História revisada

Leia pedido da OAB para que anistia não valha para torturadores

Autor

21 de outubro de 2008, 19h24

Para que a Lei da Anistia (6.683/79) seja interpretada conforme a Constituição Federal de 1988, os agentes que cometeram crimes comuns contra opositores não devem ter direito à anistia. Este é o principal argumento da OAB na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental ajuizada nesta terça-feira (21/10) no Supremo Tribunal Federal.

Na petição, assinada pelos advogados Fábio Konder Comparato e Maurício Gentil Monteiro, a OAB argumenta que o artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 6.683/79, foi redigido intencionalmente de forma obscura para que militares e policiais que cometeram crimes comuns — como a tortura e desaparecimento — fossem anistiados. Comparato é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia da OAB.

“Em toda a nossa história, foi esta a primeira vez que se procurou fazer essa extensão da anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado, encarregados da repressão. Por isso mesmo, ao invés de se declararem anistiados os autores de crimes políticos e crimes comuns a ele conexos, como fez a lei de anistia promulgada pelo ditador Getúlio Vargas em 18 de abril de 1945, redigiu-se uma norma propositalmente obscura”, argumentam os advogados.

A norma diz que “consideram-se conexos, para efeito deste artigo [1º], os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

A OAB entra com ação neste momento por causa da controvérsia entre os ministérios da Justiça e da Defesa. Segundo a entidade, o tema tem uma relevância política em que se aconselha o chamamento do Judiciário para pôr fim a essa “notória controvérsia constitucional” de forma definitiva.

Para os advogados, “é irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo”.

Para a OAB, esses agentes não cometeram crimes políticos. “Ainda que se admita estapafurdiamente essa conexão criminal, ela não é válida, porque ofende vários preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal”, completa.

Os advogados afirmam que nem todos são iguais perante a lei em matéria de anistia criminal. “Há os que praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e condenados. Mas há, também, os que cometeram delitos, cuja classificação e reconhecimento não foram feitos pelo legislador, e sim deixados à discrição do Poder Judiciário, conforme a orientação política de cada magistrado. Esses últimos criminosos não foram jamais condenados nem processados. Elas já contavam com a imunidade penal durante todo o regime de exceção. O que se quer, agora, é perpetuar essa imunidade, sem que se saiba ao certo quem são os beneficiados”, completa a OAB.

Leia a petição

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO PRESIDENTE DO EGRÉGIO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL — OAB¸ por seu Presidente, vem, à presença de Vossa Excelência, por intermédio de seu advogado infra-assinado, com instrumento procuratório específico incluso e endereço para intimações na SAS Qd. 05, Lote 01, Bloco M, Brasília-DF, com base nos arts. 102, § 1º e 103, inciso VII da Constituição Federal c/c art. 1º, parágrafo único, inciso I e art. 2º, inciso I da Lei nº 9.882/99, e de acordo com a decisão plenária tomada nos autos do protocolo nº 2008.19.06083-01-Conselho Pleno (certidão anexa – doc. 01), propor

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL

nos termos seguintes:

1. O DISPOSITIVO LEGAL QUESTIONADO

Eis o teor do dispositivo legal questionado (§ 1º do Art. 1º da Lei nº 6.683/1979), e que é o ato do poder público objeto da presente argüição:


Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.

§ 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

O quadro acima apresentado – apenas exemplificativamente, dada a sua notoriedade – revela a existência de séria controvérsia constitucional sobre lei federal anterior à Constituição, que é uma das hipóteses de cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental (Art. 1º, parágrafo único, inciso I da Lei nº 9.882/99).

2. CABIMENTO DA PRESENTE DEMANDA

2.1 PRESSUPOSTOS PARA O CABIMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL “INCIDENTAL”

 

Após apontar que a doutrina, quase que a uma só voz, extrai da Lei nº 9.882/99 a existência de dois tipos de argüição de descumprimento de preceito fundamental (autônoma e incidental), sendo a modalidade incidental percebida no inciso I do parágrafo único do Art. 1º, LUÍS ROBERTO BARROSO expõe os pressupostos do seu cabimento:

“Seus outros requisitos, que são mais numerosos que os da argüição autônoma, incluem, além da subsidiariedade e da ameaça ou lesão a preceito fundamental, a necessidade de que (i) seja relevante o fundamento da controvérsia constitucional e (ii) se trate de lei ou ato normativo – e não qualquer ato do Poder Público.” (BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 220).

