Mensagem subliminar

Filme Madagascar não estimula uso de ecstasy, diz juíza

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30 de outubro de 2008, 19h01

O desenho animado Madagascar não é capaz de estimular o uso de drogas como o ecstasy. A afirmação é da juíza Giovana Guimarães Cortez, da 2ª Vara Federal de Joinville (SC), que negou pedido de censura ao filme. Cabe recurso da decisão.

A Associação Mais Regional Mais Vida (Maremavi) entrou com uma Ação Civil Pública para proibir a exibição e a venda do filme. Para a associação, o filme infantil estimula o uso de drogas com mensagens subliminares.

“Depois de analisar todos os argumentos expostos pelas partes e de assistir ao filme por inúmeras vezes, entendo que falta ao filme Madagascar o potencial lesivo aludido na inicial”, diz a juíza. Para Giovana, se até mesmo para adultos é difícil encontrar cenas alusivas à droga, mais difícil ainda é para as crianças.

Na primeira versão dublada para o português, aparecia no filme falas como “bala de graça”, “liberou geral” e “por que não trouxe uma balinha?”. A Maremavi diz que a bala em questão refere-se ao ecstasy.

No entanto, em setembro de 2005, pouco depois do lançamento, a United International Pictures (UIP), distribuidora do filme, alterou as falas para “dropes de graça”, “ponto final” e “por que não trouxe um salgadinho?”. Para a juíza, a mudança não significa que a distribuidora admitiu a apologia ao uso de drogas.

Giovana lembra que, quando passou nos cinemas, o filme foi classificado para menores de 12 anos, em função de cenas de uso de drogas lícitas. No entanto, segundo a juíza, essa classificação não significa que crianças menores de 12 anos, que assistiram ao filme, tenham sofridos danos.

“O contexto em que são consumidas drogas lícitas diz respeito à personagem girafa, que é hipocondríaca, e não é vista de uma forma positiva propriamente”, afirma.

A ação foi proposta contra a UIP, a União e a Agência Nacional do Cinema (Ancine). A agência foi excluída do processo porque sua competência é fomentar a produção de cinema. Quem faz a classificação etária é o Ministério da Justiça.

Em novembro de 2005, quando o filme foi lançado, a juíza Luísa Hickel Gamba, da 2ª Vara Federal de Joinville, negou pedido para proibir a exibição do filme em todas as salas de cinema do país porque a classificação foi alterada de livre para 12 anos.

Madagascar, que foi dirigido por Eric Darnell e Tom McGrath, conta a história de quatro animais do zoológico de Nova York que foram transferidos para a África.

Leia a decisão

Ação Civil Pública 2005.72.01.004012-6/SC

Autor : Associacao Mais Regional Mais Vida Maremavi

Advogado : George Alexandre Rohrbacher

Réu : United International Pictures Distribuidora de Filmes Ltda/ UIP

Advogado : Emerson Souza Gomes

Réu : Agencia Nacional do Cinema Ancine e União Federal

SENTENÇA

I – RELATÓRIO

Trata-se de ação civil pública ajuizada pela Associação Mais Regional Mais Vida – MAREMAVI, com pedido liminar, em face de United International Pictures Distribuidora de Filmes Ltda. – UIP, Agência Nacional do Cinema – ANCINE e União, visando obter provimento jurisdicional a fim de impedir a exibição e a produção do filme Madagascar em toda e qualquer sala de apresentação no país, bem como seja vedada a locação, venda, exposição e outras forma de apresentação, no todo ou em parte, do referido filme, além de todos os materiais publicitários e promocionais alusivos ao filme Madagascar, ou, subsidiariamente, seja alterada a classificação do filme, a fim de anunciar ao público a classificação indicativa. Formulou, ainda, pedido condenatório, a fim de pedir a condenação da distribuidora para ressarcir os danos morais e materiais acarretados pelo ato lesivo, bem como ao pagamento das custas e honorários de advogado.

Refere que a United International Pictures Distribuidora de Filmes Ltda., distribuiu no país a produção cinematográfica com o título “Madacasgar”, inicialmente para exibição nos cinemas, a qual foi atribuída pelo Departamento de Justiça, Classificação, Qualificação e Títulos – DJCTQ, do Ministério da Justiça, classificação indicativa na faixa livre, o que permite o amplo acesso ao público infantil e adolescente. Informa que a película traz consigo inúmeras passagens com linguagem subliminares alusivas uso de drogas, em especial ao ecstasy, já que as imagens referentes do uso de substâncias entorpecentes (alucinógenas) se dá num contexto divertido e ingênuo, com “bichinhos”, músicas, cenários multicoloridos “alucinados por dezenas de segundos”. Relata cinco cenas do filme relacionadas a termos e efeitos do uso de drogas, sobretudo ao uso do ecstasy: na primeira, a girafa, personagem da história, animada, expõe a língua com uma bala circular de cor azul, referindo antes que “aqui eles dão bala de graça”; na segunda, o leão, dentro do metrô, ouve o aviso “estação central” e imediatamente questiona aos demais personagens “alguém falou liberou geral?”; na terceira, o mesmo leão, sob o efeito de dardo tranqüilizante que lhe foi dirigido, diz “eu amo todos vocês” e passa a ter alucinações sob o fundo da música The Candyman; na quarta, o leão acorda do efeito do tranqüilizante e balbucia “… Tem mais?”, parecendo solicitar mais drogas, sendo que na seqüência é novamente alvejado com tranqüilizantes e as cenas multicoloridas se repetem mais rapidamente e, por fim, na quinta cena descrita na inicial, os personagens do filme chegam a ilha de Madacasgar e se deparam com uma festa rave na floresta, com um forte embalo musical e incontáveis lêmures dançando, sendo que um dos personagens, a zebra, ensaia um sacolejo de corpo e lamenta “Oh… Eu deveria ter trazido uma balinha…!”. Segundo a inicial, “trata-se de uma indução velada, cujo veículo é a mensagem explícita e contextualizada (festa Rave) ao uso da droga Ecstasy”, denominada vulgarmente como balinha, normalmente na cor azul. A inicial refere ainda várias manifestações de consumidores, psicólogos e educadores sobre a percepção das referidas cenas no filme, alegando que elas sem dúvida também não passam despercebidas das crianças que tiveram acesso ao filme. Refere, por fim, decisão anterior do Juízo da Infância e da Juventude da Comarca de Joinville que proibiu a exibição do filme no Município a menores de 18 anos. Fundamenta a ação no art. 19 do Estatuto da Criança e do Adolescente e no art. 6º, I e VI, do Código de Defesa do Consumidor, atribuindo responsabilidade solidária às rés, UIP, distribuidora do filme no Brasil; União, responsável pela classificação indicativa do filme; e ANCINE, que exerce o poder de polícia das obras cinematográficas no país.


