é o regime de direitos fundamentais.

Assim, todo e qualquer poder político deve estar submetido ao Direito.

Não é a vontade dos ocupantes do poder que deve prevalecer, mas sim a intenção normativa presente na Constituição de 1988. Afinal, o Brasil é uma República. Logo, os poderes constituídos devem respeito à vontade maior do texto constitucional e não ao interesse ocasional do legislador de 1962.

A democracia assenta-se em dois princípios fundamentais: a soberania popular e a participação política. Também, a democracia está baseada em dois valores fundamentais: a liberdade e a igualdade.

Ora, o adequado funcionamento da democracia exige como condição operacional um sistema de opinião pública informada e racional.

A esfera pública há de contar, portanto, com procedimentos que permitam a participação da ampla maioria da população, de modo a permitir a expressão da pluralidade de interesses públicos.

Com a Constituição de 1988 houve a constitucionalização do sistema de comunicação social com a atribuição de um status especial dos respectivos meios técnicos de comunicação e um regime específico aos direitos fundamentais afetados pela atividade, representando um importante um avanço histórico.

A “Constituição da Comunicação”[24] requer, portanto, uma disciplina jurídica dos meios de comunicação social, a fim de desenvolver a sua estruturação policêntrica, para permitir a sua dinamização de forma autônoma, comunicativa e concorrencial do sistema social, como também a proteção à sua transparência e adaptabilidade.

Ou seja, diante do novo contexto constitucional, é fundamental a releitura do dever de retransmissão do programa radiofônico oficial de notícias dos três poderes da República.

O ex-presidente da Radiobrás Eugênio Bucci manifestou-se a respeito da impropriedade da compulsoriedade da Voz do Brasil nos seguintes termos:

“A imposição legal que obriga todas as emissoras de rádio a retransmitir a voz do Brasil é uma anomalia jurídica e um absurdo político. Não há o que justifique, dentro da normalidade institucional, a necessidade de uma cadeia compulsória de sessenta minutos, diariamente, para os poderes da República se comunicarem com a população. Num regime democrático, a figura da rede nacional de rádio requisitada pelo Estado pode eventualmente ocorrer, sem dúvida, mas sempre como exceção. No Brasil, é rotina. Não há sentido nessa rotina.[25]

E, segundo, o referido autor: “O governo deve privilegiar uma comunicação que não dependa da obrigatoriedade, uma comunicação ancorada apenas na qualidade e não objetividade da informação …”.[26]

Partindo-se da premissa fundamental caracterizada pelo regime democrático é que a restrição legislativa representada pela imposição às rádios privadas de retransmitirem a Voz do Brasil deve ser interpretada.

Competência legislativa e seus limites

A CF estabelece a competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão os serviços de radiodifusão sonora (art. 21, XII, letra “a”).

A CF afirma a competência privativa da União em legislar sobre radiodifusão (art. 22, IV).

Trata-se de suas regras de competências estatais.

Evidentemente que existem limites para o exercício dessas competências.

Dentre os limites, estão os direitos e liberdades fundamentais.

Portanto, de um lado, tem-se a competência estatal para regular e prestar os serviços de radiodifusão. De outro lado, tem-se o limite a essa competência representado pela liberdade de radiodifusão.

Há, enfim, um conflito potencial entre o poder normativo do legislativo e a liberdade de radiodifusão.

É inegável o poder regulatório do Estado, desempenhado mediante a imposição de deveres e gravames para os particulares. Contudo, até que ponto tal poder é aceitável?

Qual é o limite dessa competência?

A reposta a essa questão será oferecida mais à frente.

A noção de serviço público e a radiodifusão

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência tradicional entendem que a radiodifusão é uma modalidade de serviço público.

Segundo a Lei 4.117/62, o serviço de radiodifusão é aquele “destinado a ser recebido direta e livremente pelo público em geral, compreendendo a sonora e televisão” (art. 6º, “d”).

Em sendo qualificado o serviço de rádio como serviço público, então a sua prestação por emissoras privadas somente é possível se elas possuírem uma concessão, permissão ou autorização.

Assim, o contrato de concessão, em regra, estabelece os direitos e os ônus entre as partes.

Note-se que tal contrato é atípico, pois a remuneração do concessionário não provém do poder público, mas sim das receitas do mercado publicitário.

