Estado de Direito

Entrevista: Flávio Bierrenbach, ministro do STM

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14 de setembro de 2008, 0h00

Flávio Bierenbach - por SpaccaSpacca" data-GUID="flavio_bierenbach.jpeg">Há 20 anos os brasileiros vivem em um Estado Democrático de Direito. Trata-se do mais longo período de estabilidade institucional da história do país. A primeira experiência de vida do Brasil sob um regime democrático, de 1946 a 1964, foi permeada por atos autoritários e interrompida pelo golpe militar.

Quando o regime de exceção cedeu, nos anos 80, a sociedade fez a escolha de viver sob regras democráticas plenas. E esse propósito se expressou fielmente na Constituição de 1988. A Carta Cidadã levou esse nome exatamente porque mudou todos os parâmetros até então insculpidos nas constituições brasileiras em relação a direitos dos cidadãos.

“Na Constituição de 1946, que é considerada liberal e que foi feita depois de uma ditadura, por uma Assembléia Constituinte, a carta de direitos começava no artigo 141”, conta Flávio Flores da Cunha Bierrenbach, atual ministro do Superior Tribunal Militar e ex-deputado que tem seu nome marcado no trabalho pela redemocratização do país.

O ministro é o primeiro entrevistado pela revista Consultor Jurídico na série que será publicada semanalmente, a partir deste domingo (14/9), para discutir a Constituição de 1988, sua importância e seus efeitos na sociedade. Bierrenbach assistiu ao nascimento da Constituição de uma posição privilegiada.

Como deputado pelo PMDB de São Paulo, foi o primeiro relator da proposta de convocação da Constituinte enviada ao Congresso Nacional por José Sarney, em 1985. Bierrenbach defendia a realização de um plebiscito para que a população decidisse se transformava o Congresso em Assembléia Constituinte ou se elegia uma Assembléia Constituinte exclusiva. Sua proposta foi rejeitada e o novo relator propôs dar poderes constituintes ao Congresso. O que aconteceu.

O mandato de Bierrenbach na Câmara acabou em 1986 e ele não se reelegeu. Assim, não foi deputado constituinte. Escreveu artigos semanais para a revista Senhor, nos quais comentava e criticava os trabalhos da Constituinte.

Apesar do perfil discreto, Flávio Bierrenbach sempre trabalhou muito nos bastidores pelo estabelecimento do Estado de Direito. Foi ele, por exemplo, um dos principais arquitetos da célebre Carta aos Brasileiros, lida em 1977 pelo professor Goffredo da Silva Telles Jr. O ministro também ajudou a impulsionar a carreira de nomes como Celso de Mello, que hoje é um dos ministros mais garantistas do Supremo Tribunal Federal; Luiz Antonio Guimarães Marrey, atual secretário de Justiça de São Paulo; e Pedro Dallari, reconhecido advogado e professor. Os três trabalharam no gabinete de Bierrenbach quando ele foi deputado estadual em São Paulo, pelo então MBD, a partir de 1978.

Como deputado federal, publicou, em 1986, o didático livro Quem tem Medo da Constituinte. E, no livro, explicou o que era a Constituição que estava em gestação: Da Constituinte nascerá uma Constituição e esta, ao contrário do que supõem os enganados ou do que afirmam os enganadores, não é um mito nem se destina a resolver problemas concretos, corriqueiros, típicos do cotidiano das pessoas. A Constituição não resolve o problema da miséria e do desemprego, não paga o aluguel ou as prestações do BHN, não equaciona a imensa dívida externa. O que a Constituição pode e deve fazer é dar ao país um patamar sólido de estabilidade democrática para que esses e outros problemas possam ser resolvidos, mediante profundas alterações na estrutura econômica.

Dois exemplos da história dos povos demonstram o poder e os limites de uma Constituição. Editada em 1786 pelos pais da pátria americana, a Constituição dos Estados Unidos é a carta de princípios que deu norte a uma das mais duradouras e consistentes experiências democráticas da história da humanidade.

Já a Constituição Argentina, promulgada em 1853 pelos criadores daquela nação, é quase tão antiga quanto a americana e não precisou ser revogada nem mesmo nos períodos mais tétricos de ditadura que o país enfrentou ao longo de dois séculos. Aos tiranos, bastou ignorá-la.