Pois bem, presentes estão, no caso, os pressupostos acima apontados para o cabimento da argüição “incidental”, que passarão a ser demonstrados a seguir.

2.2 RELEVÂNCIA DO FUNDAMENTO DA CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SOBRE LEI FEDERAL ANTERIOR À CONSTITUIÇÃO

A sociedade brasileira acompanhou o recente debate público acerca da extensão da Lei nº 6.683/79 (“Lei da Anistia”). É notória a controvérsia constitucional surgida a respeito do âmbito de aplicação desse diploma legal. Trata-se de saber se houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis, entre outros crimes, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões corporais, estupro e atentado violento ao pudor contra opositores políticos ao regime militar, que vigorou entre nós antes do restabelecimento do Estado de Direito com a promulgação da vigente Constituição.

A controvérsia pública sobre o âmbito de aplicação da citada lei tem envolvido, notadamente, o Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa, o que demonstra, por si só, a relevância política da questão em debate. Tudo aconselha, pois, seja chamado o Poder Judiciário a pôr fim ao debate, dizendo o Direito de forma definitiva.

Confira-se:

“O presidente da Comissão de Anistia (órgão ligado ao Ministério da Justiça), Paulo Abrão, disse nesta sexta-feira à Folha Online ser favorável ao debate sobre a responsabilização dos crimes de tortura ocorridos no período da ditadura militar. Para Abrão, os crimes de tortura não são políticos e, portanto, não prescreveram, como afirmam alguns contrários à discussão.

‘Eu acredito que os crimes de tortura não são políticos, portanto não prescreveram", disse Abrão, ressaltando que sua interpretação é baseada em acordos internacionais e no direito internacional’.” (FolhaOnLine, 08/08/2008, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u431294.shtml);


“Convidado a vir ao Brasil pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (Sedh), o juiz espanhol Baltasar Garzón, famoso por ter decretado em 1998 a prisão do ditador chileno Augusto Pinochet, defendeu hoje (18) em São Paulo a punição penal para crimes contra a humanidade cometidos durante o período da ditadura brasileira. ‘Quando se trata de crimes contra a humanidade, entendo que não é possível a anistia e que a prescrição também não é possível. Há a primazia do direito penal internacional sobre o direito local sempre quando o país que estamos falando faz parte do sistema internacional de Justiça, como o caso do Brasil1, disse’.” (disponível em http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/08/18/materia.2008-08-18.1734311067/view);

“No dia 31 de julho de 2008 foi realizado o seminário "Limites e possibilidades para a responsabilização jurídica dos agentes violadores de direitos humanos durante estado de exceção no Brasil" sob o patrocínio do Ministro da Justiça Tarso Genro, do Ministro dos Direitos Humanos e de Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia.. A platéia estava repleta de ex-subversivos e terroristas, de familiares de mortos e desaparecidos, além de simpatizantes. A finalidade do debate era discutir a revisão da Lei da Anistia e encontrar uma base legal para a punição dos militares.

Durante o seminário o advogado criminalista e professor de direito da FGV Thiago Bottino do Amaral declarou que não há base legal para punir militares por tortura. Segundo ele, o Direito Penal segue o princípio da anterioridade, isto é, a lei que prevê o delito não pode retroagir. Ele argumentou que não havia lei tipificando esse tipo de crime na época. O advogado lembrou que os crimes já prescreveram. Segundo ele, a Constituição só considera imprescritíveis os crimes de racismo e de grupos armados que atentem contra o Estado.” (disponível em http://brasilacimadetudo.lpchat.com/index.php?option=com_content&task=view&id=5023&Itemid=222);

“O ex-presidente do Supremo, o jurista Carlos Velloso, também é contrário a uma revisão da lei. Para ele, este "é um assunto superado". "A Lei de Anistia é peremptória, e estabelece um esquecimento, um perdão para os dois lados. Foi uma pedra colocada sobre o ocorrido. Também houve crimes do lado dos opositores ao regime. Mexer com uma coisa dessas pode gerar uma bola de neve", afirma. O ex-presidente do STF e atual ministro da Defesa Nelson Jobim, e o atual decano do STF, ministro Celso de Mello, corroboram com a opinião de Velloso” (disponível em http://www.jornaldedebates.ig.com.br/debate/lei-anistia-deve-ser-revista);