A União e ANCINE foram intimadas para se manifestarem na forma e prazo do art. 2º da Lei nº 8.437, de 1992 (fl. 68).

A União alega que o pedido liminar de vedação da apresentação e comercialização do filme e o pedido final de banimento da produção do comércio brasileiro correspondem à imposição de censura, vedada nos arts. 5º, IX, e 220, ambos da Constituição Federal. Refere, por outro lado, que a classificação etária das produções artísticas é feita por meio do Sistema de Classificação Indicativa, instituído a partir de metodologia científica que permite fazer averiguação isenta de toda e qualquer produção, com amplos debate e participação popular e publicação final no DOU, conforme consta da Portaria nº 1.597, de 02.07.2004, sendo certo que a inicial não aponta qualquer vício no procedimento que atribuiu classificação indicativa ao filme em questão. Alega, ainda, que dentro da sistemática legal existente no país, não há cabimento no pedido principal deduzido pelo autor, apenas porque na visão de um seguimento minoritário da sociedade, o filme apresenta alusões ao consumo de drogas, apologia a outras condutas, etc. Manifesta-se, assim, pelo indeferimento dos pedidos liminares formulados na inicial, ou, em caso contrário, pela aplicação do art. 16 da Lei nº 7.347, de 1985, a fim de que eventual liminar deferida tenha efeitos apenas nos municípios que compõem a Subseção Judiciária de Joinville.

A ANCINE, por sua vez, alega apenas ilegitimidade passiva ad causam, visto que a classificação etária indicativa impugnada na inicial não é da sua competência, sendo atribuição da Secretaria Nacional de Justiça, órgão vinculado diretamente à União, e que exerce atividade de fiscalização do cumprimento da legislação referente à atividade cinematográfica e videofonográfica nacional e estrangeira nos diversos segmentos de mercados, na forma do regulamento, a teor do art. 7º, II, da MP n.º 2.228-1/2001.

Pela petição das fls. 133/142, a União informa que a Secretaria Nacional de Justiça, pelo Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, relatou que na versão legendada do filme, tanto o trailer quanto o longa metragem da película em tela recebeu a classificação LIVRE porque não foram detectadas quaisquer aspectos que o tornassem inadequados, nem alusões ao consume de entorpecentes (Protocolo 08017.002687/2004-82 e 08017.00183/2005-11, respectivamente).

No que se refere à versão dublada, o órgão referido prestou informações no sentido de após a manifestação da MAREVI procedeu à revisão da análise dos processos supra, concluindo, ao final, que o filme Madagascar apresentava duas cenas de consumo de droga lícita, sob um enfoque positivo (fl. 134).

Relata que considerando as alegações da presente ação, bem como o trâmite do procedimento de classificação da produção para lançamento no mercado de CVC/VÍDEO/VHS, reclassificou o filme “Madacasgar” na faixa “inadequado para menores de 12 anos”, conforme Nota Técnica nº 48/2005/CCLASS-DJCTQ-SNJ-MJ, de 16.09.2005. Repassa, ainda, informação daquele departamento de que a classificação indicativa na faixa livre foi atribuída mediante análise do trailer e das versões originais e legendadas, nas quais as falas dos personagens nas cenas referidas na inicial têm conteúdo diverso das que constaram da versão dublada, não analisada na classificação indicativa para exibição nos cinemas, a qual concluiu que existem duas cenas no filme que apresentam consumo de droga lícita sob um enfoque positivo (fl. 142).

A autora juntou fotos de apreensões policiais da droga ecstasy (fls. 145-148), tomando conhecimento da reclassificação do filme por meio da respectiva publicação no Diário Oficial da União de 14.10.2005, impugna a atribuição da nova classificação indicativa de “inadequado para menores de 12 anos”, sustentando que é manifesta a apologia ao uso de drogas no referido filme e que nenhuma criança ou adolescente deve sofrer influência para o uso de drogas, razão pela qual a nova classificação também é equivocada e impunha-se o deferimento da liminar requerida na inicial (fls. 150/159).

Liminar indeferida (fls. 161-168), nos seguintes termos:

a) indefiro a pretensão liminar de vedação da exibição da produção “Madacasgar” em toda e qualquer sala de cinema do país, bem como da locação, venda, exposição e apresentação de toda e qualquer mídia ou meio contendo a animação, sobretudo DVD e VHS, e de todo e qualquer material promocional ou produto associado ao referido filme; e

b) reconheço a perda de objeto do pedido liminar subsidiário, para alteração da classificação indicativa do filme, em face das informações contidas nas fls. 133/142, de que referida classificação já foi alterada, bem como de que a versão dublada do filme foi adequada.