Além disso, embora o serviço de rádio seja qualificado como serviço público, por óbvio, que isto não significa a ausência de limites para o Estado.

Nesse sentido, aqui o serviço público deve ser focado em uma concepção moderna e não mais na visão autoritária. Com efeito, o modelo tradicional vê o serviço público sob o ângulo exclusivo da titularidade estatal.

Atualmente, não é cabível a visão unilateral que privilegia somente o poder político. O serviço público deve ser visto como a atividade que serve justamente ao seu público, especificamente que realiza direitos fundamentais desse mesmo público. Afinal, ele é público, porque o público é seu destinatário e, conseqüência, também é seu titular. Esta nova roupagem é a mais compatível com a Constituição do Brasil de 1988 que implantou um novo ciclo histórico na sociedade e no ordenamento jurídico.

Vale dizer, muito embora o serviço de rádio seja qualificado com uma modalidade de serviço público isto não representa a ausência de direitos da parte da concessionária e limites ao poder concedente. Aqui, defende-se a prevalência da liberdade empresarial da concessionária em escolher retransmitir ou não a Voz do Brasil, ao invés da imposição autoritária.

A seguir a reflexão recairá sobre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão.


Princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal

A CF consagrou, de modo originário, o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal (art. 223).

Eis o que ela dispõe:

“Art. 223. Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar, concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.

Infelizmente, até o momento, a legislação não prestigiou dignamente o referido princípio constitucional. Igualmente, a doutrina não se debruçou sobre o preceito para oferecer luzes para a sua adequada interpretação.[27]

Aproveita-se, então, a oportunidade proporcionada por essa lacuna no campo do direito para se lançar alguns pontos de reflexão sobre seu alcance e sentido.

A Constituição impõe a complementaridade entre os setores de radiodifusão privado, público e estatal, o que, evidentemente, implica harmonia e colaboração entre as estruturas de comunicação social.

Em outras palavras, garante-se o equilíbrio apropriado entre os campos de comunicação social com funções diferenciadas, porém, complementares, haja vista as diferenças de fundamentos, evitando-se, assim, distorções arbitrárias no processo de comunicação social.

Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos sonoros para a sociedade brasileira.

Vale dizer, a interpretação da referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo audiovisual diverso).

Assim deve ser porque tal norma tem por função a oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privado, público e estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para cumprir tal tarefa, que logo a seguir serão expostos.

A organização dos sistemas de radiodifusão há de ser feita pelo Estado, no exercício de sua função regulatória (art. 174), conforme os objetivos da regulação. Há, aqui, uma forte conexão entre o princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão e o conceito de regulação. A idéia de complementaridade representa a negação de uma relação de hierarquia entre os sistemas de radiodifusão; e, por conseqüência, requer a funcionalidade integrada dentro do sistema de comunicação social.

Enfim, o referido princípio da complementaridade dos sistemas de radiodifusão privado, público e estatal é uma garantia da existência das seguintes estruturas:

emissoras de rádio privadas – aquelas organizações sob a forma mercantil que, baseadas em sua liberdade de radiodifusão, exploram o serviço de rádio e buscam em contrapartida o lucro;

emissoras de rádio públicas – aquelas organizações sob a forma de organização civis que prestam o serviço de rádio, de modo a realizar, por exemplo, os direitos fundamentais à informação, à educação e à cultura;

emissoras de rádio estatais – aquelas entidades estatais, vinculadas à administração pública, que prestam o serviço de rádio, de modo a cumprir com seu dever de realização da comunicação institucional, para a divulgação dos atos e fatos relacionados aos três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), e que são custeadas com o orçamento estatal;

Tais estruturas de comunicação possuem, como visto, fundamentos e finalidades diversas.

O núcleo da problemática reside em saber a legitimidade da imposição às emissoras de rádio privadas de uma obrigação que é propriamente do poder público.

Por que a União, se pretende divulgar as ações dos três poderes republicanos não se vale de suas estruturas comunicativas? Por que a própria União não cria meios de comunicação adequados ao atendimento dessa finalidade?

Se o Estado tem interesse em divulgar informações institucionais sobre atos e (ou) fatos de interesse público (ref. Executivo, Legislativo e Judiciário), então, ele deve estabelecer canais de comunicação com a população, sem impor tais deveres às rádios privadas, quer criando estações de rádio, quer promovendo a comunicação institucional junto à sociedade.