Na entrevista, Flávio Bierrenbach fala do clima da Constituinte, de como a Carta de 88 ampliou os direitos políticos e civis e relembra que uma Constituição duradoura é importante. Mas, por si só, não garante muita coisa: “A estabilidade institucional é uma construção contínua”.

Leia a entrevista

ConJur — Quem foram os responsáveis pelo movimento que culminou com a instalação da Assembléia Nacional Constituinte?

Flávio Bierrenbach — Foi um esforço coletivo. A gênese, a fecundação da idéia da Assembléia Constituinte ocorreu 10 anos antes da Constituição, em 1978, na Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, em Curitiba. A OAB era presidida por Raymundo Faoro, o que ajudou muito para que surgisse a palavra de ordem de convocação da Constituinte. O país vivia sob um autoritarismo que se expandiu a partir de 1964 e a conferência da Ordem foi um marco para impulsionar a mobilização da sociedade civil.


ConJur — O senhor relatou a primeira proposta de convocação da Constituinte, certo?

Bierrenbach — Sim. E minha idéia não era a de transformar o Congresso Nacional em poder constituinte, como acabou acontecendo. Em 1985, o presidente José Sarney, cumprindo promessa feita por Tancredo Neves, encaminhou ao Congresso Nacional a Proposta de Emenda à Constituição 26, que convocava a Assembléia Constituinte. Eu era deputado federal por São Paulo, pelo PMDB, e fui escolhido o relator da comissão mista do Congresso.

ConJur — Como foi o trabalho?

Bierrenbach — Fiz um grande número de audiências públicas. Minha preocupação foi no sentido de ouvir a sociedade civil e a sociedade política. Como conseqüência desse trabalho e da mobilização de um Plenário Popular Pró-Constituinte — praticamente uma federação cívica composta de quase 500 entidades da sociedade civil — cheguei a receber 70 mil cartas e mensagens com sugestões e críticas. Tive de comprar várias malas e organizar isso em muitos arquivos. Obviamente, não tive condições de ler todas as cartas, mas fiz uma amostragem representativa, levei para o Congresso Nacional e apresentei um substitutivo à proposta que tinha sido encaminhada pelo presidente da República.

ConJur — Substitutivo que mudava a essência da proposta presidencial.

Bierrenbach — O texto mudava na essência o sistema constituinte. O Congresso não é um poder constituinte, é um poder constituído. Então, pessoalmente, eu defendi a criação de uma Assembléia Constituinte livre, soberana, eleita exclusivamente para essa finalidade: fazer uma nova Constituição. A proposta enviada pela Presidência transformava o Congresso Nacional em Assembléia Constituinte. Mas, no substitutivo, eu optei por outra fórmula: propus um plebiscito para dar à população o poder de decidir se queria dar poderes constituintes ao Congresso ou se preferia votar uma Assembléia Constituinte exclusiva.

ConJur — Mas a proposta foi rejeitada.

Bierrenbach — Sim, fui derrotado na comissão mista, destituído da função e foi nomeado um novo relator, o deputado federal Valmor Giavarina [morto em fevereiro de 2005, Giavarina foi advogado criminalista]. Ele trouxe um parecer que acolheu a idéia do presidente da República de dar poderes constituintes ao Congresso. O que acabou ocorrendo.

ConJur — O senhor disse que recebeu mais de 70 mil cartas com sugestões. Isso dá uma mostra da ânsia da sociedade de participar da construção da nova Constituição. E muitos defendem que a Carta se tornou prolixa exatamente por causa disso. O senhor concorda?

Bierrenbach — Eu não tenho dúvidas de que a Constituição brasileira de 1988 é democrática. E é democrática porque, como foi produzida depois de um longo período autoritário, os constituintes se esmeraram na declaração de direitos. O Brasil tem, hoje, uma declaração de direitos que eu não chamaria de prolixa, mas sim de extensa. E essa extensa declaração de direitos produziu um sistema de interpretação da Constituição bastante razoável e avançado. Agora, é preciso reconhecer que o texto constitucional é extenso, programático e depende de inúmeras normas complementares, de leis complementares, muitas das quais não foram feitas até hoje.

