Homem da Justiça

Entrevista: Penteado Navarro, desembargador do TJ-SP

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25 de outubro de 2008, 23h00

Penteado Navarro - por SpaccaSpacca" data-GUID="penteado_navarro.jpeg">O desembargador Alceu Penteado Navarro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, é apontado como um teimoso legalista, apegado à interpretação literal das normas penais. Ele reconhece seu traço conservador e mostra-se orgulhoso desse perfil, mas diz que sua obediência à pureza da lei tem limites e que, quando se debruça sobre um caso, seu objetivo não é apenas resolver o processo, mas acabar com o conflito.

“A função do julgador é adaptar a legislação ao caso concreto, buscando a resolução de um problema”, afirma Navarro, que percorreu um longo caminho da vida a serviço da Justiça. São mais de 40 anos de carreira no Judiciário — de escrevente a presidente do extinto Tribunal de Alçada Criminal. Dali, passou a desembargador do Tribunal de Justiça com a reforma do Judiciário e depois foi eleito, por duas vezes, como o desembargador mais votado para uma vaga no Órgão Especial, colegiado de cúpula do Judiciário paulista.

O desembargador é um homem aplicado. “Se algum mérito me pode ser atribuído, é unicamente o do trabalhar com tenacidade, jamais decidindo sem estar seguro da questão em exame”, define Navarro. “Como não sou dos mais dotados de conhecimento jurídico, tive e tenho que estudar muito para dar vazão ao enorme serviço judicante”, completa o desembargador. Ele conta que, quando foi promovido ao Tacrim, precisou fazer uma reciclagem profissional para superar a lacuna no conhecimento criminal.

Homem prático, tem experiência dentro e fora do balcão — advogou no escritório do professor Sílvio Rodrigues e do depois ministro José Carlos Moreira Alves, que ocupou o cargo de presidente do Supremo Tribunal Federal. De um juiz que trabalhava quase como um artesão, sem delegar poderes, o hoje desembargador divide o trabalho com três assessoras. A produção, reconhece ele, quase quintuplicou.

Alceu Penteado Navarro nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em agosto de 1944. Filho do juiz Bolívar Ferraz Navarro e de Marília Penteado Navarro, estudou na Universidade Mackenzie. Foi vice-presidente e depois presidente do extinto Tacrim. Ao ocupar o cargo, mostrou que o bom juiz pode ser também bom administrador. Alceu, como é chamado pelos amigos, é um contador de causos e, pela convivência com o pai, um acervo vivo do Judiciário. Longe do tribunal, conserva a paixão de enólogo e de iatista.

Leia a entrevista que ele concedeu à revista Consultor Jurídico.

ConJur — A criminalidade organizada está levando os juízes a serem mais punitivos?

Penteado Navarro — Isso é um engano. Os juízes hoje são mais liberais do que eram antes, pelo menos na Justiça paulista. Mas não sei dizer o porquê dessa mudança. Quando meu pai era juiz, quase não havia roubo. Só furto. Hoje, o delinqüente prefere roubar porque furtar dá muito trabalho. Ele tem que fazer campana na casa, descobrir como entrar e sair. O roubo a mão armada é muito mais célere. Na minha vida de juiz, vejo casos de delinqüentes que praticam até três roubos por dia. A prisão de uma pessoa como essa tem como resultado um sossego muito grande para a sociedade.

ConJur — Há lugar no sistema penitenciário para tanta gente?

Penteado Navarro — A impressão que tenho é a de que, quando pessoas com esse perfil de delinqüência estão soltas, trazem um prejuízo muito maior do que quando estão presas. É mais barato um sujeito desses ficar na cadeia. A sociedade está muito mais protegida e uma quantidade menor de recursos deixa de ser gasto com a segurança pública. Sei que os defensores do direito penal mínimo vão ficar horrorizados com essa minha afirmação.

ConJur — O STF diz que prisão cautelar não pode ser usada para antecipar a punição do acusado. O senhor, que tem fama de durão entre seus colegas, segue essa orientação?

Penteado Navarro — Tecnicamente, sim, mas há diferenças entre antecipação de pena e necessidade de prender alguém. A prisão preventiva cabe em qualquer fase do processo ou da instrução criminal para garantir a ordem pública e econômica, a conveniência da instrução criminal ou assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria. Esses conceitos são elásticos e dependem da interpretação do juiz. Por exemplo: garantir a ordem pública é tentar evitar que o delinqüente cometa novos crimes. O sujeito que pratica o crime de roubo a mão armada me parece que não deve ser deixado em liberdade porque ele não vai parar de cometer esses crimes e, por isso, provoca um risco enorme à sociedade. Costumo seguir essa interpretação, que está em sintonia com a lei.

ConJur — O acusado de crimes graves não pode responder o processo em liberdade?

