Algemas no divã

Súmula das algemas criou clima de insegurança entre policiais

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26 de outubro de 2008, 23h00

A 11ª Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal criou uma série de embaraços às instituições policiais ao deflagrar um verdadeiro clima de insegurança no âmbito de suas atividades. Embora figure como uma tentativa de disciplinar o uso das algemas, a referida súmula, no final das contas, saiu-se como um bom instrumento intimidatório ao poder de polícia. Senão vejamos.

O policial prosseguirá, a rigor, tendo o mesmo poder discricionário de colocar as algemas quando as avaliar necessárias, porém, de agora em diante se verá na estranha situação de ser responsabilizado civil e criminalmente caso seu entendimento não seja convalidado a posteriori por sabe-se lá qual autoridade judiciária. Diz a Súmula:

“Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros (…),sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade (…)”.

Os signatários do documento, ao se referirem a “um fundado receio”, parecem acreditar que a atividade policial se assemelha a debates doutrinários em sessões plenárias, nos quais cada argumento deve vir acompanhado de sua devida fundamentação jurídica ou filosófica. Entretanto, o policial não possui, quando se depara com situações concretas, instrumentos seguros e adequados para avaliar e respaldar suas decisões. Contam apenas com o bom e velho tirocínio – que, de resto, é muito subjetivo e pode ensejar inúmeras controvérsias. Precisamente por isso, preferem, no mais das vezes, o uso padronizado das algemas, na medida em que esse procedimento diminui os riscos e evita os inconvenientes de uma decisão equivocada.

Quando o assunto é comportamento humano, a controvérsia é a regra. A título de ilustração, vale a pena analisar a recente matéria publicada no jornal Estadão1, na qual a polêmica se instalou quando duas psicólogas da Polícia Federal e dois renomados psiquiatras forenses de São Paulo e do Rio externaram suas teses sobre o uso de algemas. De um lado, as psicólogas defendiam a utilização deste instrumento como procedimento padrão, aventando como tese contrária a “impossível missão imposta ao policial”2 ao ter que deliberar sobre seu uso ou não ainda no calor dos fatos. De outro lado, estavam os psiquiatras forenses criticando as generalizações e padronizações indevidas.

Na referida matéria, o dr. Guido Palomba afirmou que a psicólogas “forçaram um pouco a barra”3, ao citarem um punhado de teorias científicas – biológicas e psicofisiológicas – para defender seus pontos de vista. O psiquiatra Talvane de Morais, por sua vez, declarou que as psicólogas argumentavam pro domo sua, já que fazem parte dos quadros da Polícia Federal e, por este motivo, apresentaram uma tese “consentânea com o local onde trabalham4”.

Não vou entrar no mérito de tais afirmações. O que causa espécie é ver o dr. Palomba argüir no sentido de que “o policial, por ser policial, tem de ter a capacidade de mensurar se aquele indivíduo vai ter esta ou aquela reação e quando usará a algema”5. Não sei quais outras expectativas irreais este senhor deposita na figura do policial, porém, sustentar a falácia de que o “policial, por ser policial” – desconsiderem a tautologia – deve possuir tamanha capacidade premonitória, soa como uma exigência absurda, a qual toda prudência recomendaria não fazê-la sequer aos seus próprios colegas de ofício. Não sei se psiquiatras ou magistrados conhecem com propriedade quais são as habilidades necessárias para formar um policial. O fato é que nem mesmo os estudiosos da alma humana têm essa alardeada capacidade de mensurar – observe o rigor! – qual será a reação deste ou daquele indivíduo em uma dada circunstância. Convenhamos. É até possível mensurar alguns estados emocionais (vamos lá…); contudo, não acredito na possibilidade de se prever tão acertadamente o comportamento humano, a não ser por meio de probabilidades muito remotas e cambiantes. Os seres humanos, afinal, não são como ratos de laboratório.

Já dizia o sábio, só conhecemos o verdadeiro caráter de um sujeito quando se encontra a um passo do cadafalso. Algo semelhante ocorre no momento em que cerceamos sua liberdade. Tudo isso para dizer que as situações-limites ocasionam nas pessoas as mais inesperadas reações, e não creio que haja alguém neste mundo, psiquiatra ou magistrado, psicólogo ou policial, capaz de prevê-las.