“Cresce movimento para que a corte se manifeste sobre validade da lei para crimes como tortura e assassinato

A Lei de Anistia, 29 anos depois de sancionada, está a caminho de se transformar em um assunto polêmico do Judiciário. Uma série de movimentos do governo e do Ministério Público mostra que mais cedo ou mais tarde o Supremo Tribunal Federal (STF) terá de dizer se a anistia vale para crimes como tortura e assassinato, cometidos durante o regime militar (1964-1985), ou se beneficia exclusivamente acusados de crimes eminentemente políticos, como fechamento do Congresso, censura a jornais por ordem do governo e cassação de parlamentares.

“Eu tenho dito que em algum momento o Supremo terá de ser provocado e acho que este momento está chegando. É o momento para saber se a lei de 1979 anistia os torturadores, os estupradores, os assassinatos e os responsáveis por desaparecimentos ou não”, afirmou ao Estado o ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos.

A declaração de Vannuchi não é voz isolada no governo. O ministro da Justiça, Tarso Genro, já referendou, em discurso, a opinião de que a lei precisa ser revista ou avaliada pelo Judiciário. “Se um agente público invade uma residência na ditadura cumprindo ordem legal, isso é um crime político de um Estado de fato vigente naquele momento. Agora, se esse mesmo agente público prende uma pessoa e a leva para um porão e a tortura, esse crime não é um crime político porque nem a legalidade da ditadura permitia tortura. Mas isso teria que ser uma interpretação do Poder Judiciário”, disse Tarso na semana passada.” (disponível em http://www.fessergs.com.br/noticias.php?id=245);


“Em primeiro lugar, pondere-se que a anistia é oblívio, esquecimento. Juridicamente ela provoca, na verdade, a criação de uma ficção legal: não apaga propriamente a infração, mas o direito de punir, razão pela qual aparece depois de ter surgido o fato criminoso, não se confundindo com uma novação legislativa, isto é, não transforma o crime em ato lícito. Ou seja, anistiar os torturadores que agiram dentro de um quadro político a ele obviamente conexo não significa violar a Constituição nem os tratados internacionais que proscrevem a tortura como um crime contra a humanidade.

Afinal, no direito moderno, a anistia não é medida voltada para uma determinada prática nem significa o seu reconhecimento como legítimo, mas é ato soberano que não pede nenhuma justificação condicional à autoridade que a concede, porque não visa a outro interesse senão o interesse soberano da própria sociedade.

Nesse sentido, não está submetida a ponderações entre a dignidade ofendida do torturado e o ato degradante do torturador. Em segundo lugar, excluir o torturador da anistia referente àqueles que cometeram crimes conexos sob o argumento de que se trata de crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível provoca um efeito que há de desnaturar o caráter geral e irrestrito da lei, conforme lhe reconheceu o STM (Superior Tribunal Militar).

Como o parágrafo 2º do artigo 1º da lei 6.683/79 exclui expressamente dos benefícios da anistia os que haviam praticado crimes de terrorismo, por exemplo, mediante seqüestro, a jurisprudência do STM, diante de um flagrante tratamento desproporcional, estendeu o benefício: a anistia tornou-se geral e irrestrita.

Ora, uma reinterpretação da lei, sobretudo com o fito de punir militares por atos de tortura, reverterá o argumento jurisprudencial, pois irá solapar a extensão da anistia aos terroristas, fazendo com que todo o universo de avaliações mutuamente negativas (exclusão/inclusão de terrorista/torturador) tenha de ser rediscutido.

Ou seja, em nome da mesma proporcionalidade, haverá de lembrar-se que tratados internacionais consideram, por exemplo, também o seqüestro motivado por razões políticas um crime contra a humanidade, igualmente imprescritível. Com isso, voltaria a necessidade de avaliações de práticas criminosas e suas conseqüências de ambos os lados, prejudicando o correto entendimento de uma anistia geral e irrestrita.

Ou seja, de parte a parte, numa reinterpretação da lei, o caráter criminoso dos respectivos atos (tortura/ seqüestro) terá de ser retomado, pois é com base nos mesmos argumentos que o direito de punir (anistia) seria ou não afastado.