Qual (is) interesse (s) público (s) em jogo?

A dogmática de direito administrativo convive com o princípio da supremacia do interesse público. Freqüentemente, ele é invocado, seja pela doutrina, seja pelo judiciário, para justificar atos de restrição a direitos.

Ocorre que tal princípio deve sofrer uma releitura, afinal, vive-se em um Estado Democrático de Direito. Não é mais admissível uma leitura sob a ótica de um único interesse público envolvido.

Ao contrário, em uma sociedade plural como a brasileira nada mais razoável e legítimo do que a consideração dos múltiplos interesses em jogo.

O interesse público não se confunde com o interesse do Estado.

Como já referido, se o interesse da União é veicular o programa Voz do Brasil então deve fazê-lo, mediante a utilização de seus canais de comunicação.

Existem outros interesses que devem ser cotejados em face do interesse federal.

Primeiro, o interesse econômico das emissoras de rádio em utilizar parte do horário nobre de sua programação para a veiculação de publicidade comercial.

O Brasil, na CF de 1988, optou pelo sistema capitalista. Portanto, nada mais legítimo e razoável que as empresas de rádio busquem cobrir seus custos e recuperar seus investimentos pelo uso remunerado desse espaço valioso.

Segundo, o interesse dos cidadãos. Nas grandes cidades um dos piores problemas enfrentados no horário das 19 às 20 hs é o congestionamento no trânsito. Se pudesse optar o que será que o cidadão gostaria de ouvir: a Voz do Brasil ou informações sobre o trânsito?

Ou talvez o cidadão queira apenas se entreter durante esse período.

Por que então privá-lo de momentos de prazer ouvindo músicas?

Ou da possibilidade de contar com outros programas de notícias.

Terceiro, o interesse dos jornalistas em apresentar informações de relevante interesse público.

Ora, retirar uma hora em horário nobre da rádio é privar os jornalistas do seu trabalho. O dia-a-dia do profissional é coletar e divulgar informações para o público. Esta hora é por demais valiosa porque é a oportunidade que as pessoas têm de ouvir o rádio, após o expediente.

Liberdades fundamentais

A Constituição surge como uma arma de combate ao arbítrio estatal. É uma Carta protetora das liberdades.

Uma rápida leitura do seu primeiro capítulo revela um catálogo extenso de direitos e garantias fundamentais. Dentre esses direitos fundamentais encontra-se a proteção à liberdade em seus mais diversos âmbitos. Para os fins da presente reflexão, destaca-se a liberdade de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX).

Em outro lugar, a CF, de modo inovador, estabelece um capítulo próprio para a Comunicação Social, onde ela assegura, de modo amplo e generoso, a proteção à liberdade no sistema de comunicação social da seguinte forma:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

Ou seja, há a proteção plena à manifestação e comunicação do pensamento, sob qualquer forma ou veículo de comunicação social. Esta liberdade serve não somente à pessoa que expressa suas idéias, opiniões e sentimentos. Também, o público destinatário da comunicação tem interesse em conhecer os pensamentos das demais pessoas.

Proíbe-se, categoricamente, que a lei “possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social”, observados determinados direitos fundamentais.

Em outras palavras, o legislador está proibido de causar embaraços à plena liberdade de informação jornalística.

A única hipótese de autorização constitucional para a restrição à liberdade jornalística é quando se trata de proteção a outros direitos fundamentais, como é o caso do exercício da própria livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), o direito de resposta quando atacada a honra ou imagem de alguém (art. 5º, V), o direito à intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X), a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, XIII) e a garantia a todos do acesso à informação, preservado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional (art. 5º, XIV).

Mas, não só!

Existem outras liberdades fundamentais gravemente atingidas pela imposição estatal.

Uma das vigas mestras do sistema econômico é a liberdade de empresa. Esta até pode ser condicionada pela lei, desde que evidentemente seja preservado seu núcleo essencial.


É certo que a entrada e a saída no setor de radiodifusão dependem de atos estatais.

No caso, a emissora de rádio para entrar no setor de radiodifusão teve que fazer pesados investimento, na compra de equipamentos e contratação de pessoal. Ressalte-se que seu faturamento depende, praticamente, de receitas publicitárias.