Assinalo, entretanto, que, embora tenha sido reconhecida a perda de objeto do pedido liminar subsidiário, é imprescindível que a comercialização do filme em DVD/VÍDEO/VHS, com lançamento em breve, observe, no mínimo, a nova classificação que determinou a perda do objeto, bem como as edições para adequação do texto, referidas nas informações das fls. 139/142.

Em contestação, a União argúi a ilegitimidade ativa, ante a ausência de pertinência temática entre os fins colimados pela associação e o objeto pretendido nesta demanda, eis que possui finalidade de atender as necessidades do Hospital Regional Hans Dieter Schmidt.

No mérito, alegou que a ação tem por objetivo promover uma “sorte de censura impeditiva da divulgação da produção cinematográfica em apreço”, e que o art. 5º, IX, da Constituição Federal expressa que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, e que, conjugando este artigo com o art. 220, § 3º da CF, compete à lei federal regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao poder público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendam, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada. Reitera que a liberdade de expressão é uma garantia constitucional. Por fim, pugnou pela constitucionalidade do art. 16 da Lei n.º 7.347/85, formulando pedido sucesso no sentido de, sendo o pedido liminar deferido, que respeitasse os limites territoriais da competência deste Juízo.

Juntou mais documentos (fls. 197-227).

Na contestação, a UIP alega, em preliminar, ilegitimidade ativa ante a ausência de pertinência temática da demanda em face das finalidades da associação, a qual também refere descumprir o requisito do transcurso de um ano de constituição da pessoa jurídica, quando do ajuizamento da ação, tendo em vista que o CNPJ da autora tem data de 14.09.2004 (doc. 14) e o registro do estatuto somente ocorreu em 12.04.2005. No mérito, alega impossibilidade jurídica do pedido, tendo em vista que o pedido de condenação por danos morais que surgem da presente demanda, atingiria difusamente os eventuais lesados, não sendo possível aferir o quantum para a indenização, e que, a quantia tampouco foi indicada pelo autor. Aludiu, também, ausência do interesse de agir, pois a reclassificação indicando a inadequação da película para menores de 12 anos, foi realizada cujo documento consta à fl. 167.

Ainda nas preliminares, a UIP argüiu ilegitimidade passiva para figurar no feito, pois não tem a competência legal para promover a classificação indicativa dos filmes por ela distribuídos, mas sim, que esta tarefa compete ao Ministério da Justiça, por meio do órgão destacado para tal fim. Defendeu a tese da não ocorrência dos danos morais, ante a não comprovação do nexo causal entre a apresentação da película e o consumo de drogas pelo público, e que não há falar em dano moral coletivo, pois não é possível aferir a divisibilidade da ofensa e da reparação da lesão, tampouco fixar critérios para fixação de danos morais.

No mérito, rebateu os argumentos da autora, afirmando que as cenas aludidas não podem ser interpretadas isoladamente, eis que as expressões no original em Inglês, não possuem o mesmo significado que a autora atribui, isto é, não possuem alusões ao uso de entorpecentes, sendo que a Constituição Federal assegura a liberdade de expressão, no art. 5º IX, bem como que no art. 220, § 3º, da CF, que incumbe ao poder público a regulação, pelo poder público, dos espetáculos e atividades que destoem do interesse público.

Juntou documentos (fls. 286-749).

Contestação apresentada pela ANCINE, a qual repisou os argumentos da manifestação supra referida (fls. 764-768).

Manifestação da autora sobre as contestações apresentadas (fls. 774-788), com novos documentos.

Manifestação do Ministério Público Federal às fls. 816-826, pugnando pela sua intervenção no feito como custos legis, bem como pela procedência, em parte, do pedido, para que seja a distribuidora condenada a ressarcir os danos morais coletivos derivados da exposição das crianças e adolescentes ao conteúdo da produção inadequada para a sua faixa etária.

Sem provas a serem produzidas em audiência, vieram os autos conclusos para sentença.

II – FUNDAMENTAÇÃO:

2.1 PRELIMINARES:

a) Legitimidade de partes:

a.1) Legitimidade ativa:

Argúi a ré UIP a ilegitimidade ativa da associação autora, por não cumprir com o requisito “tempo de um ano de constituição” para poder intentar a presente ação coletiva.

O art. 220 da Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), confere à associação a legitimidade para ajuizar ação coletiva dentro dos escopos da própria lei, conforme se depreende:


Art. 210. Para as ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público;

II – a União, os estados, os municípios, o Distrito Federal e os territórios;

III – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por esta Lei, dispensada a autorização da assembléia, se houver prévia autorização estatutária.

§ 1º Admitir-se-á litisconsórcio facultativo entre os Ministérios Públicos da União e dos estados na defesa dos interesses e direitos de que cuida esta Lei. (Grifou-se).

Tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90) como a Lei de Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/85), ao legitimar as associações para figurarem no pólo ativo deste tipo de demanda coletiva, estabelecem o requisito do transcurso de um ano da constituição da associação, para adquirir a legitimidade ad processum.

Observo que quando do ajuizamento da presente, em 23 de agosto de 2005, ainda não havia transcorrido um ano da constituição da pessoa jurídica autora, sendo certo que a existência legal da pessoa jurídica se inicia com o registro de seus atos constitutivos, nos termos do artigo 45 do Código Civil de 2002. O estatuto social da autora data de 27 de junho de 2004, mas foi registrado apenas em 03 de setembro daquele ano, conforme fls. 18/36. Assim, na data da propositura da ação faltavam onze dias para autora completar um ano de constituição.