Isto é, numa reinterpretação da lei que exclua da anistia a prática da tortura, o argumento de justiça, invocado pelo STM em favor dos que, movidos por razões políticas, tenham praticado atos de terror (seqüestro), acabaria por ser, inevitavelmente, utilizado em favor dos torturadores.

Se da Lei da Anistia devessem estar excluídos os torturadores, por proporcionalidade, excluídos também estariam os seqüestradores. Interpretação que, em suma, violaria o sentido já reconhecido da lei de conceder uma anistia geral e irrestrita.” (Tércio Sampaio Ferraz Júnior, disponível em http://www.averdadesufocada.com/index.php?option=com_content&task=view&id=1310&Itemid=34).

O quadro acima apresentado – apenas exemplificativamente, dada a sua notoriedade – revela a existência de séria controvérsia constitucional sobre lei federal anterior à Constituição, que é uma das hipóteses de cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental (Art. 1º, parágrafo único, inciso I da Lei nº 9.882/99).

 

Caso se admita, como parece pacífico, que a Lei nº 6.683/79 foi recepcionada pela nova ordem constitucional, é imperioso interpretá-la e aplicá-la à luz dos preceitos e princípios fundamentais consagrados na Constituição Federal.


Essa Suprema Corte já teve a oportunidade de apreciar Argüições de Descumprimento de Preceito Fundamental a fim de restabelecer, em harmonia com a Constituição, interpretações infundadas de atos públicos normativos. Ainda recentemente (06/08/2008), esse Egrégio Tribunal conheceu da ADPF nº 144, por meio da qual a Associação dos Magistrados do Brasil questionou interpretações, inclusive Resoluções do Tribunal Superior Eleitoral.

Nesse sentido, LUÍS ROBERTO BARROSO:

 

“Embora a motivação imediata de quaisquer dos legitimados possa ser a eventual tutela de uma situação específica – agindo, portanto, como substituto processual do verdadeiro interessado – deverá ele demonstrar ser relevante a controvérsia constitucional em discussão. Será relevante a controvérsia quando seu deslinde tiver repercussão geral, que transcenda ao interesse das partes em litígio, seja pela existência de um número expressivo de processos análogos, seja pela gravidade ou fundamentalidade da tese em discussão, por seu alcance político, econômico, social ou ético. Por vezes, a reparação imediata de uma injustiça individual tem uma valia simbólica decisiva para impedir novas violações. Seja como for, na argüição incidental, mesmo que estejam em jogo direitos subjetivos, haverá de estar envolvida uma situação que afete o ordenamento constitucional de maneira objetiva” (grifou-se) (BARROSO, op. cit., p. 229).

Como bem se percebe, trata-se de típica situação do cabimento da ADPF como instrumento hábil para a definição rápida e com eficácia geral acerca de norma infraconstitucional, cuja interpretação corrente, nos pretórios ou fora deles, ofende frontalmente diversos preceitos fundamentais da Constituição.

É a forma de ressaltar, mais uma vez, o caráter objetivo da atuação dessa Corte, no exercício de sua função precípua de guardiã da Constituição e, em decorrência, guardiã dos princípios ético-jurídicos que devem nortear a sociedade brasileira.

2.3 ATO DO PODER PÚBLICO – LEI OU ATO NORMATIVO – O CONTROLE ABSTRATO

Na argüição “incidental”, objeto da demanda é uma lei ou ato normativo. Não há qualquer dificuldade nesse ponto, eis que a presente ADPF tem como fulcro a interpretação do disposto no § 1º do Art. 1º da Lei nº 6.683/1979.

Na verdade, o remédio judicial trazido pela Constituição Federal de 1988 e afinal regulamentado pela Lei nº 9.882/99, assemelha-se à Verfassungsbeschwerde regulada no art. 93, 2 da Lei Fundamental alemã. Como salienta a doutrina germânica, trata-se de uma demanda que visa ao controle abstrato de constitucionalidade de uma norma do direito federal ou estadual (KLAUS SCHLAICH, Das Bundesverfassungsgericht, 3ª ed., Munique, Verlag C.H.Beck, nº 122).

2.4 LESÃO A PRECEITO FUNDAMENTAL

A interpretação, segundo a qual a norma questionada concedeu anistia a vários agentes públicos responsáveis, entre outras violências, pela prática de homicídio, desaparecimento forçado, tortura e abusos sexuais contra opositores políticos viola frontalmente diversos preceitos fundamentais da Constituição, conforme será demonstrado abaixo.