Se o simples bom senso não for suficiente para atestar a veracidade da minha tese, posso recorrer sem pejo à autoridade científica do próprio dr. Palomba. Em entrevista à revista Época6, ao discorrer sobre atos cruéis praticados por pais contra os próprios filhos, o psiquiatra foi questionado pelo repórter: “É possível saber de antemão que tipo de pessoa seria capaz de atitudes tão agressivas?7”. Eis a resposta do ilustre doutor, com a mesmíssima opinião:

Não há como dizer. Há algum tempo criei uma expressão, a condutopatia – que hoje em dia está no Dicionário Aurélio -, que significa aquele indivíduo que está numa zona entre a normalidade e a doença mental. Mas isso não é visto a ‘olho nu’. Aparentemente, são como qualquer outra pessoa, mas tem distúrbios de conduta e são capazes, num momento específico, de praticar atos anormais como jogar algo pesado em cima do próprio filho ou jogá-lo no fundo de um poço num ato de fúria [se fazem isso com o próprio filho, fico imaginando o que não fariam com os policiais].”8 (grifo nosso)

Desconsiderando o extremo mau gosto na escolha do termo “condutopatia”, o qual ele se gaba de constar no dicionário, a verdade é que a patologia por ele descrita não passa de uma reedição do já conhecido Transtorno Borderline (fronteiriço), ao qual deu nova terminologia na tentativa auto-promocional de transfigurar uma simples cópia em descoberta científica. Esse pecadilho é até desculpável, se o compararmos ao casuísmo de sua crítica às psicólogas da Polícia Federal. Ao conferir inquestionável previsibilidade às reações de um indivíduo no momento de sua prisão e – o que é pior –, ao exigir dos policiais esse verdadeiro tour de force visionário (pois espera que estes profissionais, no calor da situação, possam antever o que nem ele consegue vislumbrar na tranqüilidade de seu consultório), o sr. Palomba dá um inequívoco atestado de desonestidade intelectual. Suas opiniões, pois, parecem variar de acordo com as demandas da platéia.

Em outra entrevista, agora à revista Istoé9 (sim, ele adora uma audiência), afirmou: “Se um médico esquece uma gaze no abdome do paciente, pode até perder o registro. Alguns laudos equivalem a isso”10 (referindo-se a laudos periciais de alguns psiquiatras). Ora, se psiquiatras fazem laudos com a mesma perícia de quem esquece uma gaze no abdome do paciente, não se pode admitir de bom grado que se arroguem o direito de opinar – e com presunçosa autoridade! – sobre questões de segurança que dizem respeito exclusivamente a policiais. Se erram ao fazer cirurgias ou laudos periciais, convém que se abstenham, a fortiori, de meter o bedelho na seara alheia. Nós, policiais, por exemplo, só realizamos primeiros-socorros quando, por razões alheias a nossa vontade, nos vemos na total ausência de médicos. Mas toda prudência aconselha aos policiais evitarem quaisquer veleidades médicas, muito embora o adágio popular nos faça crer que “de médico e louco, todo mundo tem um pouco”.

O espetáculo mais lamentável é ver um psiquiatra forense colocando seu prestígio acadêmico a serviço de uma causa cujos maiores beneficiários são pessoas que, sem o menor escrúpulo, roubam e saqueiam há décadas esse pobre país. No Japão, se um indivíduo é flagrado em ato de corrupção, sente tamanha desonra frente a seus pares que não lhe restará outra saída senão o harakiri (suicídio). Aqui, desde tempos imemoriais, esse tipo de gente é objeto das mais altas lisonjas; freqüentam colunas sociais e gabinete de autoridades, sem nunca serem minimamente importunados. Porém, no exato momento em que são presos e lhes pomos as algemas, tratando-os como criminosos que são, sobem nas tamancas e fazem pose de dignidade ofendida, angariando a simpatia suspeita de magistrados e setores da mídia. Com toda essa benevolência, passam de bandidos a mocinhos num simples piscar de olhos, antes mesmo que seu exército de advogados se dê o trabalho de uma simples consulta ao vade mecum.

É óbvio que toda pessoa deve ter preservada sua imagem e seu brio. A exposição vexatória é em si mesma deplorável (com a palavra, a mídia televisiva). Porém, a 11ª Súmula Vinculante inverte a escala dos valores ao ponto de colocar as suscetibilidades de criminosos acima da segurança pessoal do policial. Ela foi editada na presunção errônea de que os policiais são os verdadeiros culpados por eventuais constrangimentos sofridos pelos presos, quando na origem sabe-se que foram eles mesmos que lhes deram causa.

Notas de rodapé

1. Marcelo Auler, edição de 14 de setembro de 2008, do Jornal Estado de São Paulo.

2. Op. cit.

3. Op. cit.

4. Op.cit.

5. Op. cit.

6. Entrevista dada à repórter Martha Mendonça da revista Época em 04/04/2008 (edição 516).

7. Op. Cit.

8. Op cit.

9. Entrevista dada à repórter Lena Castellón da revista ISTOÉ em 09/08/2006.

10. Op. Cit.

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