Penteado Navarro — Quando o crime é grave, eu tendo a ter esse raciocínio que expliquei para evitar que ele pratique crimes em seqüencia e coloque em risco a sociedade e a ordem pública. Isso vale para os crimes como roubo a mão armada, estupro, formação de quadrilha e receptação qualificada, entre outros. O receptador, que tem por hábito comercializar o produto do crime, é uma pessoa que é melhor para a sociedade que fique presa, já que é um grande incentivador da prática de crimes contra o patrimônio, em especial furto e roubo. Se não tivesse quem comprasse o fruto do crime, ninguém ia roubar, por exemplo. É preciso, no entanto, sentir qual a melhor decisão em cada processo.

ConJur — Muitos juízes pensam como o senhor?

Penteado Navarro — Não. Eu remo contra a maré. A tese do juiz liberal tem mais ressonância hoje dentro do tribunal e em todo o Judiciário. Quero esclarecer, no entanto, que o chamado juiz conservador é aquele que aplica a lei. O liberal é aquele que encontra brechas na lei para favorecer o réu. Não existe o juiz rigoroso que dê uma interpretação mais severa para a lei. O liberal, no entanto, entende que o Estado é um opressor.

ConJur — Falta política de trabalho nos presídios?

Penteado Navarro — Sim. O Estado monta prisões com maquinário e os presos destroem. As colônias agrícolas também não deram certo. O sujeito fica solto numa extensão de terra muito grande e é preciso gastar muito dinheiro com vigilância. Há muito preso por praticar crime contra o patrimônio. Este tipo de criminoso não gosta de trabalhar. Só quem gosta de trabalhar é o chamado criminoso de sangue. Esse não fica ocioso nunca.

ConJur — E o traficante de drogas?

Penteado Navarro — Este é um tipo de criminoso diferenciado. Está acostumado a lidar com grande soma de dinheiro e comandar muita gente. É difícil diferenciar traficante de usuário porque os grandes traficantes não ficam com toda a droga em seu poder. Nunca são surpreendidos com grande quantidade. Para prendê-los, é preciso um trabalho e uma diligência policial muito bem feita.

ConJur — Onde está o limite entre traficante e usuário?

Penteado Navarro — Basicamente, na quantidade de dose letal. Mas o juiz precisa observar outras circunstâncias, como a forma como a droga foi embalada. Se a cocaína está toda separada em papelote, se o réu tem muito dinheiro em seu poder, tem balança de precisão. Todas são características de quem comercializa drogas. Não temos um padrão definido para diferenciar entre posse para consumo e tráfico, mas o juiz precisa cuidar para não pegar um usuário e aplicar uma pena injusta. O problema é que há juízes liberais que entendem como usuário pessoas que têm em seu poder quantidade de droga que não se enquadra como consumo próprio.

ConJur — Os criminosos assustam os juízes?

Penteado Navarro — Não o juiz do processo de conhecimento. O mesmo não se pode falar dos magistrados que atuam na execução criminal. O crime organizado tem sido cruel com esses juízes, que são responsáveis pelos benefícios de progressão de regime e de livramento condicional e têm mais contato com os presos, visitam os presídios, acompanham e negociam rebeliões. O exemplo mais extremo aconteceu com nosso colega Machado [Antonio José Machado Dias, juiz da Vara das Execuções Criminais e corregedor dos Presídios de Presidente Prudente, morto numa emboscada em 14 de março de 2003, quando voltava do fórum local para sua casa]. Ele era conhecido como um juiz duro. Hoje, com a descentralização das varas de execuções, há juízes mais rigorosos e outros bem menos. Os criminosos sabem disso e querem ser transferidos para um presídio que esteja sob a jurisdição de um juiz mais flexível, onde o detento tem mais chances de conseguir benefício. Fala-se até de uma espécie de compra de vagas entre os detentos.

ConJur — Esse temor chega aos desembargadores?

Penteado Navarro — Sempre há risco. Tivemos exemplos na Colômbia, na Espanha e na Itália de perseguição a juízes. Eu mesmo já sofri ameaças por causa de um processo do qual fui relator. Mandaram para mim uma foto do meu neto com ameaças. No entanto, é muito complicado dar proteção para juiz porque são muitos magistrados e a proteção para cada um pode desfalcar a segurança pública.

ConJur — Vivemos num Estado Policial?

Penteado Navarro — Dizer isso é um exagero. O que está acontecendo é que, com a sofisticação dos meios eletrônicos, as escutas telefônicas passaram a ser usadas pela Polícia de forma exagerada e tem muita gente fazendo escuta sem ser polícia.

ConJur — Para o senhor, conversa entre advogado e cliente pode ser gravada?

Penteado Navarro — Quando o advogado sai da condição de defensor e começa a participar do grupo criminoso, sim. Mas, em geral, não, pois esbarra no direito de defesa. O mesmo vale para os juízes. Não é por causa do cargo que o indivíduo está vacinado.

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