No entanto, entendo que o requisito temporal previsto na lei deve ser adotado com temperamentos, a depender, pois da relevância e da urgência da situação concretamente considerada, bem como dos direitos e interesses a tutelar. Neste sentido, os Tribunais têm se posicionado:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONJUNTO RESIDENCIAL. MUTUÁRIOS. SISTEMA FINANCEIRO DA HABITAÇÃO. MUDANÇA DOS MORADORES DIANTE DO RISCO DE DESABAMENTO. REQUISITO DA PRÉ-CONSTITUIÇÃO HÁ UM ANO DISPENSADO.

-Presente o interesse social evidenciado pela dimensão do dano e apresentando-se como relevante o bem jurídico a ser protegido, pode o juiz dispensar o requisito da pré-constituição superior a um ano da associação autora da ação.

Recurso especial não conhecido. RECURSO ESPECIAL – 520454, DJ DATA: 01/07/2004 PÁGINA:204, Relator Barros Monteiro

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA.

RELEVÂNCIA DO PEDIDO. MANIFESTO INTERESSE SOCIAL. DISPENSA DO REQUISITO DO PRAZO DE PRÉ-CONSTITUIÇÃO. POSSIBILIDADE.

“AO JUIZ CABE DISPENSAR O PRAZO DE PRÉ-CONSTITUIÇÃO DA ASSOCIAÇÃO, AVALIANDO, NO CASO CONCRETO, SE OCORREM OS PRESSUPOSTOS DA LEI, ISTO É, O MANIFESTO INTERESSE SOCIAL EVIDENCIADO PELA DIMENSÃO OU CARACTERÍSTICA DO DANO OU PELA RELEVÂNCIA DO BEM JURÍDICO A SER PROTEGIDO. NESSE CASO, A LEGITIMIDADE ATIVA DA ASSOCIAÇÃO CONSTITUÍDA A MENOS DE UM ANO, FICA SUBORDINADA À AVALIAÇÃO DO JUIZ. O ATO JUDICIAL NÃO É DISCRICIONÁRIO, MAS VINCULADO, COMPETINDO AO MAGISTRADO A INTEGRAÇÃO DOS CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS MENCIONADOS PELA NORMA SOB COMENTÁRIO”. – APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. Processo: 200083000035579 UF: PE, Relatora: Desembargadora Federal Margarida Cantarelli – DJ – Data: 01/12/2000 – Página: 732.

Aliás, o artigo 82, §1º, do CDC, prevê a dispensa do requisito da pré-constituição “quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.”

Desse modo, tendo em vista a relevância dos bens jurídicos a que se busca tutelar, afasto o referido requisito legal, devendo ser considerado também que por ocasião do ajuizamento a autora estava a poucos dias de completar um ano de constituição.

Ainda dentro da seara da legitimidade ativa, a União assinala carência de ação, não só pelos argumentos acima enfrentados, mas pela ausência de pertinência temática entre os fins institucionais da autora e o objeto da ação.

A legitimidade das associações para defesa coletiva dos interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, aos quais se vinculam suas finalidades institucionais, encontra-se expressamente prevista no artigo 5º da Lei n.º 7.347 de 24 de julho de 1985. Verifica-se, assim, que a lei estabeleceu, em regra, três requisitos que vinculam a atuação das associações na tutela dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, quais sejam: a) sua regular constituição nos termos da lei civil (requisito formal); b) sua prévia constituição há pelo menos um ano (requisito formal) e; c) a inclusão, dentre suas finalidades institucionais, a proteção ao interesse transindividual, objeto da tutela coletiva em concreto (meio ambiente, consumidor, ordem econômica, livre concorrência ou patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico), o que se convencionou denominar de pertinência temática.


Observando o estatuto inaugural da associação autora, é possível aferir que é parte legítima para propor a presente ação, pois, no art. 2º constam como finalidades da autora, dentre outras: promover a defesa do meio ambiente, da cultura, do cidadão contribuinte, do cidadão consumidor (inciso VII); promover ativamente a vida, o bem-estar e a cidadania, com enfoque especial à saúde, família, educação e meio ambiente (inciso XII). Assim, não há que se falar em ausência de pertinência temática, pois a defesa dos direitos do cidadão consumidor e a promoção da educação e do bem-estar da família, abrange também medidas para preservar o público infanto-juvenil de espetáculos e diversões que estejam em desacordo com a sua maturidade de perceber, observar e discernir sobre o conteúdo das mensagens expressas.

A.2) Legitimidade passiva:

Superada a questão da legitimidade ativa, passo, agora, a analisar a legitimidade passiva das rés.

Rejeito a preliminar de ilegitimidade passiva formulada pela ré United Internacional Pictures Distribuidora de Filmes Ltda., pois na sua atividade empresarial se insere: a exibição e a reprodução de sons e imagens das produções cinematográficas, para a televisão e cinema; a exploração de sua produção artística em casas de diversões e espetáculos; operações referentes à preparação, montagem e dublagem e acabamentos de filmes e cópias e outras formas de operações referentes a outras formas de reprodução e imagem (fls. 331-333).

Por fim, analiso a legitimidade em relação à ANCINE, criada pela MP 2.228-1/01 (ainda em vigor por força da EC n.º 32/01), autarquia especial, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, a qual consiste em órgão de fomento, regulação e fiscalização da indústria cinematográfica e videofonográfica, dotada de autonomia administrativa e financeira, cujos objetivos encontram-se no art. 6º, quais sejam:

Analisando os objetivos do art. 6º e 7º da referida Medida Provisória, conclui-se que tal agência reguladora tem o foco voltado às atividades de fomento da produção cinematográfica nacional, mas não tem a competência para realizar a classificação indicativa e o poder de polícia decorrente da atividade, eis que esta incumbência legal ficou a cargo da Secretaria Nacional de Justiça, em seu Departamento de Classificação, Justiça, Títulos e Qualificação, nos termos do art. 74 da Lei n.º 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) e da Portaria 1220/07, que atualmente dispõe sobre a classificação indicativa.

