Direitos violados

Na Grampolândia, quem grampeará o grampeador?

Autor

  • Walter Ceneviva

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor entre muitas outras obras do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas na Folha de S. Paulo.

6 de setembro de 2008, 16h41

A idéia para o título [quem grampeará o grampeador?] não é minha. É de Juvenal. Escritor e poeta satírico em Roma, Juvenal, que viveu na segunda metade do século 1º até o século 2º depois de Cristo, perguntou: “Quis custodiet custode?”. Ou seja, em transposição atualizada do latim: “Quem nos guardará daquele que nos deve guardar?” É a pergunta óbvia para quem se preocupe com o escandaloso abuso dos grampos telefônicos, quando o poder oficial não tenha quem o restrinja e impeça o excesso.

Tem sido freqüente, em especial na televisão, ver e ouvir pessoas a defender um estado policial mais enérgico como meio de enfrentar a criminalidade. Ignoram ou fingem ignorar que a orientação dos tribunais, liberando acusados, só é possível com base na Constituição, ao afirmar a presunção de inocência até que reconhecida a responsabilidade penal em sentença não sujeita a novos recursos. Entre nós, talvez pelo aumento da violência urbana (que não é problema exclusivo do Brasil), há a tendência de pretender que a prisão seja mantida, mesmo para uma acusação apenas policial ou, ainda pior, dominante nos meios de comunicação.

Também já ouvi gente dizendo que os juízes não devem ficar excluídos do grampo, para verificação de eventuais irregularidades. A violação da intimidade do magistrado é mais grave. Ofende o direito e o dever de preservar o sigilo de suas opiniões nos casos em que vai julgar.

Há métodos legais para verificar se o juiz é autor de alguma ação contrária à nobreza de sua profissão. A dificuldade de punir o magistrado, ainda que acusado de delitos graves, não é desculpa para a violação de seus direitos.

De quanto se tem visto, os grampos noticiados não parecem feitos apenas para constatar se o magistrado cometeu algum delito. Aliás, a admissão do grampo sem controle levará ao abuso contra suas vítimas. Nos sistemas ditatoriais, é constante a violação dos direitos individuais em benefício do poder dominante. O mau uso da força, em face de não integrantes do poder, passa despercebido, porque a censura veda a informação ao grande público. A ingenuidade de quem queira a ditadura é de ser repelida.

Grampear o telefone do presidente do Supremo Tribunal Federal é o absurdo dos absurdos, no Estado de Direito. Leva à conseqüência óbvia: daqui a pouco os organismos policiais, ajudados por juízes desatentos, estarão grampeando os telefones dos presidentes das casas legislativas, dos tribunais federais e estaduais, dos promotores e governadores. Só escaparão dessas violações os próprios autores do grampo, cujo poder crescerá com a impunidade. Quando se houver percorrido todo o caminho das iniqüidades, haverá o choro das lamentações dos injustiçados a perguntarem: “Quem, afinal, vai grampear os grampeadores?”

A atitude, compatível com o interesse geral, na democracia, é muito clara: não se há de permitir a violação dos direitos e garantias constitucionais. Haverá exceções, por certo, quando a investigação de delitos o exija. Estas, porém, devem ser claramente delimitadas, sobretudo para os encarregados de diligências ou das providências investigatórias necessárias. O fio da navalha entre o lícito e o ilícito se resolve com a preservação dos inocentes.

[Artigo publicado pela Folha de S.Paulo, deste sábado, 6 de setembro]

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    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor, entre muitas outras obras, do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas, na Folha de S. Paulo.

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