2.5 SUBSIDIARIEDADE

Dispõe o § 1º do Art. 4º da Lei nº 9.882/99:

§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

Desse dispositivo, os doutrinadores e a jurisprudência dessa Corte extraem a subsidiariedade como requisito de cabimento da ADPF. Em outras palavras, só será cabível a interposição de ADPF quando inexistir, no ordenamento jurídico, qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade a preceitos fundamentais da Constituição.


A jurisprudência mais recente dessa Corte Suprema interpreta a exigência de subsidiariedade da demanda prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal, pela inexistência de qualquer outro meio de controle concentrado ou abstrato de constitucionalidade, já ajuizado com referência ao objeto da ADPF. Do contrário, restaria sepultado o instituto, eis que dificilmente se encontraria uma situação de inexistência, em tese, de meios aptos a restabelecer a ordem constitucional, concreta ou potencialmente violada (a exemplo de mandado de segurança, habeas corpus, ação popular, ação civil pública, ações judiciais e diversos recursos, cautelares, antecipação de tutela).

Observe-se:

“O diploma legislativo em questão — tal como tem sido reconhecido por esta Suprema Corte (RTJ 189/395-397, v.g.) — consagra o princípio da subsidiariedade, que rege a instauração do processo objetivo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, condicionando o ajuizamento dessa especial ação de índole constitucional à ausência de qualquer outro meio processual apto a sanar, de modo eficaz, a situação de lesividade indicada pelo autor: (…) O exame do precedente que venho de referir (RTJ 184/373-374, Rel. Min. Celso de Mello) revela que o princípio da subsidiariedade não pode — nem deve — ser invocado para impedir o exercício da ação constitucional de argüição de descumprimento de preceito fundamental, eis que esse instrumento está vocacionado a viabilizar, numa dimensão estritamente objetiva, a realização jurisdicional de direitos básicos, de valores essenciais e de preceitos fundamentais contemplados no texto da Constituição da República. (…) Daí a prudência com que o Supremo Tribunal Federal deve interpretar a regra inscrita no art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.882/99, em ordem a permitir que a utilização dessa nova ação constitucional possa efetivamente prevenir ou reparar lesão a preceito fundamental causada por ato do Poder Público. Não é por outra razão que esta Suprema Corte vem entendendo que a invocação do princípio da subsidiariedade, para não conflitar com o caráter objetivo de que se reveste a argüição de descumprimento de preceito fundamental, supõe a impossibilidade de utilização, em cada caso, dos demais instrumentos de controle normativo abstrato: (…) A pretensão ora deduzida nesta sede processual, que tem por objeto normas legais de caráter pré-constitucional, exatamente por se revelar insuscetível de conhecimento em sede de ação direta de inconstitucionalidade (RTJ 145/339, Rel. Min. Celso de Mello — RTJ 169/763, Rel. Min. Paulo Brossard — ADI 129/SP, Rel. p/ o acórdão Min. Celso de Mello, v.g.), não encontra obstáculo na regra inscrita no art. 4º, § 1º, da Lei n. 9.882/99, o que permite — satisfeita a exigência imposta pelo postulado da subsidiariedade — a instauração deste processo objetivo de controle normativo concentrado. Reconheço admissível, pois, sob a perspectiva do postulado da subsidiariedade, a utilização do instrumento processual da argüição de descumprimento de preceito fundamental.” (ADPF 126-MC, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 19-12-07, DJE de 1º-2-08)