Assim, excluo a ANCINE do pólo passivo da demanda, nele permanecendo a União e a UIP.

Por fim, a preliminar de impossibilidade jurídica do pedido de indenização por dano moral difuso veicula, em verdade, matéria de mérito.

2.2) MÉRITO:

Do dever de proteção à infância e adolescência

Embora o modelo constitucional adotado em 1988 preveja, como garantia fundamental, a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura e licença, de acordo com o art. 5º, inciso IX, e art. 220, caput e §2º, da Constituição Federal, é certo que esta liberdade não é absoluta a ponto de ferir outros preceitos e objetivos visados pela própria Constituição, que no art. 21, XVI, também estipula que à União compete a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão.

No espírito que anima a Constituição, não só o Estado é responsável pela educação e formação da criança e do adolescente, com políticas públicas de educação, saúde e assistência social, é também papel da família o acompanhamento da educação, a formação e a proteção dos filhos, o que compreende também, dentro das prerrogativas do poder familiar conferido aos pais, o dever de verificar a adequação do conteúdo das diversões e leituras a que os menores têm acesso.

A Constituição Federal, firme no seu propósito de proteger a infância e a adolescência, conferiu à União o desígnio de proceder à classificação indicativa diversões públicas e de programas de rádio e televisão, de acordo com os seus arts. 21, inciso XVI, e 220, § 3º, inciso I. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 75, confere ao público infanto-juvenil o acesso às diversões e espetáculos públicos classificados como adequados à sua faixa etária, dispondo acerca do papel do Poder Público neste tema:

Art. 75. O poder público, através do órgão competente, regulará as diversões e espetáculos públicos, informando sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.

Parágrafo único. Os responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição, informação destacada sobre a natureza do espetáculo e a faixa etária especificada no certificado de classificação. (Grifou-se).


Especificamente no que concerne à programação televisa, dispõe o artigo 3º da Lei nº 10.359, de 2001:

Art. 3o Competirá ao Poder Executivo, ouvidas as entidades representativas das emissoras especificadas no art. 1o, proceder à classificação indicativa dos programas de televisão.

Parágrafo único. A classificação indicativa de que trata o caput abrangerá, obrigatoriamente, a identificação dos programas que contenham cenas de sexo ou violência.

Das disposições constitucionais e legais referidas, infere-se a atuação reguladora do Estado nesta seara, no sentido de classificar as diversões e espetáculos públicos, informando sobre sua natureza, a faixa etária adequada, indicando os horários em que sua apresentação se mostre inadequada, com o objetivo de efetivar a proteção das crianças e adolescentes.

Nos termos da Portaria MJ n.º 1.220, de 11 de julho de 2007, no procedimento para a classificação indicativa deve haver obediência ao princípio democrático, com a participação da sociedade no processo, para bem atender aos fins a que foi concebida, verbis:

Art. 3º. A classificação indicativa possui natureza informativa e pedagógica, voltada para a promoção dos interesses de crianças e adolescentes, devendo ser exercida de forma democrática, possibilitando que todos os destinatários da recomendação possam participar do processo, e de modo objetivo, ensejando que a contradição de interesses e argumentos promovam a correção e o controle social dos atos praticados.

Art. 4º. Cabe ao Departamento de Justiça, Classificação, Títulos e Qualificação, vinculado à Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça – DEJUS/SNJ, exercer a classificação indicativa dos programas e obras audiovisuais regulados por esta Portaria.

Nesta esteira, as obras audiovisuais, e, portanto, as cinematográficas, passam por este processo, embora, repito, a informação sobre a natureza e o conteúdo de obras audiovisuais, suas respectivas faixas etárias e horários indicados para exibição é meramente indicativa aos pais e responsáveis, pois a pura e simples proibição de exibição por parte do Estado configuraria censura, atitude vedada desde o advento da Constituição Federal de 1988 (art. 5º, IX e 220, § 2º).

O assunto já foi enfrentado pelos Tribunais brasileiros:

ADMINISTRATIVO. PROGRAMA DE TELEVISÃO. CLASSIFICAÇÃO DE IDADE DO PÚBLICO E HORÁRIO DE EXIBIÇÃO. INEPCIA DA INICIAL. LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA VISANDO DEFESA DE INTERESSES DIFUSOS DE CRIANÇAS E ADOLECENTES. RECLASSIFICAÇÃO DO HORÁRIO SEM MOTIVAÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO.

1. Não é inepta a petição inicial se, antes da citação dos réus, o autor explicita os fatos e os fundamentos jurídicos do pedido (nulidade de ato do Ministério da Justiça que alterou classificação de quadro de programa televisivo).

2. O Ministério Público tem legitimidade ativa ad causam para o ajuizamento de ação civil pública visando à proteção de interesses difusos da criança e do adolescente.

3. A sentença não é extra petita, pois apreciou o pedido nos termos em que foi deduzido e não houve condenação em diferente do pedido.

4. “A liberdade de produção e programação das emissoras de televisão não é absoluta e sofre restrições, entre outras, para observância do direito ao respeito da criança e dos adolescentes, constituindo deveres da família, da sociedade e do estado colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.” (STJ, REL. MIN. Pádua Ribeiro, MC 003335, DJ. 18.12.2000).

5. Não há censura por parte da sentença apelada, pois não proibiu a exibição de programa televisivo, mas apenas a classificação de idade da audiência e horário adequados para sua veiculação.

6. É invalido o ato de administração que, sem motivação técnica, altera a classificação de idade (de maiores de 14 anos para maiores de 12 anos) e do horário (a partir das 21:00 horas para as 20:00 horas).

