Espionagem em Prelúdio

A acachapante inconstitucionalidade dos grampos da Abin

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1 de setembro de 2008, 12h07

Ano de 1962: o imortal Vinícius de Moraes escreve a mais bela de todas as letras para uma canção. O seu Samba em Prelúdio, concebido em parceria com o violonista Baden Powell, terminava com o célebre refrão “sem você, meu amor, eu não sou ninguém”. Bons tempos aqueles em que o poeta podia cantar sem preocupações outras, que, sem a mulher amada, seria “chama sem luz”, “jardim sem luar”, “barco sem mar”, “campo sem flor”.

Hoje, o Brasil vive um período bem menos inspirador e bem mais autocrático. Nesta hora, o que está em prelúdio já não é um samba, uma canção ou um poema, mas a abjeta e repulsiva idéia da espionagem oficializada, em plena gestação nos escalões superiores da República. Exatamente essa a idéia do novo diretor de Agência Brasileira de Inteligência (Abin), um delegado de polícia aficcionado a métodos de investigação que tais. Desde que deixou o comando da Polícia Federal, tem ele reivindicado recorrente e incansavelmente que, em suas novas funções, tenha também o direito de implementar o sistema de espionagem telefônica denominado “Guardião”, com o escopo de grampear seus “suspeitos” em casos muito excepcionais.

Invoca o terrorismo, mesmo reconhecendo que tal ameaça é um tanto longínqua num país de pacífica diversidade étnica e irreversível consolidação democrática como o Brasil. Ainda sem objetivos definidos e programas de ação na Abin, é como se o chefe da inteligência, em seus versos funcionais, cantasse “sem você, meu “Guardião”, eu não sou ninguém” – e Vinícius, lá em cima, haverá de nos perdoar pela comparação.

Tal sonho de uma noite de verão, no entanto, significa muito mais do que simples devaneio burocrático. Representa, na verdade, acachapante inconstitucionalidade. É que na Constituição da República Federativa do Brasil, que é de 1988, o direito à privacidade está erigido em princípio fundamental, quase sacro, enfim uma cláusula pétrea. No Capítulo dos Direitos Individuais e Coletivos, dispõe seu artigo 5º, inciso XII, que “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Preciso, portanto, o Poder Constituinte Originário. Fixou a regra da inviolabidade do sigilo e excepcionou uma única hipótese: o caso de investigação criminal e instrução processual penal.

Ora, investigação criminal cabe, exclusivamente, à polícia judiciária, sentencia a Lei Máxima, e não à Agência Brasileira de Inteligência. Corretamente por isso, o novo diretor-geral da PF, Luiz Fernando Correa, que chegou, em muito boa hora, tem rechaçado abertamente tais pretensões. Afinal, na distribuição constitucional de competências, à César o que é de César. E a nova polícia, ao que tudo indica, parece mais afinada com os anseios da sociedade brasileira, após as arbitrariedades que marcaram a gestão anterior no Ministério da Justiça e na PF. De todo injurídico e inadequado buscar conferir à Abin as funções de espionagem e escuta telefônica por meio de um dispositivo de lei ordinária. Seria necessária alteração do texto constitucional para tanto, como é óbvio.

No Brasil, no entanto, as propostas de emendas constitucionais tramitam com observância do processo legislativo previsto no artigo 60 da Carta Magna. Como se sabe, as emendas só podem ser aprovadas se votadas em dois turnos, tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal e se merecerem o sufrágio de três quintos dos parlamentares, em cada uma das casas legislativas. Afinal, não se trata da Lei do Inquilinato. Ainda assim, o legislador constituinte fez questão de estabelecer vedação expressa a matérias que não podem – em hipótese alguma – ser objeto de proposta de emendas constitucionais. É o que se lê no inciso 4º, do mesmo artigo 60: “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (I) a forma federativa de Estado; (II) o voto direto, secreto, universal e periódico, (III) a separação dos poderes; (IV) os direitos e garantias individuais”. O texto é mais do que claro.

Mesmo que o novo chefe da Abin conseguisse convencer um grupo de parlamentares a apresentar uma proposta de emenda em favor do seu “Guardião”, a iniciativa legislativa seria inconstitucional porque abole direitos e garantias individuais. Isso quer significar que as pretensões do diretor da Abin só seriam viáveis se o Brasil estivesse disposto a ignorar sua Constituição e, rompendo com a ordem jurídico-institucional por ela estabelecida, convocar uma nova Assembléia Nacional Constituinte. Felizmente, ao que tudo indica, isso não parece ser uma de nossas prioridades.

Cumpre acrescentar que, neste exato momento, há um aceso debate nos Estados Unidos, tidos como a maior democracia ocidental, em torno do tema. Depois do trauma vivido no 11 de setembro de 2001, a sociedade norte-americana abriu mão de certos direitos individuais, em nome do combate ao terrorismo, mas hoje já parece estar arrependida. No Brasil, onde tal risco se mostra distante e até mesmo inexistente, seria um absoluto despautério jogar no lixo garantias individuais tão importantes. Afinal, é a privacidade que assegura a intimidade, a integridade e a indevassabilidade da pessoa humana. São conquistas sagradas, que devem ser preservadas e que estão acima dos sonhos de poder de quaisquer autoridades, principalmente em nome de uma ameaça que ninguém vê.

Artigo publicado originalmente pelo jornal O Estado de S.Paulo

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