ConJur — Os quase 900 Mandados de Injunção ajuizados no Supremo Tribunal Federal mostram isso.

Bierrenbach — É verdade. E essa realidade que o Brasil vive nos últimos 20 anos é responsável pelo protagonismo judiciário. A rigor, o Poder Legislativo hoje não cumpre nenhum dos seus três papeis institucionais: não legisla, não fiscaliza o Executivo e representa mal o povo. Antes da Constituição de 88, nós vivíamos em um regime autoritário. Mas a partir da Constituição, quem legisla no Brasil é o Poder Executivo. A legislação que é produzida pelo Congresso Nacional no plano federal e pelas assembléias legislativas no plano dos estados é de quantidade e qualidade irrelevante. E o Executivo legisla pela via ordinária ou por meio de medidas provisórias, com uma profusão como nunca houve na história do Brasil. Isso transforma o mundo jurídico em uma espécie de realidade virtual, como se fosse uma tela de espera de computador em mutação continua. As leis vão se sucedendo, vão se atropelando e o aplicador da lei, o juiz, muitas vezes não sabe nem qual é a regra que está em vigor. Junte-se a isso uma Constituição que, somando todos os seus dispositivos — artigos, incisos, alíneas e parágrafos — tem mais de mil regras.

ConJur — O senhor acha que uma Assembléia Constituinte exclusiva teria produzido uma Constituição melhor ou, pelo menos, mais enxuta?

Bierrenbach — Poderia ter feito um texto bastante melhor do que o atual. O Brasil poderia ter construído instituições ainda mais sólidas com uma Constituinte exclusiva, que não fosse contaminada por interesses momentâneos. Acho que quem participa da elaboração de uma Constituição tem que ficar de quarentena, ficar inelegível por alguns anos. Mas não me atrevo a fazer muitos vaticínios, porque os que eu fiz há 20 anos não se confirmaram. Eu achei que essa Constituição teria uma vida efêmera, mas ela já tem 20 anos e está firme. É verdade que já foi emendada 62 vezes…


ConJur — O senhor considera significativo esse número de emendas?

Bierrenbach — O caráter da Constituição tem que ser duradouro. Não pode ser perpétuo porque a sociedade muda, os homens mudam e isso não comporta regras perpétuas. Mas também não se pode construir uma nação com uma Carta fundamental que em curto prazo já foi emendada 62 vezes, principalmente quando se leva em conta que o paradigma constitucional do Brasil são os Estados Unidos. A Constituição americana foi feita com sete artigos e está aí há mais de 200 anos. Nesse espaço de tempo, recebeu apenas 26 emendas. E, no entanto, permitiu um sistema de interpretação constitucional por parte da Suprema Corte americana que vem se revelando eficaz na proteção de direitos.

ConJur — Mas a Constituição brasileira não é muito emendada por ser também muito longa? Não há muita coisa típica de legislação ordinária que ganhou status constitucional e, por isso, comporta essa revisão?

Bierrenbach — Exatamente. O Congresso travestido em poder constituinte revelou os seus medos. O Brasil vinha de um período autoritário. Então, o Congresso constituinte quis amarrar tudo na Constituição para contrapor esse período. Mas nem tudo se amarra na Constituição.

ConJur — Qual a principal função da Constituição?

Bierrenbach — Harold Laski [teórico do Partido Trabalhista inglês] dizia que a Constituição é um instrumento jurídico destinado a limitar o poder político. Essa é a melhor definição que já encontrei. Então, a Constituição poderia ter dez, sete ou cinco artigos, porque o que ela tem que fazer mesmo é limitar o poder do Estado. E para limitar o poder, ela declara direitos do cidadão.

ConJur — Então, a Constituição de 88 poderia se limitar ao artigo 5º, que protege os direitos fundamentais?

Bierrenbach — Quando eu digo que uma Constituição podia ter dez artigos, na verdade, é uma afirmação retórica. Porque em um país com o histórico jurídico, constitucional e institucional do Brasil, não é possível fazer uma Constituição com dez artigos. As constituições brasileiras sempre começaram com a organização do Estado e a carta de direitos entrava lá adiante. Durante o regime autoritário, que durou mais de 20 anos, houve um consenso no sentido de que uma Constituição teria que começar com os princípios fundamentais. Assim, os primeiros quatro artigos da Constituição de 88 são uma carta de princípios e o artigo 5º é uma carta de direitos.

