Gravidez de risco

Nova audiência pública no STF discute aborto de anencéfalos

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16 de setembro de 2008, 12h57

O auditório do Supremo Tribunal Federal recebeu, na manhã desta terça-feira (16/9), médicos e representantes de entidades contrárias e favoráveis à manutenção da gravidez de fetos com anencefalia (sem cérebro).

O encontro foi aberto pela ginecologista e obstetra Elizabeth Kipman Cerqueira. Ela lembrou que diversos especialistas que se apresentaram na audiência afirmaram que dentro do útero não é possível determinar a morte encefálica. “Quem afirma isso está passando por cima de critérios científicos”, registrou.

A obstetra fez referência a pesquisas norte-americanas sobre o tema e destacou que os anencéfalos não podem ter sua morte encefálica determinada, muito menos quando está dentro do útero. Por esse motivo, a sociedade americana de medicina suspendeu a autorização para retirada de órgãos de bebês sem cérebro.

Elizabeth disse que com 14 semanas de vida é possível identificar um caso de anencefalia, mas sublinhou que somente com 24 semanas é que fica claro o desenvolvimento do problema, porque é nesse período que o tecido nervoso continua se desenvolvendo mesmo num feto anencefálico. “O feto é vivo. Seriamente comprometido quando nasce, com curtíssimo tempo de vida, mas está vivo”, defendeu.

Sobre riscos para a mulher, a ginecologista disse que mais perigosa é a antecipação do parto dos bebês sem cérebro. Ela sustenta que a antecipação do parto é um trabalho prolongado de três a onze dias de internação e que pode causar ruptura interina e infecção. Conforme a médica, no caso de manter a gravidez, os problemas são 100% resolvidos, enquanto nas complicações da antecipação do parto as seqüelas são permanentes para a vida da mulher.

Elizabeth Cerqueira fez menção ainda à carga emocional dessa experiência, que não pode ser ignorada, e que é terrível para a mãe saber que tem um bebê anencefálico. No entanto, registrou que a consciência de ter sido ela a responsável por abreviar o tempo de vida do filho aumentará o sentimento de culpa.

Ao final, apresentou um vídeo com depoimentos de duas mulheres com gravidez de bebês sem cérebro. No relato da primeira paciente, que fez a antecipação do parto, a mulher disse acreditar que não fez a melhor escolha. No relato seguinte, de uma mulher que levou a gravidez de uma criança anencéfala até o final, se disse satisfeita com sua opção.

“É mais possível que uma mãe que faça aborto sinta remorso e arrependimento, mas a mãe que leva a gravidez até o fim, ou até a morte espontânea, não vai ter remorso de ter feito o que pôde enquanto pôde“, finalizou Elizabeth Cerqueira.

Mais sofrimento

A socióloga Eleonora Menecucci de Oliveira, professora titular do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo, defendeu que a retirada feto sem cérebro deve ser uma escolha dos pais.

Segundo ela, a legislação brasileira impõe à gestante – já fragilizada pelo diagnóstico médico – um segundo sofrimento: o de ter de correr pelas instâncias judiciais em busca de autorização para interromper a gravidez e, muitas vezes, não a conseguir. “O que esperamos do tribunal é que poupe a mulher de um processo tão desgastante, que se soma ao sofrimento do diagnóstico”, afirmou.

Eleonora citou o caso de uma jovem peruana que, diante da negativa do Estado em concedê-la o direito de abortar um feto anencéfalo, recorreu à Organização das Nações Unidas em 2005. A resposta do Comitê de Direitos Humanos reconheceu o direito de opção da mãe. “O Comitê considerou que a impossibilidade de interromper [a gravidez] gerou sofrimento excessivo à jovem”, disse.

Em 1996, o comitê já havia considerado como “desumana” a tipificação do aborto de anencéfalos como crime. Na opinião da socióloga, a mulher é quem mais conhece o seu corpo e saberá como lidar com os efeitos psicológicos da gestação. Para Eleonora, a obrigação da medicina é informar em detalhes sobre a vida do filho e sobre os riscos que a mãe corre. A partir daí, a escolha seria pessoal. “Manter obrigatoriamente a gestação expõe a mãe a um processo de tortura, sofrimento e medo. A obrigatoriedade é uma situação limítrofe de vulnerabilidade que a atual legislação impõe a ela”, criticou.