“O desenvolvimento do princípio da subsidiariedade, ou da idéia da inexistência de outro meio eficaz, dependerá da interpretação que o STF venha a dar à lei. (…) À primeira vista, poderia parecer que somente na hipótese de absoluta inexistência de qualquer outro meio eficaz para afastar a eventual lesão poder-se-ia manejar, de forma útil, a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É fácil ver que uma leitura excessivamente literal dessa disposição, que tenta introduzir entre nós o princípio da subsidiariedade vigente no direito alemão (recurso constitucional) e no direito espanhol (recurso de amparo), acabaria por retirar desse instituto qualquer significado prático. De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação somente poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes de afastar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deve predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no § 1º do art. 4º da Lei n. 9.882/1999, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, caso se considere o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. (…) Nesse cenário, tendo em vista o caráter acentuadamente objetivo da argüição de descumprimento, o juízo de subsidiariedade há de ter em vista, especialmente, os demais processos objetivos já consolidados no sistema constitucional. Destarte, assumida a plausibilidade da alegada violação ao preceito constitucional, cabível a ação direta de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade, não será admissível a argüição de descumprimento. Em sentido contrário, em princípio, não sendo admitida a utilização de ações diretas de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade – isto é, não se verificando a existência de meio apto para solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata -, há de se entender possível a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. (…) Não se pode admitir que a existência de processos ordinários e recursos extraordinários deva excluir, a priori, a utilização da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Até porque o instituto assume, entre nós, feição marcadamente objetiva. Nessas hipóteses, ante a inexistência de processo de índole objetiva, apto a solver, de uma vez por todas, a controvérsia constitucional, afigurar-se-ia integralmente aplicável a argüição de descumprimento de preceito fundamental. É que as ações originárias e o próprio recurso extraordinário não parecem, as mais das vezes, capazes de resolver a controvérsia constitucional de forma geral, definitiva e imediata. A necessidade de interposição de um sem número de recursos extraordinários idênticos poderá, em verdade, constituir-se em ameaça ao livre funcionamento do STF e das próprias Cortes ordinárias. (…) Desse modo, é possível concluir que a simples existência de ações ou de outros recursos processuais – vias processuais ordinárias – não poderá servir de óbice à formulação da argüição de descumprimento. Ao contrário, tal como explicitado, a multiplicação de processos e decisões sobre um dado tema constitucional reclama, as mais das vezes, a utilização de um instrumento de feição concentrada, que permita a solução definitiva e abrangente da controvérsia. (…) Como o instituto da ADPF assume feição eminentemente objetiva, o juízo de relevância deve ser interpretado como requisito implícito de admissibilidade do pedido. Seria possível admitir, em tese, a propositura de ADPF diretamente contra ato do Poder Público, nas hipóteses em que, em razão da relevância da matéria, a adoção da via ordinária acarrete danos de difícil reparação à ordem jurídica. O caso em apreço, contudo, revela que as medidas ordinárias à disposição da ora requerente – e, não utilizadas – poderiam ter plena eficácia. Ressalte-se que a fórmula da relevância do interesse público, para justificar a admissão da argüição de descumprimento (explícita no modelo alemão), está implícita no sistema criado pelo legislador brasileiro. No presente caso, afigura-se de solar evidência a falta de relevância jurídica para a instauração da ADPF. Assim, tendo em vista a existência, pelo menos em tese, de outras medidas processuais cabíveis e efetivas para questionar os atos em apreço, entendo que o conhecimento do presente pedido de ADPF não é compatível com uma interpretação adequada do princípio da subsidiariedade. (…) Conseqüentemente, nego seguimento ao presente pedido de argüição de descumprimento de preceito fundamental por entender que a postulação é manifestamente incabível, nos termos e do art. 21, § 1º do RISTF. Por conseguinte, declaro o prejuízo do pedido de medida liminar postulado.” (grifou-se) (ADPF 76, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão monocrática, julgamento em 13-2-06, DJ de 20-2-06).


É o que ocorre no presente caso. Ainda não se questionou, perante o Poder Judiciário, a compatibilidade com os preceitos fundamentais da Constituição Federal da interpretação da Lei nº 6.683/1979, no sentido de que a anistia estende-se aos crimes comuns, praticados por agentes públicos contra opositores políticos, durante o regime militar.

Como é sabido, já se firmou na jurisprudência dessa Corte o entendimento de que não cabe Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição. E os outros meios de controle objetivo de constitucionalidade não são aptos a pôr fim à controvérsia constitucional acima apontada, porque: a) destinados a pleitear a constitucionalidade de lei ou ato normativo (ação declaratória de constitucionalidade), quando o que se pretende aqui é justamente o contrário; b) destinados à materialização de intervenção federal ou estadual (representação interventiva), o que não é o caso.

3. INÉPCIA JURÍDICA DA INTERPRETAÇÃO QUESTIONADA DA LEI nº 6.683/1979

O Art. 1º da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, declara que “é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”.

O § 1º desse mesmo artigo esclarece: “Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.

