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Embriaguez, por si só, não tira o direito a indenização de seguro

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31 de outubro de 2008, 11h08

O Superior Tribunal de Justiça, em controvertida decisão proferida em matéria de seguro, acentuou a polêmica que circunda a lei 11.705/08, ou seja, a tão famosa “Lei Seca”.

Em julgamento recente, os ministros componentes daquela Corte exoneraram uma Companhia seguradora de indenizar viúva beneficiária de seguro de vida, pelo fato de seu marido segurado ter falecido em acidente automobilístico, ocasião em que dirigia embriagado.

Este julgado, data vênia, além de robustecer a guarida dada às seguradoras pelos tribunais estaduais, no que se refere à recusa de indenização pelo agravamento do risco por parte do segurado, também propicia inúmeros questionamentos a essa orientação.

Por exemplo, não pode a seguradora negar pagamento de indenização por morte se o segurado embriagado vir a falecer em acidente de automóvel, quando este não deu causa ao evento. Uma forte colisão na traseira pode levar o motorista do carro que seguia à frente ao óbito, e o responsável é o motorista do carro que colidiu na traseira. Como fica esta questão se tanto as decisões do Judiciário quanto as cláusulas excludentes de cobertura nos contratos de seguro são lacônicas, e se limitam colocar o uso do álcool como justificativa da negativa da indenização?

Existem inúmeras hipóteses em que a morte do segurado não é motivada pelo consumo do álcool e isso não vem sendo analisado pelas companhias seguradoras e pelo Judiciário. É imperioso que exista nexo de causalidade entre o consumo da bebida e o evento danoso que ocasionou o sinistro. O simples diagnóstico da substância no organismo do segurado não pode ser justificativa bastante para a negativa de pagamento da indenização prevista em apólice.

Na União Européia, por exemplo, existem seguradoras que estipulam cláusulas específicas de exclusão por embriaguez, desde que sejam encontrados índices de graduação alcoólica de 0,5 a 0,8 decigramas por litro de sangue da pessoa do condutor. Dessarte, as companhias seguradoras fizeram incluir referida cláusula justamente em razão do repúdio dos tribunais em permitir a exclusão da cobertura por alcoolemia episódica.

Os franceses, aliás, inexcedíveis no trato da responsabilidade civil e bem assim no direito securitário, através de seu Código de Seguros, expressamente afastaram essa hipótese. Eis a dicção do texto legal:

“Art.L. 211-6 (mod., l. nº 2003-87, 3 févr. 2003) – Est réputée non écrite toute clause stipulant la déchéance de la garantie de l’assuré em cas de condamnation por conduite en état d’ivresse ou sous l’ empire d’un état alcoolique ou pour conduite aprés usage de substances ou plantes classées comme stupéfiants. (Code des Assurances, Lexis Nexis, Litec, 2008 pág. 323)”

Ou seja, em tradução livre, não é válida a cláusula que exclui a garantia do segurado, na hipótese de condenação, por conduzir em estado de embriaguez, sob estado alcoólico ou de substância entorpecente.

Aliás, a Corte de Cassação francesa já se pronunciou sobre esse assunto quando examinou o dispositivo legal acima referenciado, considerando como não escritas as cláusulas de inibições de garantia ao segurado por dirigir embriagado ou enquanto sob influência do álcool. A impropriedade, segundo estas decisões da jurisprudência francesa, seria manifesta quando se tratasse de embriaguez eventual. (Fonte: http: www.courdecassation.fr/jurisprud_6022.html)

Na doutrina nacional, os festejados juristas Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, ao comentarem o artigo 768 do Código Civil de 2002, trazem à colação decisão da Revista dos Tribunais, verbis:

“Embriaguez ocasional. Para configuração da hipótese de exclusão da cobertura securitária prevista no CC/1916-1454[CC 768], exige-se que o contratante do seguro tenha diretamente agido de forma a aumentar o risco, o que não ocorre quando, inobstante a embriaguez do preposto condutor do veículo, cuidava-se, segundo a instância ordinária, soberana no exame dos fatos, de pessoa habilitada, tida como responsável, e o estado mórbido foi considerado meramente ocasional, em decorrência de excesso em festividade natalina. Devido, assim, o pagamento, pela seguradora, da indenização a terceiro pelos danos pessoais e materiais causados em decorrência da colisão (RT 780/287)”. (Código Civil Comentado, 4ª edição, Editora Revista dos Tribunais, pág. 559).