Por outro lado, embora a concessionária de serviço público de radiodifusão esteja submetida a um regime jurídico especial, isto não significa a ausência de limites para a imposição de gravames pelo poder concedente.

É que a estação de rádio é uma empresa de radiodifusão. Ela está amparada pela liberdade de radiodifusão, isto é, a liberdade de comunicar com seu público, valendo-se do uso de freqüências do espectro eletromagnético, um bem público naturalmente escasso.

A autonomia constitucional da liberdade de radiodifusão é definida a partir das liberdades de expressão e de comunicação social, sendo um dos alicerces da sociedade democrática aberta, mediante a garantia da difusão plural do poder e de uma esfera da livre iniciativa individual e coletiva como fator dinâmico dos vários sistemas de ação social[28].

A subjetivização da liberdade de radiodifusão representa uma das principais garantias de uma estrutura policêntrica dos meios de comunicação, ainda que os indivíduos não possam exercer diretamente a atividade de televisão. Quer dizer, ainda que seja reconhecido o direito fundamental à radiodifusão, mas cujo exercício encontra-se condicionado à esfera legal, isto não é fator que reduz a estrutura plural de comunicação[29].

Aqueles que negam a dimensão jurídico-subjetiva da liberdade de radiodifusão defendem a adoção de um modelo de pluralismo organizado pelo estado ou outro modelo caracterizado pela coletivização quase estatal do seu exercício[30].

A liberdade de radiodifusão constitui-se em direito fundamental. Sua dimensão negativa ou defensiva da liberdade revela-se em face de ingerências estatais, garantindo-se a sua independência em face do poder político. A finalidade é a de garantir a abertura publicística e econômica das estruturas de comunicação no âmbito da comunidade política[31]. Originariamente, tal dimensão exprime, portanto, a ausência de constrangimentos ou coerções indevidos por parte do poder público, mas hoje alcança também os poderes econômico e social.

Por outro lado, a dimensão positiva da liberdade de radiodifusão exige a devida conformação e concretização legislativa. Com isso, é preciso que ocorra a configuração material da atividade de radiodifusão, mediante o estabelecimento do complexo de normas materiais, organizatórias e procedimentais que estruturarão o serviço público de televisão[32].

A importância do sistema de radiodifusão para a garantia do processo de formação livre da opinião pública, foi assim retratada por Konrad Hesse:

“… no essencial, rádio e televisão – radiodifusão continuaram desenvolvendo para uma garantia jurídico-fundamental geral da liberdade de radiodifusão. Dela resulta, para rádio e televisão, a necessidade de providências especiais para a garantia do processo de formação de opinião ampla. Trata-se de proteger esses meios especialmente significativos da dominação e do exercício de influência estatal, de impedir o nascimento de poder de opinião predominante, assim como, de assegurar que na oferta do programa a multiplicidade das direções de opinião existentes encontre expressão em amplitude e integridade máxima possível e que, deste modo, seja oferecida informação ampla”.[33]

A restrição legislativa exclui do âmbito da liberdade de radiodifusão uma hora diária, sete horas semanais e, em média 28 (vinte e oito horas) mensais.

Evidentemente, com a apontada imposição a empresa de comunicação deixa de obter o faturamento necessário para o custeio de suas despesas, especialmente por se tratar de horário nobre.

O Brasil adotou o modelo capitalista. Portanto, deve-se deixar a questão ideológica de lado e aceitar os fatos e o direito.

É preciso reconhecer que o Direito protege a liberdade de iniciativa, aliás, ela é reconhecida como fundamento da ordem econômica.

Um dos fundamentos utilizados pela jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais antes analisados consiste na concorrência, isto é, não seria possível liberalizar a veiculação da Voz do Brasil para uma determinada emissora porque isto implicaria em prejuízos à concorrência.

Ora, o argumento implica em uma inversão dos valores.

O problema é justamente a proibição geral de utilização do tempo de uma hora diária de todas as rádios brasileiras no período das 19h às 20h.

Por óbvio, que a medida nega a concorrência.

Assim o fazendo o ato acaba violando um dos princípios gerais da atividade econômica que consiste na livre concorrência (art. 170, V, CF).