7. Não imiscuiu-se o decisum no mérito do ato administrativo, limitando-se a contestar a ausência de motivo válido para a reclassificação do programa.

8. Apelações improvidas.

9. Remessa improvida. Decisão: por maioria. TRF 1ª Região AC – APELAÇÃO CIVEL – 200038000362271, Relator, Desembargador Federal Fagundes de Deus. DJ DATA: 14/12/2007 PAGINA: 28.

Da liberdade de expressão

O princípio constitucional que garante a liberdade ao cidadão irradia-se em vários pontos, tais como: locomoção, crença, exercício profissional expressão intelectual, artística e científica (art. 5º, XV, VI, VIII, IX, da Constituição Federal, para citar alguns exemplos). Como visto acima, nenhum princípio constitucional é absoluto e no caso concreto é que se poderá realizar a ponderação entre aqueles princípios que se encontrem em conflito.


Como exemplo de ponderação entre princípios, cito a decisão do STF no julgamento do Habeas Corpus n.º 82.424, que enfrentou os limites à liberdade de expressão, entendendo vedadas pelo ordenamento jurídico manifestações que contenham apologia ao racismo e ao anti-semitismo:

[…]

Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.

As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. STF, HC n.º 82.424, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 19-03-2004.

Para que se configure abuso da liberdade de expressão, são necessárias propagação de idéias com real potencial lesivo aos demais interesses tutelados pela Constituição, não sendo possível sequer cogitar de supressão de protestos em relação a ato governamental, situação já enfrentada pelo TRF 4ª Região, que entendeu descabida tal conduta no julgamento do Agravo de Instrumento n.º 1998.04.01.064429-8/RS, cujo trecho da ementa colaciono abaixo:

[…] Impedir ou tolher a liberdade de expressão e manifestação de qualquer grupo de interesses fere cardeais princípios constitucionais. Tanto os grupos e lideranças dos denominados sem-terra ou assentandos, como a associação e sindicatos de ruralistas, devem ficar em posição de equilíbrio ao que respeita à possibilidade de manifestarem os seus pontos de vista, quer em grupos, quer isoladamente, fazendo-se presentes aos atos vistoriais ou executórios de medidas administrativas. AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 1998.04.01.064429-8/RS, publicado na Revista TRF 4ª Região n.º 33.

No que se refere à propaganda comercial, inserida dentro do contexto de liberdade de expressão, deve ser exercida dentro os limites estabelecidos pela própria Constituição, que, no art. 220, visou proteger e alertar a população acerca dos malefícios do fumo, bebidas, medicamentos e agrotóxicos.

Em respeito às produções artísticas, nosso sistema constitucional respeita a ampla liberdade de criação, sempre, é claro, dentro dos princípios supra referidos, por serem tais manifestações, em parte, expressão de momentos culturais, políticos e sociais de um povo.

Na lição de José Afonso da Silva, “determinadas expressões artísticas gozam de ampla liberdade, como as das artes plásticas, a música e a literatura. Certas manifestações artísticas, contudo, ficam sujeitas a uma regulamentação especial, consoante prevê o art. 220, § 3º, que declara competir à lei federal tal encargo”. (SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 246-247).

É o caso do cinema, cujas produções não sofrem restrição quanto a sua criação, passando somente pelo crivo do órgão competente do Ministério da Justiça, que fará a classificação indicativa para poder informar previamente o público destinatário acerca do conteúdo que da produção, não proibindo que os cidadãos tenham acesso às obras.

Do caso concreto:

A associação autora deduz pedido em juízo visando obter provimento jurisdicional a fim de impedir a exibição e a produção do filme Madagascar em toda e qualquer sala de apresentação no país, bem como seja vedada a locação, venda, exposição e outras formas de apresentação, no todo ou em parte, do referido filme, além de todos os materiais publicitários e promocionais alusivos à produção cinematográfica, ou, subsidiariamente, seja alterada a classificação do filme, a fim de anunciar ao público a correta classificação indicativa.

Inicialmente, quando a distribuição do filme foi realizada no país, obteve classificação indicativa no Ministério da Justiça e recebeu o conceito LIVRE, tendo em vista a análise da película legendada (27.05.2005). Posteriormente, a classificação do filme foi refeita e, em 14.10.2005, o Ministério da Justiça passou a considerá-lo inadequado para menores de 12 anos, nos termos do despacho publicado no DOU (fl. 155), eis que, ao ter contato com a obra dublada, observou que no filme havia cenas de uso de drogas lícitas (fl. 156).

Nesse contexto, oportuno ressaltar, mais uma vez, a natureza jurídica da classificação indicativa, a qual se consubstancia em um procedimento constitucionalmente previsto visando proceder à adequação dos princípios da proteção à infância e adolescência versus liberdade de expressão. A Constituição prevê que deverá ser realizada de forma democrática, com a participação da sociedade, isto é, famílias, associações, ONG’s, etc., seguindo um conjunto de regras a fim de atender ambos direitos constitucionais. Por exemplo: exibição de filme com muitas cenas de nudez deve ser indicada para o período noturno e da madrugada, para que as crianças não tenham contato com o conteúdo do mesmo. Assim, tanto a liberdade de expressão fica assegurada, dentro dos limites constitucionais e legais, bem como fica atendido o objetivo do poder público de evitar que tais produções cheguem à vista daqueles com discernimento ainda não amadurecido.


