Consultor Jurídico

ONG não perde imunidade se participa de licitação

22 de outubro de 2008, 23h00

Por Ricardo Campelo

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Uma solução de consulta fiscal proferida pela Receita Federal provocou surpresa a entidades do Terceiro Setor, e indica um perigoso precedente de violações às regras de imunidade tributária.

A decisão, da lavra do chefe da Divisão de Tributação da Delegacia da Receita Federal de São José dos Campos, apresenta o entendimento de que as entidades que participam de procedimento licitatório perante órgão público (no caso, especificamente para fornecimento de software) perdem o direito à imunidade do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica.

O setor privado festejou intensamente a decisão, apostando na recuperação de espaço do mercado, que teria sido perdido, supostamente, por conseqüência de concorrência desleal configurada pela vitória, nas referidas licitações, das entidades que gozam da imunidade a impostos.

A par da discussão sobre ser justa ou não a concorrência, em iguais condições, entre entidades imunes e empresas normais, o fato é que o entendimento emanado pela Receita Federal não encontra supedâneo legal. Com efeito, o equívoco revela-se claro quando a decisão menciona que “a venda de softwares, prestação de consultoria, fabricação, manipulação e venda de medicamentos por instituições de educação, ainda que os resultados dessas atividades revertam integralmente para a instituição e sejam aplicados no desenvolvimento de seus objetivos sociais, caracterizam atos de natureza comercial, sendo incompatíveis com a preservação da condição de entidade imune”.

Perceba-se que o disposto na decisão desvirtua expressa e diretamente o disposto no artigo 12, parágrafo 2º, da Lei 9.532: “Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais”.

Ora, o dispositivo legal não faz qualquer ressalva a que tipo de atividade pode ou não ser praticado pelas entidades imunes. E, assim, não cabe à autoridade administrativa inovar o ordenamento legal para estabelecer estas restrições, senão em afronta clara à regra constitucional da imunidade, consagrada no artigo 150, IV, “c”, da Lei Maior, que atribui privativamente à lei a competência para estabelecer os requisitos para a fruição da desoneração fiscal.

O rigor da interpretação à lei, determinado pela própria Constituição, afasta os argumentos meta-jurídicos de que haveria desigualdade na concorrência, ou ainda a generalização que se faz dos casos de entidades sem fins lucrativos flagradas em procedimentos ilegais. A regra de imunidade é geral e abrangente, e sua interpretação deve ser ampla, conforme jurisprudência uníssona no país. Portanto, inválida a sua restrição apenas para determinadas atividades, como pretende a autoridade fiscal.

Não há sequer um parâmetro utilizado pelo julgador administrativo em questão para ancorar o entendimento de que estas atividades (desenvolvimento de software), especificamente, configurariam um ato de natureza econômico-financeira, supostamente incompatível com a fruição da imunidade ao IRPJ. E, ademais, não se há que confundir a finalidade não-lucrativa com a impossibilidade de auferir receitas pelas atividades prestadas. Conforme amplamente reconhecido pela jurisprudência e doutrina, estas entidades podem e devem buscar o superávit em seus resultados, sendo-lhes vedada, tão somente, a distribuição de dividendos a quem quer que seja.

A discussão sobre a justiça ou não do instituto da imunidade frente aos procedimentos licitatórios é válida. Ao nosso ver, não se pode olvidar que o legislador constitucional visou beneficiar as entidades que desenvolvam atividades educacionais como ideal, ou seja, sem que os envolvidos estejam motivados pela finalidade lucrativa. Se a entidade, eventualmente, desrespeita estas condições, é dever do Ministério Público apurar os fatos e lutar pela aplicação das penalidades cabíveis. De qualquer forma, o que não se pode aceitar é, sob o pretexto de se praticar justiça, violar frontalmente dispositivos legais e constitucionais.

A decisão em comento, a princípio, não vincula terceiros ao procedimento de consulta fiscal. Todavia, as entidades que houverem celebrado, ou que vierem a celebrar, contratos que se enquadrem na situação examinada, devem estar atentas e buscar a prevenção quanto a possíveis conseqüências deste novo entendimento. O assunto, certamente, acabará apreciado pelo Poder Judiciário, e espera-se o reconhecimento da prevalência dos dispositivos legais acima citados.