Ademais, “a jurisprudência tem firmado posição no sentido de que o fenômeno da agravação do risco merece exame de forma restrita, isto é, só se pode considerá-lo como existente quando, na realidade, houver prova concreta que o segurado agiu para sua consumação”. (In, José Augusto Delgado, Comentários ao novo Código Civil, Vol. XI, Tomo I, Forense, 2004, p. 243)

Também, no azo, ao comentar o artigo 768, registrei, em escólios de Francisco de Assis Braga, que “na literatura especializada estrangeira, tanto de países de tradição latina como anglo-saxã, o assunto é tratado de forma sistemática e detalhada, não tendo merecido, em nosso país, atenção maior por parte dos especialistas”. É por isso que mestres como M. Picard e A. Besson identificam a distinção do aumento do risco da exclusão do risco, Les assurances terrestres, le contrat d’assurance, Paris, 1975, p. 147 (In, Voltaire Marensi, O Seguro no Direito Brasileiro, 8ª edição, Thomson/IOB, 2007, p.23).

Aliás, é o caso previsto no artigo 1.898 do Código Civil italiano.

Em verdade, a nosso sentir, à míngua de cláusula expressa no contrato de seguro no que tange a embriaguez eventual, não se pode interpretar esta situação como uma hipótese de agravamento do risco no contrato de seguro.

Entendemos que as circunstâncias agravantes do contrato de seguro, notadamente do seguro automóvel, deve observar regras inerentes ao comportamento usual do segurado atentando, mormente, para o principio da boa-fé objetiva e, particularmente, para o preceito inexo no inciso IV, do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor. Pois, este dispositivo legal “traduz uma norma geral de proibição a qualquer tipo de abuso contratual e municia o juiz de poderes para empreender, de modo concreto, o equilíbrio e a equanimidade das relações contratuais. Bastaria, aliás, esse dispositivo legal para que todas e quaisquer cláusulas abusivas pudessem ser escoimadas dos contratos de consumo” (In, James Eduardo Oliveira, Código de Defesa do Consumidor Anotado e Comentado, Doutrina e Jurisprudência, Ed. Atlas, 2004, pág 296).

A inclusão resultante do artigo 422 do Código Civil Brasileiro sofreu influências do parágrafo 242 do BGB. Dissertando sobre esse dispositivo, disse, o grande jurista germânico, J. W. Hedemann, verbis: “La buena fé debe ser considerada como um módulo de carácter objetivo. Es, pues, indiferente lo que los contratantes hayan pensado acerca de la honradez de su forma de contratar, es decir, que no la considerasen em forma alguna inadmisible. Atendiendo a este sentido objetivo, el legislador há colocado la buena fe junto a los usos del tráfico en le § 242, y lo mismo ocurre em el § 157. Sin embargo, la ‘objectividad’ del principio no debe ser exagarada; todo depende siempre de las especiales circuntancias del caso concreto. Partiendo de esta base ha de aspirarse a um justo equilibrio de los interesses de ambas as partes” (Derecho de Obligaciones, Editorial Revista de Derecho Privado, v. III, p.77).

Pois, “a doutrina da base do negócio jurídico, criada por Oertmann (Geschäftsgrundlage) e posteriormente desenvolvida por Larenz (Geschäftsgrundlage) está fundada na cláusula geral de boa-fé (BGB § 242 e CC 422).” (Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, Ob. Citada, pág. 415).

Portanto, todas as circunstâncias devem ser analisadas por ocasião do sinistro, pois cada caso concreto tem suas peculiaridades, e a boa-fé do segurado tem que estar evidenciada na contratação e no evento danoso. O que não pode é o consumidor continuar sendo lesado por cláusulas imperativas e mal elaboradas, como sói acontecer na atualidade.

O simples diagnóstico do álcool no organismo do segurado não pode continuar sendo justificativa para a negativa de pagamento da indenização, se não existe prática intencional do ato e nexo de causalidade entre a ingestão da substância torpe e o evento que ocasionou o sinistro.

Resta evidenciado, também, que se faz urgente e necessária a adequação dos contratos de seguro ao perfil específico de cada segurado, levando-se em consideração seus costumes, evitando-se, de conseqüência, as injustiças que hoje presenciamos, quando na “vala comum” se julgam casos de segurados com comportamentos visceralmente distintos.

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