Poder-se-ia argumentar que a garantia da livre concorrência é inaplicável ao caso porque se trata de serviço público. Ora, como se sabe, conforme definição majoritária no meio jurídico, o serviço público é uma espécie de atividade econômica em sentido amplo. A diferença básica entre o serviço público e a atividade econômica em sentido estrito reside no regime jurídico, definido na Constituição.

Antigamente, não era possível aplicar o regime da concorrência sobre os serviços públicos. Atualmente, principalmente com a evolução tecnológica, já se admite o regime da concorrência em relação aos serviços públicos. Por exemplo, o setor de telecomunicações em que diversas empresas prestam os serviços de telefonia fixa e móvel em regime de competição. Outro exemplo é o setor de energia elétrica, fragmentado em diversas atividades como: geração, distribuição e transmissão, em que atuam diversas empresas.

O regime autoritário caracterizado pela imposição forçada da transmissão da Voz do Brasil deve ser substituído pelo regime da liberdade da radiodifusão.

Vedação à censura

A CF veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Censurar é impor o controle sobre conteúdo de um determinado veículo de comunicação ou determinadas pessoas. É restringir a capacidade de expressão de alguém, eis que seu exercício causa incômodo ao poder.

As razões que motivam o censor são de ordem política, ideológica e artística.

A censura representa um mal que deve ser combatido fortemente em um Estado Democrático de Direito, eis que ela exprime a violência sobre a consciência e, no passado, inclusive sobre o corpo das pessoas.

Ora, a supressão de uma hora da programação das emissoras de rádio em horário nobre, para fins de veiculação da Voz do Brasil, está muito próxima da censura. Trata-se de uma coação, ainda que amparada em lei, sobre a liberdade de radiodifusão.

A questão é saber se tal restrição legislativa, editada no ano de 1962, encontra amparo na Constituição do Brasil vigente.

Entendo que, ainda que a exigência legal não represente uma verdadeira censura (embora esteja muito próxima dela), o dever de retransmissão do programa Voz do Brasil não foi recepcionado pela CF.

Adiante outras razões para demonstrar o descabimento da referida exigência.

Restrições autorizadas pela Constituição Federal à Liberdade de Radiodifusão

Como já referido, a Constituição garante a plenitude da liberdade de informação jornalística. No próprio capítulo dedicado à Comunicação Social, a Carta Magna aponta os eventuais limites para a disciplina da liberdade jornalística.

Resta investigar se, em outros lugares, a Constituição Federal impõe limites para a restrição à liberdade jornalística no campo da radiodifusão.

Assim, ao analisarmos o capítulo destinado ao regramento dos partidos políticos, descobrimos que há a previsão do direito ao acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei (art. 17, §3º).

A lei, em execução à CF, impõe o horário eleitoral gratuito para as emissoras de rádio e de televisão.

Outra exceção à regra de intensa proteção à liberdade, é a hipótese da vigência de estado de sítio. Nesse caso, a CF autoriza a adoção de restrições relativas à prestação de informações, à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei (art. 139, III).

Uma leitura em sentido contrário permite concluir que, em pleno vigor do Estado Democrático de Direito, não tem cabimento impor restrições à liberdade de radiodifusão não autorizadas pelo texto constitucional.

Princípio da publicidade

Um fundamento invocado em um dos acórdãos acima citados consiste na limitação da liberdade de informação jornalística em razão do princípio da publicidade dos atos da administração pública.

De fato, um dos deveres fundamentais da administração pública é divulgar atos e fatos de interesse público para que a coletividade possa fiscalizar seu trabalho.


Contudo, cuida lembrar que o dever é imposto à administração pública.

Logo, é ela que tem a responsabilidade quanto à escolha dos veículos de comunicação para divulgar “atos, programas, obras, serviços e campanhas”, de “caráter educativo, informativo ou de orientação social”.

O legislador não pode valer-se das rádios privadas para o cumprimento de um dever que é imposto à administração pública.

Se o interesse é da administração pública então o legislador deve assegurar-lhe meios de comunicação adequados para o cumprimento do princípio da publicidade.

Ademais, o programa Voz do Brasil, além de divulgar notícias do Poder Executivo, tem como função a prestação de informações sobre os Poderes Legislativo e Judiciário.