É sabido que esse último dispositivo legal foi redigido intencionalmente de forma obscura, a fim de incluir sub-repticiamente, no âmbito da anistia criminal, os agentes públicos que comandaram e executaram crimes comuns contra opositores políticos ao regime militar. Em toda a nossa história, foi esta a primeira vez que se procurou fazer essa extensão da anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado, encarregados da repressão. Por isso mesmo, ao invés de se declararem anistiados os autores de crimes políticos e crimes comuns a ele conexos, como fez a lei de anistia promulgada pelo ditador Getúlio Vargas em 18 de abril de 1945, redigiu-se uma norma propositalmente obscura. E não só obscura, mas tecnicamente inepta.

Se não, vejamos.

É de geral conhecimento que a conexão criminal implica uma identidade ou comunhão de propósitos ou objetivos, nos vários crimes praticados. Em conseqüência, quando o agente é um só a lei reconhece a ocorrência de concurso material ou formal de crimes (Código Penal, artigos 69 e 70). É possível, no entanto, que os agentes sejam vários. Nessa hipótese, tendo em vista a comunhão de propósitos ou objetivos, há co-autoria (Código Penal, art. 29).

É bem verdade que, no Código de Processo Penal (art. 76, I in fine), reconhece-se também a conexão criminal, quando os atentes criminosos atuaram uns contra os outros. Trata-se, porém, de simples regra de unificação de competência, de modo a evitar julgamentos contraditórios. Não é norma de direito material.

Pois bem, sob qualquer ângulo que se examine a questão objeto da presente demanda, é irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida, nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal), ou por várias pessoas em co-autoria. No caso, portanto, a anistia somente abrange os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetivos.

É fora de qualquer dúvida que os agentes policiais e militares da repressão política, durante o regime castrense, não cometeram crimes políticos.

No período abrangido pela anistia concedida por meio da Lei nº 6.683/1979, vigoraram sucessivamente três diplomas legais, definidores de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social: o Decreto-Lei nº 314, de 13/03/1967; o Decreto-Lei nº 898, de 29/09/1969 e, finalmente, a Lei nº 6.620, de 17/12/1978.


Escusado dizer que os agentes públicos, que mataram, torturam e violentaram sexualmente opositores políticos, entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, não praticaram nenhum dos crimes definidos nesses diplomas legais, pela boa razão de que não atentaram contra a ordem política e a segurança nacional. Bem ao contrário, sob pretexto de defender o regime político instaurado pelo golpe militar de 1964, praticaram crimes comuns contra aqueles que, supostamente, punham em perigo a ordem política e a segurança do Estado.

Ou seja, não houve comunhão de propósitos e objetivos entre os agentes criminosos, de um e de outro lado.

Tampouco se pode dizer que houve conexão criminal pela prática de crimes “por várias pessoas, umas contra as outras”. Em primeiro lugar, porque essa regra de conexão é exclusivamente processual. Em segundo lugar, porque os acusados de crimes políticos não agiram contra os que os torturaram e mataram, dentro e fora das prisões do regime militar, mas contra a ordem política vigente no País naquele período.

Em conseqüência, a norma constante do art. 1º, § 1º da Lei nº 6.683, de 1979, tem por objeto, exclusivamente, os crimes comuns, cometidos pelos mesmos autores dos crimes políticos. Ela não abrange os agentes públicos que praticaram, durante o regime militar, crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não.

Na verdade, ainda que se admita estapafurdiamente essa conexão criminal, ela não é válida, porque ofende vários preceitos fundamentais inscritos na Constituição Federal, como se passa a demonstrar.

4. PRECEITOS FUNDAMENTAIS VIOLADOS PELA INTERPRETAÇÃO QUESTIONADA DA LEI Nº 6.683/1979

4.1 ISONOMIA EM MATÉRIA DE SEGURANÇA

A Constituição da República Federativa do Brasil declara, logo na abertura do Título consagrado aos Direitos e Garantias Fundamentais, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (Art. 5º, caput).

Uma das aplicações históricas mais tradicionais do princípio da isonomia, em matéria de segurança, é o preceito fundamental nullum crimen sine lege, inscrito no inciso XXXIX do Art. 5º da Constituição. A partir do “século das luzes”, com efeito, a consciência ética universal passou a considerar particularmente odiosa a discriminação pessoal em matéria de crimes e penas. As pessoas não podem ser diversamente apenadas, em razão de diferenças de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, IV). Qualquer que seja a condição ou o status pessoal do agente, ele é julgado pela prática de delitos definidos em lei, de modo geral e impessoal.

