Garantias violadas

Ministro da Suprema Corte argentina critica discurso de repressão

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7 de setembro de 2008, 14h17

Quanto mais descemos na escala social, mais repressivo fica o discurso. A afirmação é do ministro Eugenio Raúl Zaffaroni, da Suprema Corte da Argentina, ao criticar a onda punitivista que cresce em todo o mundo. Em entrevista concedida à Folha de S.Paulo, publicada neste domingo (7/9), o ministro aponta que a orientação punitiva no Direito Penal é um equívoco.

Segundo ele, querem criminalizar toda a adolescência. Zaffaroni afirma que misturar meninos e adultos nas cadeias só resultará em um coisa: “teremos mais meninos violados”. E acrescenta: “Não sei se não me tornaria um assassino se tivesse que viver em uma cadeia”.

O ministro participou de seminário no Instituto Brasileiro de Ciência Criminais, o IBCCrim, ocasião em que concedeu entrevista à Folha. O texto é assinado pela jornalista Flávia Marreiro. Recentemente, Zaffaroni também participou de evento do Instituto Carioca de Criminologia, ocasião em que criticou o excesso de prisões cautelares (clique aqui para ler texto sobre o evento do ICC).

Zaffaroni, que votou pelo fim da anistia para crimes na ditadura militar, também falou à Folha sobre o uso de algemas. Ele explicou que as garantias sempre avançam porque o poder punitivo atinge um VIP, mas que “o poder punitivo não dá direito a expor ninguém com algemas”. Para ele, não pode haver VIPs e não VIPs.

Ainda na entrevista, Zaffaroni falou da discussão no Brasil a respeito da imprescritibilidade do crime de tortura, defendeu que os governos esquerdistas de Bolívia e Equador, que preparam novas Constituições, são parte da “segunda onda de alargamento da cidadania” na região. De acordo com ele, a primeira veio com o varguismo e o peronismo.

Leia entrevista concedida à Folha de S.Paulo

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Eugênio Raúl Zaffaroni — As decisões são jurídicas. Se só se trata de julgar fatos políticos, não tem sentido. Mas, se houve crimes de lesa humanidade, nenhum país do mundo pode fazer-se de desentendido sem violar o direito internacional. Nossos países assinaram tratados internacionais do tema.

Bolívia e Equador preparam Constituições muito mais detalhistas que as atuais, com diretrizes de política econômica, por exemplo. São esses textos um acertado produto de seu tempo ou Cartas excessivamente políticas fadadas a não ter aplicabilidade?

Zaffaroni — Toda lei é fruto de um momento político, é resultado de uma experiência. A experiência, neste caso, é a maneira como foram eludidas as garantias estabelecidas pelas Constituições anteriores. Nós na América Latina temos uma característica que não podemos negar. Somos povos não muito acostumados ao respeito às instituições.

Por que motivo?

Zaffaroni — porque, à diferença dos países europeus, as nossas leis muitas vezes reconheceram direitos inscritos em leis que não resultaram de lutas. Pegamos a Constituição dos EUA, arrumamos alguma coisa e pronto. Quando fizemos nossas Cartas de Repúblicas, tínhamos uma realidade quase feudal. Depois, a nossa cidadania foi se alargando no curso do século 20 por meio dos populismos. E o que são? Movimentos populares, às vezes contraditórios, às vezes autoritários, muitas vezes personalistas, mas que alargaram a cidadania. Perón na Argentina, Vargas no Brasil. As instituições não nascem com a lógica que os juristas queriam. Nascem como a política quer. Estamos numa segunda onda de alargamento da cidadania depois de sofrer as conseqüências de uma onda contrária, assassina, genocida nos anos 90. É o momento de pensar como institucionalizar alguns pontos, mas com a consciência de que a desconfiança de nossos povos com as Constituições não é gratuita. Quanto à questão de política econômica, ela deve ser orientada constitucionalmente, para evitar o que sofremos em vários países na década passada.

Com a criminalidade como um problema grave na região, cresce o clamor por mais punição, pela diminuição da maioridade penal. O sr. é crítico das duas coisas?

Zaffaroni — A vitimização tem uma distribuição tão injusta como a criminalização. Na medida em que eu posso pagar segurança pessoal, faço. Então vamos deteriorando as polícias e o mau serviço fica para os mais pobres. Quando fazemos pesquisas, vemos que, quanto mais descemos na escala social, mais repressivo fica o discurso, porque têm a experiência da violência. Vitimizados e criminalizados são pobres, além da polícia. Os policiais vêm dos extratos baixos, vão para a rua ganhando pouco, numa estrutura militarizada sem direito a sindicalização. São alvos ambulantes. Seus direitos são tão violados quanto os dois primeiros grupos. A idéia é: matem-se entre si. O controle social age aí. A quem interessa controlar mais? Aos mais jovens. Criminalidade não é coisa de velhos. O Estado mata os velhos de outro jeito, tira a Previdência social. Querem criminalizar toda a adolescência. É verdade que temos adolescentes assassinos, mas a maioria é de autores de furtos e roubos, crimes contra a propriedade. Misturem meninos e adultos nas cadeias e teremos mais meninos violados. Causará surpresa se se tornam assassinos? Não sei se não me tornaria assassino. Depois, há uma grande incoerência. Se quisermos que uma pessoa seja responsável criminalmente aos 14 anos, por que não civilmente? Para assinar um contrato? Ou votar? Ou escolher a opção sexual. Não, nada disso. Só penalmente.

Como teórico da seletividade do sistema penal, como vê o debate no Brasil gerado pelo uso de algemas em banqueiros e políticos?

Zaffaroni — As garantias sempre avançam porque o poder punitivo atinge um VIP. Essas prisões servem para dizer: olha, essa sociedade é igualitária. Embora o VIP que cai no sistema penal seja aquele que perdeu a luta de poder contra outro VIP. O poder punitivo não dá direito a expor ninguém com algemas, mas neste caso não pode haver VIPs e não VIPs.

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