Ora, a comunicação institucional dos poderes republicanos é legítima e necessária em um Estado Democrático.

Acontece que para ser legítima ela não pode ser imposta de Brasília para todas as cidades brasileiras.

Assim, se há para os três poderes da República o dever de realizar comunicação institucional então se faz necessário que eles utilizem os canais de comunicação estatais e não privados.

Diz-se, também, que o programa serve à transparência e ao controle da administração pública. Concorda-se quanto à transparência das atividades do poder público.

Mas, parece duvidoso afirmar que alguém com base nas notícias da Voz do Brasil irá controlar os atos da administração pública. Dificilmente isto acontecerá, salvo alguns casos isolados.

Pluralismo

A jurisprudência não analisou a controvérsia sob o ângulo do princípio do pluralismo.

Assim, a tarefa é expor os efeitos do referido princípio sobre o regime da Voz do Brasil.

A idéia de pluralidade está presente na Constituição.

Primeiro, em seu Preâmbulo quando a Carta Magna refere-se à sociedade pluralista.

Segundo, quando a CF estabelece como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito o pluralismo político.

Terceiro, na medida em que a Constituição prevê uma pluralidade de direitos e garantias fundamentais.

Quarto, quando ela veda a censura de natureza política, ideológica e artística revela um modo de garantir a pluralidade de idéias e opiniões, evitando-se um padrão único de expressão.

Quinto, na parte que trata da cultura e garante o acesso às suas respectivas fontes com a valorização e a difusão das manifestações culturais.

Sexto, especificamente na Comunicação Social no que pertine à proibição da configuração de monopólio e (ou) oligopólio.

A pluralidade está conexa à liberdade.Não há liberdade sem pluralidade. Não há pluralidade sem a garantia do exercício da liberdade.

Entendo que há um verdadeiro princípio jurídico da pluralidade, ainda que não formulado de modo expresso pela Constituição, muito menos desenvolvido pela doutrina.

O direito é plural, aliás, esta é sua natureza. Se não o fosse então não seria compatível com a sociedade pluralista.

Como já dito acima, o princípio do pluralismo tem que ser observado nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdos diversos).

O pluralismo é o princípio fundamental do sistema de comunicação social. Sua função é a de organizar o exercício da liberdade de comunicação social dos diversos atores sociais de modo harmônico, a fim de possibilitar a realização da dimensão subjetiva (personalidade) e da dimensão objetiva (institucional).

É da essência do pluralismo a percepção da multiplicidade das expressões individuais e coletivas existentes nos diversos âmbitos geográficos. Trata-se de fundamento e de limite dos poderes de intervenção estatal reguladora em cada um dos referidos planos. E, ainda, de uma exigência constitucional de estruturação do sistema de comunicação social de modo a permitir as comunicações entre os diversos níveis da sociedade brasileira.

Segundo Jonatas Machado, a raiz do princípio do princípio do pluralismo decorre do princípio democrático, manifestando-se não só no sistema político (enquanto garantia de expressão das diversas ideologias políticas da sociedade plural), mas em todos os subsistemas sociais. Tanto a pluralidade de vozes quanto a pluralidade de fontes de informação constituem as premissas regulatórias fundamentais.[34]

Na prática, a imposição autoritária da veiculação do programa Voz do Brasil implica no fato de que no horário das 19 às 20hs, de segunda a sexta-feira, todas as emissoras de rádio transmitam somente notícias de interesse oficial.

Com isto, impede-se a expressão de outras vozes, seja dos radialistas, seja dos cidadãos ou seja dos jornalistas.

Como pode um Estado que se intitula Estado Democrático de Direito impor sua vontade sobre a sociedade? Como este Estado pode silenciar a expressão das vozes plurais da sociedade?

Algo está errado.

Ao invés do regime da liberdade, tem-se um estatuto da opressão, ainda que legitimada pela lei, porém não pelo Direito.

Como se percebe, o princípio do pluralismo é um fundamento forte para a demonstração da não recepção da norma da Lei 4.117/62 que impõe a obrigatoriedade de retransmissão da Voz do Brasil.

Isonomia

As emissoras de rádio estão sujeitas à obrigatoriedade de veicular o programa Voz do Brasil, enquanto as de televisão estão desobrigadas, conforme a disposição legal.

