ADPF 54

Supremo está prestes a julgar aborto de feto anencéfalo

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13 de setembro de 2008, 0h00

Questão que se encontra em voga atualmente é a que diz respeito aos anencéfalos. Ao que tudo indica a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 será julgada ainda nesse ano, eis que já foram realizadas três audiências públicas, havendo mais uma a ser realizada no dia 16 de setembro de 2008. Não há um conceito definido para o que seja preceito fundamental. No entanto, o Supremo Tribunal Federal construiu uma definição, afirmando que são preceitos fundamentais dois elementos da Constituição, quais sejam, as cláusulas pétreas e direitos e garantias individuais.

O advogado Luís Roberto Barroso interpôs a ADPF 54 com pedido cautelar no dia 16 de junho de 2004. No dia 1º de julho de 2004 foi concedida a liminar, pelo ministro Marco Aurélio, permitindo que as gestantes realizassem a antecipação terapêutica de parto, no entanto a decisão foi cassada no dia 20 de outubro de 2004. O fumus boni iuris dessa liminar foi fundamentado no fato de a violação dos preceitos fundamentais ser ostensiva, caso as normas penais sejam interpretadas como impeditivas da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. Já o periculum in mora foi fundamentado no fato de haver em todo o país uma miríade de ações judiciais em que gestantes buscam autorização judicial para submeterem-se à antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos1.

A ADPF 54 é autônoma. No que tange à sua legitimação ativa temos por satisfeito o pressuposto, pois a mesma foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), se encontrando disposta no inciso IX do artigo 103 da Constituição Federal.

O ato do poder público rechaçado pela ADPF 54 consiste no conjunto normativo extraído dos artigos 124, 126, caput, e artigo 128, incisos I e II do Código Penal, ou mais precisamente, na interpretação inadequada que se tem dado a tais dispositivos em inúmeras decisões.

Em se tratando do princípio da subsidiariedade, temos que não há outro meio cabível para tal caso. O Código Penal, materializado no Decreto-lei 2.848/40 é um diploma pré-constitucional, daí porque não ser cabível Ação Direta de Inconstitucionalidade. Também não é hipótese de Ação Declaratória de Constitucionalidade nem de qualquer outro processo objetivo.

O pedido principal da ADPF 54 é que seja realizada a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, declarando inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação de tais dispositivos como impeditivos da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez anencefálica, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado.

Não obstante ainda não ter sido julgado o mérito da ADPF 54, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal já se manifestaram a respeito da mesma em sede de questão de ordem em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

O ministro Joaquim Barbosa em seu voto conheceu a ADPF 54. Sustentou que os pedidos de autorização negados criam incerteza, insegurança jurídica, o que é inadmissível em um domínio em que o ordenamento jurídico deve oferecer a mais sólida e segura proteção ao cidadão. Esse fato, unicamente, já demonstra a relevância da controvérsia constitucional a que a ADPF se prestaria a dar solução rápida. E ainda afirma que essa ação constitucional deve ser vista como meio de ampliação da ação protetiva dos direitos fundamentais, que é o objetivo essencial da jurisdição constitucional2.

O ministro Gilmar Mendes também votou pelo cabimento da ADPF 54 e ponderou o seguinte:

O tribunal poderá conhecer da argüição de descumprimento toda vez que o princípio da segurança jurídica restar seriamente ameaçado, especialmente em razão de conflitos de interpretação ou de incongruências hermenêuticas causadas pelo modelo pluralista de jurisdição constitucional […] Não há, portanto como negar a possibilidade via ADPF, aferir-se a legitimidade ou não da interrupção da gravidez em semelhantes casos.

Ora, conforme tudo que foi visto até agora, podemos afirmar com total veemência que a ADPF é meio idôneo para se buscar a autorização da interrupção da gestação de fetos anencéfalos, tendo em vista que o que se encontra nesse caso é um conflito de interpretação, no qual se busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos artigos 124, 126 e artigo 128, incisos I e II do Código Penal.

Outro voto também a favor da procedibilidade da ADPF 54 foi o do ministro Carlos Britto. Afirmou que a interpretação conforme a Constituição é uma forma particular de investigar a constitucionalidade dos atos do poder público. E que essa interpretação serve meramente para desconsiderar a incidência de certa compreensão que se possa retirar do dispositivo infraconstitucional3. No caso em tela pretende-se que seja desconsiderada a interpretação do Código Penal para punir a gestante que interrompa a gravidez de feto anencéfalo.

