Lógica do mercado

Não deveria haver concessão pública para televisão privada

Autor

  • Ericson Meister Scorsim

    é advogado doutor em Direito pela USP autor do livro “Televisão Digital e Comunicação Social: aspectos regulatórios” e mantém o site www.tvdigital.adv.br

28 de outubro de 2008, 12h30

A introdução da TV Digital no cenário brasileiro é oportuna para refletirmos sobre o seu regime jurídico, avaliando seu estado atual e a sua evolução futura tão necessária para a democracia, em termos de pluralidade de meios e de conteúdo audiovisual.

O modelo tradicional do serviço de televisão por radiodifusão, representado pela TV aberta, está fundado na matriz clássica de serviço público, disciplinado na forma da desatualizada Lei 4.117/62.

A União é a titular do serviço, daí porque o particular somente poderá explorá-lo mediante concessão. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência afirmam que a TV por radiodifusão é um serviço público.

Não é, portanto, um regime favorável à liberdade de radiodifusão. Se determinadas empresas quiserem prestar o serviço de televisão somente poderão fazê-lo mediante a obtenção da concessão. Vale dizer, o direito à prestação do serviço é concedido pelo Poder Público.

Em que pese o respeitável entendimento, proponho uma nova compreensão sobre o tema a partir do enquadramento dos serviços de televisão no sistema de radiodifusão privado como atividade econômica em sentido estrito.

Defendo, então, o afastamento do regime de concessão de serviço público do setor comercial de radiodifusão. Em sua substituição será adotada a autorização administrativa para a prestação de uma atividade privada, submetida, porém, a uma autoridade reguladora.

Como conseqüência deste modelo inovador, devemos repensar a imposição de horários mínimos para a programação nacional e local, a gratuidade, a prestação de serviços paralelos à radiodifusão, a limitação da publicidade comercial e as restrições às tele-vendas, o horário político, a compra e venda de emissoras de tevê, entre outras questões.

O regime de liberdade de radiodifusão, por óbvio, não significa a ausência de regras. Ao contrário, exige a edição de normas favoráveis à liberdade, porém compatíveis com a responsabilidade dos meios de comunicação.

O regime de serviço público não deve ser abandonado, mas deve evoluir a ponto de servir aos sistemas público e estatal. Ou seja, serviço público é aquele ofertado pelas televisões estatais (TV Justiça, TV Senado, TV Câmara etc.) e as televisões públicas. Estas, em verdade, diferentemente, das emissoras estatais, não existem no setor de radiodifusão, mas tão somente na televisão a cabo. Em função disso, entendo ser necessária para a democracia a criação de espaços para as televisões comunitárias por radiodifusão.

Por décadas tem ocorrido a aplicação generalizada da noção de serviço público em relação a todos os sistemas de radiodifusão (privado, público e estatal), sem que tenha sido dada a devida atenção aos direitos fundamentais. É preciso reconstruir a noção de serviço público de televisão de modo a servir como um efetivo canal de realização dos direitos fundamentais (exemplos: educação, cultura, informação etc.), mediante a atividade de televisão. Por exemplo, por que não permitir que a TV Justiça transmita sessões de diversos tribunais para que os cidadãos possam acompanhar o julgamento de seus processos?

O instituto da concessão de serviço público utilizado no serviço de televisão por radiodifusão tem servido aos interesses dos concessionários e ao seu propósito lucrativo, ficando, em segundo plano, o interesse público. A concessão e o respectivo regime de serviço público contribuíram muito mais à formação de reservas de mercado e à concentração de poder econômico do que aos interesses dos usuários dos respectivos serviços.

A concessão tem favorecido aos interesses dos políticos, havendo uma politização excessiva no processo de outorga e de renovação de emissoras de televisão. Nesse aspecto, o Direito não tem sido efetivo o suficiente para impedir o cometimento de abusos, a exemplo da propriedade de inúmeras emissoras por políticos.