Ora, a razão baseada no interesse público que justifica o dever para as rádios justifica, a meu ver, também para as televisões.

Se o programa de notícias dos três poderes republicanos é relevante para o interesse público, portanto deveria alcançar os dois tipos de serviços de radiodifusão: o rádio e a televisão.

Por que o ônus recaiu somente sobre o setor de rádio?

Não há justificação para tal discriminação.

A CF não faz a discriminação entre os serviços de radiodifusão sonora e o de sons e imagens.

Assim, o legislador não poderia ter feito tal discriminação injusta sem a adoção de um critério razoável.

Mais um motivo para o afastamento da obrigatoriedade do programa oficial.

Legalidade

Um dos argumentos utilizados em defesa da veiculação obrigatória foi no sentido de que o Judiciário não pode afastar a aplicação da lei.

Ora, como devido respeito, tal argumento não acompanha a evolução do Direito.

Atualmente, é inconcebível olhar uma lei sem a devida consideração da Constituição.

É inafastável a adoção de um filtro constitucional sobre as leis anteriores à CF de 1988.

O ato normativo em análise (Lei 4.117/62) é fruto de um determinado contexto histórico. Sua origem e sua fundamentação são derivadas de uma conjuntura específica do país.

Ora, com o advento da CF, originária de um outro momento baseado na redemocratização do Brasil, é fundamental a releitura das leis que lhe são anteriores, para verificar sua compatibilidade com o texto constitucional.

Nada mais natural do que o controle concreto da constitucionalidade das leis a ser desempenhado adequadamente pelo Judiciário.

IV. CONCLUSÕES

A exigência de retransmissão obrigatória nasceu em um contexto histórico do então denominado Estado autoritário preocupado com o controle das informações passadas para o grande público.

No contexto atual, não é o caso de apenas relativizar o horário de retransmissão da Voz do Brasil.

Defendo, simplesmente, a abolição da obrigatoriedade da retransmissão em relação às rádios comerciais, a partir da leitura da própria Constituição do Brasil de 1998. Ou seja, ao invés de prevalecer a autoritária Voz do Brasil, deve-se garantir a plenitude da normatividade da Constituição, especialmente os direitos fundamentais à liberdade de radiodifusão e da livre recepção de informações por parte dos ouvintes.

Em pleno século XXI, em uma sociedade plural e multimídia, não mais tem cabimento exigir das emissoras privadas a retransmissão obrigatória da Voz do Brasil, produzida por órgãos de comunicação oficiais, em horário de nobre audiência. A obrigatoriedade configura atentado à liberdade de radiodifusão das rádios comerciais e ao direito à informação dos cidadãos.

A população brasileira não deve ser obrigada no horário das 19hs às 20hs a contar com uma única programação radiofônica no País. Isto é inconcebível em um moderno Estado Democrático de Direito como é o caso do Brasil.

O afastamento do regime de obrigatoriedade da Voz do Brasil, com a sua substituição pelo regime de liberdade, fará bem ao próprio programa oficial.

A sua legitimidade será ampliada na medida em que os cidadãos a perceberão não como a única alternativa arbitrária, mas como uma outra fonte de notícias, entre as diversas Vozes do Brasil.


[1] Cf. Pluralismo e liberdade. São Paulo: Editora Expressão e Cultura, 2ª edição, Revista, Prefácio à 1ª edição, 1998.

[2] Cf. MARTINS, Ives Gandra. Inconstitucionalidade de ato normativo da Radiobrás que impõe o horário obrigatório da “Voz do Brasil” com base em lei revogada pela Constituição de 1988 – Admissibilidade da Ação Direta de Inconstitucionalidade. Parecer publicado na Revista dos Tribunais, v. 744/92, out. 1997.

[3] Cf. Martins. Ives Gandra.

[4] Acórdão em Apelação Cível n. 2000.33.00.008707-8/BA, Rel. Desembargador Federal Daniel Paes Ribeiro, Sexta Turma, Publicação 18/06/2007.

[5] Cf. Acórdão em Apelação Cível n. 2000.38.00.008341-2/MG, Rel. Des. Fed. Selene Maria de Almeida, Publicação 28/09/2006.


[6] Cf. Acórdão em Apelação Cível n. 2000.38.00.008341-2/MG, Rel. Des. Fed. Selene Maria de Almeida, Publicação 28/09/2006.