Com o intuito de abrilhantar essa discussão cumpre-nos trazer à baila também os argumentos contrários à ADPF 54.

Primeiramente cabe falarmos do parecer do ilustre procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, que se manifesta pela impropriedade do uso da ADPF para efeito de obtenção de interpretação conforme a Constituição, argumentando em síntese que tal utilização configuraria usurpação de função do Poder Legislativo. Entende não ser cabível a ADPF pelo fato de não ser caso de aplicabilidade dessa técnica de controle de constitucionalidade, eis que os dispositivos penais em questionamento pela parte autora não ensejam mais de uma interpretação lógica. Sustenta ainda não ser cabível a interpretação dos dispositivos do Código Penal face à primazia jurídica do direito à vida4.

Temos também como voto contrário à ADPF 54 o da ministra Ellen Gracie que entende que com a procedência da referida ADPF, o tribunal atuaria como legislador positivo, criando uma nova hipótese de excludente de ilicitude da prática de aborto. Sustenta que tal questão deve ser resolvida no Congresso Nacional e não no Judiciário5.

O ministro Carlos Velloso também se manifestou contra o cabimento da ADPF 54. Entendeu que o Supremo Tribunal Federal estaria inovando no mundo jurídico mediante interpretação, estaria criando mais um modo de exclusão do crime de aborto, o que não seria possível em sede de interpretação conforme a Constituição6.

Como já foi dito anteriormente, ainda não foi julgado o mérito da ADPF 54. Entendemos que apesar disso o seu objeto não se perdeu, pois o que levou à sua interposição foi uma interpretação constitucional, conforme os princípios constitucionais, os quais constituem normas abstratas. A ADPF não pode ser baseada em um caso concreto, visto que é um processo objetivo e visa à defesa dos interesses da sociedade. Caso assim pudesse ser fundamentada, poder-se-ia falar em perda de objeto.

Diante tudo o que foi exposto, ficamos com o entendimento de que a ADPF é meio idôneo para se obter a autorização da antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos. Baseando-se nos requisitos da ADPF, entendemos ser perfeitamente possível o seu cabimento no caso em tela. O Supremo Tribunal Federal julgando procedente a ADPF 54 não estará agindo positivamente e sim negativamente, visto que não criará lei alguma, apenas declarará a inconstitucionalidade da interpretação dos dispositivos do Código Penal já citados anteriormente para punição da gestante que interromper a gravidez de feto anencéfalo e declarará também a interpretação de tais dispositivos conforme a Constituição Federal.

O que se espera da ADPF 54 é somente que os ministros julguem procedente para que haja essa interpretação e não que criem mais uma excludente de punibilidade para o crime de aborto, até porque, a antecipação terapêutica de parto não configura um aborto.

Vale registrar aqui que é necessário agir com bom senso e levar em consideração os sofrimentos pelos quais as mulheres passam. Com as mudanças na jurisprudência e na doutrina no sentido de reconhecer que os direitos da gestante estão violados e que merecem a autorização, permitindo a interrupção da gestação anencefálica, tem-se um grande avanço. Isso facilita com que a ADPF 54 seja julgada procedente e motiva uma mudança na legislação infraconstitucional.

Resta-nos ressaltar que por sete a quatro, os ministros resolveram dar continuidade à tramitação da ADPF 54, para posterior decisão em relação à legalidade da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Os ministros favoráveis à admissibilidade da ADPF 54 foram: Marco Aurélio (relator), Carlos Britto, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Celso de Mello, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim (presidente). Foram contrários, negando seguimento à ação, os ministros Eros Grau, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Carlos Velloso. Conforme afirmado anteriormente, essa ação está prestes a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal.

Notas de rodapé

1. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Petição Inicial da ADPF nº 54, p. 22. Disponível em: . Acesso em 29/01/2007.

2. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Trecho do voto do Ministro Joaquim Barbosa na questão da ADPF sobre anencefalia. Disponível em: . Acesso em: 13/03/2007.

3. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Trecho do voto do Ministro Ayres Britto na questão de ordem da ADPF sobre anencefalia. Disponível em: . Acesso em: 13/03/2007.

4. FONTELES, Cláudio. Parecer nº 3358/CF. Disponível em: . Acesso em: 08/02/2007.

5. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Trecho do voto da Ministra Ellen Gracie na ação sobre anencefalia. Disponível em: . Acesso em: 13/03/2007.

6. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Trecho do voto do Ministro Carlos Mário Velloso na ADPF sobre anencefalia. Disponível em: . Acesso em: 13/03/2007.

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