A socióloga lembrou que nem todas as mulheres optam pela interrupção, mas que as que optarem por ela deveriam ter esse direito garantido, assim como hoje as mães que dão prosseguimento à gravidez encontram respaldo na lei. “Não é possível a lei garantir os direitos de só uma parte das mulheres. O que nós queremos é o direito da escolha. Se quiser, a mulher aborta, se não quiser, leva a gravidez até o fim”, resumiu.

Eleonora Menecucci, que coordena o serviço de atendimento a mulheres violentadas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reforçou que o Sistema Único de Saúde tem condições de garantir um bom atendimento Às mães que optarem pela antecipação do parto. “A dificuldade maior que inviabiliza a integralidade dessa assistência é o limite da lei, que impede que a mulher decida o que fazer”, defendeu ela.

Mulher em evidência

A ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéia Freire, que também preside Conselho Nacional de Direitos da Mulher, defendeu que a mãe deve dar a última palavra sobre a antecipação do parto de crianças anencéfalas.

A ministra disse ter uma percepção clara de que muitos discursos apresentados na audiência trouxeram um preconceito, como se as mulheres não tivessem a capacidade de tomar decisões sobre seu corpo e sua vida. Ela defendeu que as mulheres não necessitam de tutela do Estado ou de instituições de natureza religiosa ou instituição médica, mas de informação e apoio para tomarem suas decisões.

No caso de o STF decidir pela possibilidade de escolha da mulher ter ou não o bebê sem cérebro, a ministra manifestou sua defesa pela ampliação dos serviços do Sistema Único de Saúde para que as mulheres mais pobres também tenham acesso aos procedimentos.

Nilcéia Freire lembrou que a América Latina e o Brasil já se comprometeram em tratados internacionais sobre o assunto, como na convenção de eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher e também na convenção de Belém do Pará, “que veio para punir e erradicar toda forma de violência contra as mulheres, entendendo como violência qualquer procedimento que cause sofrimento psíquico ou físico a qualquer mulher”.

Ela narrou uma experiência pessoal dizendo que, ao engravidar, teve o diagnóstico de polidrâminos, que indica alguma deficiência do feto, sendo a anencefalia do feto uma das possibilidades. “Eu vivi a expectativa muito angustiante quando grávida do meu primeiro filho”, afirmou. A anencefalia não foi diagnosticada e o bebê teve outros problemas que foram superados. Hoje, seu filho tem 30 anos e é saudável.

“Se eu tivesse tido a possibilidade do diagnóstico àquela época, teria sido muito importante, inclusive para a saúde da minha gestação, que a partir do momento desse diagnóstico foi muito difícil, angustiante e que levou a um parto com algumas complicações”, declarou.

Ao final, a ministra afirmou: “Nós lutamos muito para que os direitos fossem reconhecidos, agora é preciso que eles sejam garantidos e efetivados por meio de políticas públicas” encerrou.

Histórico

A discussão ocorre por conta da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, protocolada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que pede que ao aborto de fetos sem massa cerebral deixe de ser considerado crime.

A CNTS argumenta que carregar um feto sem cérebro, além de gerar risco para a mulher, ofende a dignidade humana da mãe, direito assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal, e que será apreciada ainda neste ano pelo STF.

Este ano, já foram realizadas audiências públicas sobre o tema nos dias 26 e 28 de agosto e no dia 4 de setembro. Elas foram convocadas pelo ministro Marco Aurélio Mello, que é relator da matéria no STF.

O processo chegou ao Supremo em 2004, e foi distribuído para o ministro Marco Aurélio em 17 de junho do mesmo ano. Em liminar, de julho de 2004, o ministro autorizou o aborto de fetos sem cérebro. No entanto, em outubro, a mesma foi cassada pelo Plenário do Supremo.

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