[7] TRF/2ª Região. Sexta Turma. Apelação Cível n. 2001.51.01.019170-9, publicação em 15/9/2005.

[8] TRF/2ª Região. Sexta Turma. Apelação Cível n. 2001.51.01.019170-9, publicação em 15/9/2005.

[9] TRF/2ª Região. Sexta Turma. Agravo de instrumento n. 2008.02.01.003614-9, Rel. Des. Fed. Benedito Gonçalves. Publicação em 18.6.2008.

[10] TRF/3. Terceira Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 2006.61.05.000406-5. Rel. Des. Fed. Carlos Muta, publicação 15.07.2008.

[11] TRF/3. Terceira Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 2006.61.05.000406-5. Rel. Des. Fed. Carlos Muta, publicação 15.07.2008.

[12] TRF/3. Terceira Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 2006.61.05.000406-5. Rel. Des. Fed. Carlos Muta, publicação 15.07.2008.

[13] TRF/3. Terceira Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 2006.61.05.000406-5. Rel. Des. Fed. Carlos Muta, publicação 15.07.2008.

[14] TRF/3º. Quarta Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 2001.61.09.001678-0. Rel. Juiz Federal Fabio Pietro. Publicação 20.09.06.

[15] TRF/3ª. Sexta Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 1999.03.99.034523-8, Rel. Juiz Federal Lazarano Neto, Publicação em 25.02.88.

[16] TRF/3ª. Sexta Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 1999.61.05.008822-9, Rel. Des. Fed. Consuelo Yoshida, publicação 12.11.2007.

[17] [17] TRF/3ª. Sexta Turma. Acórdão em Apelação Cível n. 1999.61.05.008822-9, Rel. Des. Fed. Consuelo Yoshida, publicação 12.11.2007.

[18] TRF/4ª Região. Terceira Turma. Rel. Des. Fed. Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz. Publicação 09/08/2006.

[19] TRF/4ª Região. 2ª Seção. Embargos Infringentes em AC n. 2006.72.04.000299-5/SC. Des. Fed. Rel. Valdemar Capelleti. Julgamento em 08.05.2008.

[20] TRF/4º. Quarta Turma. Agravo de Instrumento n. 2007.04.00.004248-7/SC. Rel. Juiz Márcio Rocha. Julgamento 11.04.2007.

[21] TRF/5ª Região. Terceira Turma. Apelação Cível n. 2000.80.00.003265-1, Rel. Des. Fed. Edílson Nobre, julgamento 13/11/2003.

[22] TRF5ª. Segunda Turma. Agravo de Instrumento n. 2006.05.00.047427-0, Rel. Desm. Napoleão Maia Filho, julgamento 12/12/2006.

[23] STJ. Primeira Turma. AgRg no Resp 970576/PR, Rel. Min. José Delgado, publicação em 20.11.2007, e Segunda Turma. RESP 969125-RS, Rel. Min. Castro Meira, dj. 08.10.2007.

[24] O termo “Constituição da Comunicação” é empregado por José Joaquim Gomes Canotilho e Jónatas Machado em um interessante livreto intitulado Reality shows e liberdade de programação. Coimbra Editora, p. 70. Apesar de os autores não explicarem o sentido da expressão “Constituição da Comunicação”, quer parecer que ela significa a parte da Constituição que contém regras e princípios aplicáveis ao setor da comunicação social.

[25] Em Brasília 19 horas. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2008, p. 168.

[26] Obra citada, p. 168.

[27] Em tese de doutorado defendida junto à Faculdade de Direito da USP o autor do presente artigo procurou apontar os contornos para a aplicação concreta do princípio constitucional da complementaridade dos sistemas de radiodifusão.

[28] Cf. MACHADO, Jónatas. Liberdade de expressão: dimensões constitucionais da esfera pública no sistema social, Coimbra Editora, p. 613.

[29] Cf. MACHADO, Jónatas, p. 615.

[30] MACHADO, Jónatas, p. 616.

[31] MACHADO, Jónatas, p. 623.

[32] MACHADO, Jónatas, p. 624.

[33] Cf. Elementos de direito constitucional da República federal da Alemanha. 20ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998.

[34] Cf. Liberdade de expressão …, p. 367.

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