Embora seja um processo administrativo, sua conclusão final não é imutável, pois pode ser alterado/revisto por intermédio da participação popular, a qual tem a prerrogativa de, ao longo das exibições dos programas, filmes, etc., opinar, recomendar, sugerir, protestar pela a indicação feita pela Secretaria Nacional de Justiça. Alguns casos envolvendo programas de humor e reality shows passaram por nova análise mediante representação da sociedade. Com estes exemplos, é possível concluir que a classificação inicialmente extraída de uma obra artística, pode ser alterada com o decorrer da exibição, que tanto poderá elevar a idade recomendada, como é o caso dos autos, quanto diminuí-la, por exemplo de 16 (dezesseis) para 14 (catorze) anos, caso a intensidade das cenas que não seriam recomendadas (sexo, nudez, uso de drogas, violência, agressões domésticas, etc.) estejam de acordo com a idade do público infanto-juvenil destinatário.

À vista disso, o fato de o filme ter sido inicialmente exibido com a classificação LIVRE e, meses depois, ter sido objeto de reclassificação pelo Ministério da Justiça, não caracteriza, por si só, ação ou omissão danosa às crianças que com ele tiveram contato.

Diga-se, por oportuno, que o contexto em que são consumidas drogas lícitas diz respeito à personagem girafa, que é hipocondríaca, e não é vista de uma forma positiva propriamente. Ao que parece a circunstância de ser hipocondríaca demonstra a fragilidade da personagem, que é satirizada no filme. Assim, tenho que as crianças não se espelhariam na girafa, que não detém atributos normalmente admirados por elas, como coragem e astúcia.

Assim, assentado que da mera reclassificação administrativa não se presume que os menores de doze anos que porventura assistiram ao filme sofreram danos, passo a analisar as demais alegações da autora.

A associação autora alega que o filme faz apologia ao uso de drogas ilícitas, pois as cenas, e, sobretudo, as falas na versão dublada citam os termos “balas de graça”, “balinha,” “liberou geral”, havendo cena de uma “festa rave”, de forte embalo musical, com a participação bichinhos na ilha de Madagascar (lêmures). Este fato demonstraria a alusão ao uso de entorpecentes, mormente ao psicotrópico ecstasy, que popularmente é conhecido como “bala” ou “balinha”, o que sugestionaria as mentes das crianças, podendo induzi-las ao uso do entorpecente.

A autora acosta diversos documentos, a transcrição da versão em Inglês e a transcrição da versão em português, nos quais tais expressões estariam fazendo referência aos entorpecentes ou a situações que circundam o consumo, dentre eles:

1) notícia veiculada no Diário de Natal/RN, no qual um traficante estaria vendendo entorpecentes via internet, utilizando o termo “balinha”, em referência ao ecstasy (fl. 62),

2) álbum de figurinhas que rememora imagens veiculadas no filme, tais como a girafa com um objeto azul na língua (segundo a autora, referência ao ecstasy e, conforme a ré, desodorizador sanitário),

3) mensagem descrita na fl. 96 com os dizeres: “o tranquilizante proporciona sonhos coloridos a Alex, mas ele vai ter uma surpresa quando acordar” fl. 114,

4) fotos de imagens veiculadas na televisão demonstrando apreensão policial da droga ecstasy (algumas de cor azul, fls. 145-148),

5) parecer firmado por psicóloga, que refere haver no filme “desde aspectos comportamentais, considerados desviantes, inclusive poderosíssimos interesses econômicos de enfoques legais, como por exemplo este filme de tão expressiva venda de bilheteria”;

6) cópia da decisão judicial prolatada na Justiça Estadual, que proibiu a exibição do filme nas salas de cinema deste Município (Shopping Mueller, Shopping Cidade das Flores e Shopping Americanas), que está proibido o acesso de crianças e adolescentes, mesmo acompanhadas, ao filme, devendo-se afixar cópia desta decisão na bilheteria, sob pena de multa, por cada criança ou adolescente, em R$500,00 (quinhentos reais). Ação 038.05.036162-4, da Vara da Infância e Adolescência, que se declarou incompetente, remetendo o conhecimento do feito a este Juízo Federal;

Conforme restou decidido em sede liminar, o atendimento dos pedidos de proibição de exibição do filme constituiria censura, motivo pelo qual mostram-se manifestamente improcedentes.

Da referida decisão liminar (fls. 161/168) extraio: “Com efeito, a Constituição Federal assegura liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (art. 5º, IX, CF), bem como que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observadas apenas as limitações impostas pela própria Constituição (art. 220 da CF), entre as quais figura a possibilidade de o poder público informar a natureza das diversões e espetáculos públicos, as faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada (§ 3º, I, do art. 220 da CF). Assim, não é o caso de vedar a distribuição, comercialização ou exibição do referido filme, como requerido no pedido liminar principal, mas apenas de limitar-lhe o acesso à faixa etária adequada, como requerido no pedido liminar subsidiário”.


Feitas essas considerações, analisando as transcrições, as demais provas deduzidas e as imagens veiculadas no filme, é possível observar desenho animado de alta tecnologia produzido em outro país, cujas falas foram vertidas para o português.

É sabido que toda a tradução ou versão de um idioma para outro não é tarefa simples, pois demanda grande atenção à semântica tanto do idioma original quanto para o idioma a ser vertido. Por maior que seja o cuidado da tradução, é possível ocorrer divergências de interpretação das imagens e falas correspondentes, pois um termo que pode ser da máxima inocência num idioma, em outro, pode tomar uma conotação absolutamente imprópria para o público a que se destina.

Não é o caso de se observar a qualidade e a adequação de todas as falas constantes no filme, eis que já foram analisadas pelo órgão competente e readequadas pela distribuidora com o fito de evitar quaisquer mal-entendidos no sentido da apologia ao uso da droga, em especial ao termo “bala” ou “balinha”.

Conforme já explicitado no relatório da presente sentença, o item ‘b’ da liminar reconheceu a perda do objeto do pedido liminar subsidiário para alteração da classificação indicativa do filme Madagascar por ter a Secretaria do Ministério da Justiça procedido à reclassificação da indicação etária da obra em tela. Entretanto, tenho que no ponto houve efetivo reconhecimento do pedido, eis que, embora não tenha a União admitido que o filme faz apologia de drogas ilícitas, entendeu que há menção a uso de drogas lícitas, procedendo à reclassificação indicativa do referido filme.