Daí porque se propõe a disciplina dos serviços de televisão por radiodifusão sob o ângulo do mercado. A adoção do regime privado no sistema privado de radiodifusão é a mais adequada à sua respectiva dinâmica, particularmente em um setor sob constante evolução tecnológica que culmina na convergência das mídias, em que não há mais uma fronteira fechada entre a radiodifusão e telecomunicação. A maior prova desta radical transformação é a recepção do sinal de televisão por computadores e aparelhos celulares.

A relativização da utilização da noção de serviço público e a flexibilização do regime jurídico justificam-se também em virtude da utilização da técnica digital no setor de radiodifusão.

O Estado, seja por ação, seja por omissão, não pode impedir o desenvolvimento tecnológico, ao contrário, ele deve ser o protagonista no cenário de transformações capitaneadas pelo mercado. O Estado não pode legitimar um modelo de estruturação de reserva de mercado, em favor exclusivo dos interesses dos radiodifusores, em detrimento dos interesses da sociedade. Pelo contrário, a sua missão é a de promover um regime de competição voltado à eficiência e ao pluralismo no campo da radiodifusão.

A nova visão serve à democratização da mídia, assegurando-se a existência de múltiplos meios de comunicação e a diversificação do conteúdo na programação de televisão, mediante o desenvolvimento da liberdade de radiodifusão pertencente aos agentes econômicos.

O serviço de televisão configura uma atividade de distribuição de conteúdo audiovisual. Para que isto ocorra é essencial a produção. Portanto, a utilização do regime privado é um fator de adequação entre as ofertas de produção e de distribuição do produto.

O enfoque proposto permitirá a gestão mais eficiente das freqüências do espectro eletromagnético, com a racionalização de seu uso entre os agentes privados, públicos e estatais. Assim, faz-se necessária a repartição das freqüências em diversas categorias de utilização, a saber: usos comerciais e não-comerciais, assegurando-se, porém, o acesso prioritário aos sistemas de radiodifusão estatal e público. Como o sistema comercial é o hegêmonico no País nada mais razoável do que um regime de preferência na construção das televisões estatais e públicas.

Em um ambiente de convergência tecnológica, com a possibilidade de prestação dos serviços de televisão por diversas plataformas, o novo modelo impõe-se diante da tendência de entrelaçamento entre o mercado de serviços televisão por radiodifusão e o de serviços de telecomunicações. Aqui, adota-se uma posição crítica diante da separação entre os dois setores, conduzida pela Emenda Constitucional 08/95, razão pela qual se defende uma aproximação entre os mesmos e a necessária modificação do ordenamento jurídico, quer por Emenda Constitucional, quer por lei ordinária.

O reconhecimento da lógica de mercado pelo Direito possibilitará a melhor repartição dos benefícios decorrentes da técnica digital entre as empresas, a sociedade, os consumidores, os cidadãos etc. Assim, sustento que seja atribuída a competência regulatória sobre os serviços de televisão por radiodifusão a uma agência reguladora, no caso, a Anatel, com a função de assegurar o equilíbrio interno no mercado nacional, diante dos desafios da globalização, e o equilíbrio externo em face dos demais sistemas de radiodifusão.

Atualmente, já prevalece a lógica de mercado no sistema de radiodifusão privado, porém a doutrina e a jurisprudência tratam, ainda, como serviço público privativo do Estado.

O que falta apenas é adequação entre o direito e os fatos, pois um conceito só se justifica se ele refletir a realidade dos fatos e do direito. A noção clássica não é coerente com as realidades constitucional, social e tecnológica apontam para a necessária atualização de seu sentido. O velho conceito deve ser transformado e adaptado conforme as circunstâncias do presente, com vistas à regulação setorial que produzirá efeitos para o futuro.

Enfim, possibilita-se a permanência do serviço público no âmbito das televisões estatais e públicas, contudo, viabiliza-se a sua mudança para o fim de seu afastamento da televisão privada. Diante disto é fundamental que o poder público organize de modo adequado o funcionamento do serviço público de televisão, contudo afastando o regime de concessão de serviço público das tevês privadas. A televisão por radiodifusão é de todos: da sociedade, do Estado e do mercado. Contudo, o regime jurídico tem que ser diferente, conforme a natureza da atividade de tevê.

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