ConJur — Até no formato as constituições sempre privilegiaram o Estado, não o cidadão.

Bierrenbach—Na Constituição de 1946, que é considerada liberal e que foi feita depois de uma ditadura, por uma Assembléia Constituinte, a carta de direitos começava no artigo 141.

ConJur — Ou seja, a Constituição de 88 mudou todos os parâmetros. É graças a ela que o Brasil vive seu mais longo período de estabilidade institucional democrática?

Bierrenbach—Não. Sobretudo em um país latino-americano, não é a Constituição, sozinha, que garante a estabilidade. A aplicabilidade e durabilidade da Constituição e a garantia das instituições é definida por um conjunto de fatores histórico-culturais. Sozinha, a Constituição não garante nada. Charles Maurice de Talleyrand, que foi ministro de Relações Exteriores da França no século XIX, dizia que tudo se pode fazer com uma baioneta, salvo sentar em cima. A estabilidade institucional é uma construção contínua.

ConJur — A Constituinte tem a imagem de Ulysses Guimarães. Qual o papel dele na construção da Constituição de 88?

Bierrenbach— Ulysses Guimarães esteve para a Constituição como o regente está para a orquestra. Não é o regente que produz a música, são os instrumentistas. Mas, sem o regente, a orquestra perde o momento, a harmonia e a sonoridade. O doutor Ulysses foi o maestro da Constituinte.

ConJur — O senhor não foi deputado constituinte, mas acompanhou de perto e trabalhou muito pela construção da Constituição e pela transição para a democracia. É lembrado por discursos inflamados, como quando disse que a proposta feita pelo Executivo em 1984 para que houvesse eleições diretas em 1988 era “uma espécie de Ponte de Safena que ele tenta implantar no coração desse regime agonizante, que prefere estrebuchar na cama, na UTI do Fundo Monetário Internacional, a morrer de pé fuzilado pelo povo brasileiro”.

Bierrenbach — Nós vivíamos em regime de abertura desde o governo de Ernesto Geisel (1974-1979) e que teve, como eu disse, a sua gênese com a declaração da Conferência Nacional da OAB presidida por Raymundo Faoro em 1978. Foi a partir dali que começou o processo de abertura que o governo chamava de lenta, gradual e segura, e que se estabeleceu a luta pela anistia, que nós chamávamos de ampla, geral e irrestrita. Então, em 1984 já era possível fazer um discurso como esse, que dez anos antes provavelmente teria levado à minha cassação. Agora, o papel do político progressista é mover a roda da história para frente, ou pelo menos não deixar que ela se mova para trás.

ConJur — O senhor citou a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. Como o senhor vê alguns movimentos para rever a Lei da Anistia e punir quem praticou crimes na época do regime autoritário?

Bierrenbach — Anistia significa perdão. Perdão, inclusive, recíproco. Mas anistia não significa esquecimento. Há duas palavras em inglês que definem, talvez melhor do que em português, o sentido da anistia. Anistia é forgive, não é forget. O Brasil já teve oito leis de anistia desde o Império. Teve guerras civis nas quais foram cometidas as maiores atrocidades e, no entanto, houve anistia. Duque de Caxias, por exemplo, ganhou o nome de “Pacificador” porque a primeira coisa que o governo fazia depois que ele vencia uma rebelião, e houve tantas no tempo do Segundo Império, era promover uma anistia e reintegrar a sociedade àqueles que estavam do lado perdedor. A luta pela anistia foi uma luta que teve o empenho da sociedade civil e da sociedade política. Anistia significa perdão. Eu não vejo viabilidade jurídica e nem política para a punição de quem quer que seja.

ConJur — Valeu a luta?

Bierrenbach — Durante o regime autoritário, na verdade, a gente não lutava por uma Constituição, não lutava por anistia, lutava-se por um Estado democrático. E isso nós temos no Brasil hoje. Nós vivemos em um Estado Democrático de Direito, com os seus percalços, com problemas, com um quadro terrível de desigualdade, mas com um arcabouço institucional apto para enfrentar o futuro.

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