Desta maneira, o ponto controverso do presente feito residiria no interregno compreendido entre o momento em que o filme começou a ser exibido, isto é, desde a data do lançamento em território nacional, ocorrido provavelmente nas férias escolares de julho de 2005, até o mês de outubro do mesmo ano, mês em que a classificação indicativa elevou para 12 anos a faixa etária mínima recomendada, devendo ser considerado também que em setembro do mesmo ano a distribuidora readequou algumas falas da versão dublada.

Assim, levando em consideração as nuances do presente caso, observa-se que algumas indagações dele decorrem, quais sejam: A liberdade de expressão foi abusivamente utilizada para alcançar um fim vedado pela lei (consumo de entorpecentes)? As crianças e pré-adolescentes que assistiram ao filme (com a indicação livre) entre julho e outubro de 2005 foram prejudicadas? Poderiam ter incorrido nas condutas sugeridas pelas mensagens, subliminares na visão da autora, apresentadas pelo filme? É possível observar o potencial grau de lesividade entre as imagens/diálogos do filme repercutindo na vida do público que teve contato com a obra cinematográfica?

Quanto à primeira pergunta, cabe lembrar que mensagens subliminares normalmente estão associadas à propaganda de produtos lícitos, não sendo razoável crer na existência de uma associação entre o estúdio cinematográfico e traficantes de ecstasy, com a finalidade de formar uma nova geração de consumidores desse tipo de droga ilícita. Assim, não é possível concluir que a distribuidora se utilizou da liberdade de expressão para alcançar um fim vedado pelo ordenamento jurídico.

Embora entenda não haver uma alusão proposital ao ecstasy, tenho que a primeira versão dublada do filme efetivamente incorreu em falta de cuidado.

Com efeito, os modernos filmes de animação, como o da espécie, são destinados tanto a adultos e quanto a crianças, sendo que algumas das piadas e alusões musicais e cinematográficas não são compreendidas pelas crianças, posto que destinadas ao público adulto. Em razão dessa particularidade o responsável pela obra deve tomar cuidados redobrados para que as piadas e alusões feitas com vistas ao público adulto não ofendam o legítimo interesse do público infanto-juvenil de não ser exposto a conteúdo inadequado.

A primeira versão dublada de Madagascar, divorciada do original em inglês, foi veiculada com falas do tipo “bala de graça”, “liberou geral” e “por que não trouxe uma balinha”, as quais podem ser interpretadas por alguns como alusivas ao ecstasy.

No entanto, deve ser considerado que crianças muito dificilmente interpretariam as cenas referidas pela autora como alusivas ao consumo de ecstasy. Aliás, até mesmo para adultos essa associação não transparece tão clara, como quer fazer crer a autora.

A ré UIP informa que em setembro de 2005 procedeu à readequação de algumas poucas falas dos personagens para evitar que qualquer diálogo carregasse conotação não pretendida pelos produtores do filme, o que obviamente não significa que tenha admitido que a primeira versão dublada fazia apologia ao uso de drogas. Assim, as expressões “bala de graça”, “liberou geral” e “por que não trouxe uma balinha” foram substituídas por “drops de graça”, “ponto final” e por que não trouxe um salgadinho”, respectivamente (fls. 200-201).

É de se ter em mente também que o acesso a cinema é restrito, em vista do preço proibitivo dos ingressos, tendo, portanto, a obra cinematográfica atingido parcela pequena da população.

Desse modo, apesar de constatar que a primeira dublagem não foi muito adequada, não é razoável admitir que alguém, criança ou mesmo adulto, tenha passado a consumir ecstasy estimulado pelo filme Madagascar.

Quanto à versão legendada, de se observar que não apresenta os mesmos problemas da versão dublada. As cenas da girafa com um objeto azul na boca, dos animais no metrô e na festa “rave”, desacompanhadas das falas da versão dublada, não são passíveis de serem interpretadas como alusivas ao ecstasy. Aliás, quanto à cena da girafa, fica bastante claro que ela tem um desodorizador sanitário na boca.

Em conclusão, depois de analisar todos os argumentos expostos pelas partes e de assistir ao filme por inúmeras vezes, entendo que falta ao filme Madagascar o potencial lesivo aludido na inicial, sendo improcedente o pedido de indenização por danos morais.

3. DISPOSITIVO:

Ante o exposto:

a) reconheço a ilegitimidade passiva da ANCINE e, quanto a ela, extingo o processo sem julgamento de mérito, nos termos do artigo 267, VI, do CPC;

b) julgo improcedente o pedido de vedação da exibição da produção Madacasgar em toda e qualquer sala de cinema do país, bem como da locação, venda, exposição e apresentação de toda e qualquer mídia ou meio contendo a animação, sobretudo DVD e VHS, e de todo e qualquer material promocional ou produto associado ao referido filme, nos termos do art. 269, inciso I, do CPC:

b) havendo reconhecimento do pedido subsidiário de reclassificação indicativa do referido filme, no ponto extingo o processo com fundamento no artigo 269, inciso II, do CPC;

c) julgo improcedente o pedido de dano moral coletivo, com fulcro no artigo 269, inciso I, do CPC.

Sem condenação em custas e honorários à vista da sucumbência recíproca, bem como considerando os termos do artigo 18 da Lei nº. 7.347/85.

Publique-se. Registre-se. Intime-se.

Joinville, 14 de outubro de 2008.

GIOVANA GUIMARÃES CORTEZ

Juíza Federal Substituta na Titularidade Plena

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