Ora, a anistia sobrevém como o exato oposto da definição criminal. Diversamente da graça e do indulto, ela não apenas extingue a punibilidade – como declara imperfeitamente o art. 107, II do Código Penal – mas descriminaliza a conduta criminosa. A lei dispõe, retroativamente, que certos e determinados crimes deixam de ser considerados como tais. Daí por que, ao contrário da graça e do indulto, a anistia não se refere a pessoas, mas a crimes objetivamente definidos em lei.

No caso da Lei nº 6.683, todavia, isso não ocorre. O diploma legal, seguindo a longa tradição histórica, declara objeto de anistia os crimes políticos. Mas não só. A lei estende a anistia a classes absolutamente indefinidas de crimes: “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”.

Que significa o adjetivo “relacionados”? A lei não esclarece e a doutrina ignora. Logo, incumbe ao Poder Judiciário decidir, ou seja, definir ou classificar os crimes em lugar do legislador. Pode haver mais afrontoso descumprimento do preceito fundamental de que “não há crime sem LEI anterior que o defina”?


E o despropósito não se limita a isso, escandalosamente. Além dos “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos”, a Lei nº 6.683 ainda acrescenta: “ou praticados por motivação política”.

Ora, a motivação do agente, escusa dizê-lo, é um fenômeno de consciência individual. Em país algum, em momento algum da História, em nenhuma das anteriores leis brasileiras sobre anistia, houve descriminalização de delitos que só podem ser reconhecidos como tais no caso concreto e com referência a pessoa determinada. Ou seja, quem anistia, nessa hipótese legal indefinida, é o próprio juiz. O Código Penal (art. 59), como não poderia deixar de ser, atribui ao juiz a perquirição dos “motivos” do crime. Mas somente no momento da fixação da pena, ou seja, após o reconhecimento da prática de um ato criminoso, segundo o tipo legal.

Em suma, a admitir-se a interpretação questionada da Lei nº 6.683, de 1979, nem todos são iguais perante a lei em matéria de anistia criminal. Há os que praticaram crimes políticos, necessariamente definidos em lei, e foram processados e condenados. Mas há, também, os que cometeram delitos, cuja classificação e reconhecimento não foram feitos pelo legislador, e sim deixados à discrição do Poder Judiciário, conforme a orientação política de cada magistrado. Esses últimos criminosos não foram jamais condenados nem processados. Elas já contavam com a imunidade penal durante todo o regime de exceção. O que se quer, agora, é perpetuar essa imunidade, sem que se saiba ao certo quem são os beneficiados.

Mas o desconchavo não se limita a isso. A lei nº 6.683 excetua da anistia “os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal” (art. 1º, § 2º).

Ressalte-se, em primeiro lugar, que até hoje desconhece-se o que seja o crime de “terrorismo”. Mas supondo-se que ele designe, de modo geral, a prática de violência generalizada, é de se perguntar: Por acaso, a prática sistemática e organizada, durante anos a fio, de homicídios, seqüestros, tortura e estupro contra opositores políticos não configura um terrorismo de Estado?

Digamos, no entanto, que essa exceção legal só se aplica àqueles que cometeram crimes políticos, não aos agentes da repressão. Nesse caso, é flagrante a desigualdade perante a lei em matéria de segurança. Pois, de um lado, temos delitos de opinião, excluídos os crimes de violência, enquanto de outro lado, beneficiando-se da mesma anistia, tornam-se impuníveis os crimes violentos contra a vida, a liberdade e a integridade pessoal. Pode-se configurar mais aberrante desigualdade?

Com isto, entramos na análise de mais um descumprimento de preceito fundamental.

4.2 DESCUMPRIMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DO PRECEITO FUNDAMENTAL DE NÃO OCULTAR A VERDADE

“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”

Evangelho de Jesus Cristo segundo João 8, 12

A Constituição da República declara, enfaticamente, que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral” (art. 5º, XXXIII).

O preceito representa clara aplicação do princípio democrático, segundo o qual “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente” (art. 1º, parágrafo único); bem como do princípio republicano, segundo o qual são objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos” (art. 3º, I e IV). Escusa lembrar que, sendo os governantes meros servidores do povo e não donos do poder, seria intolerável que eles pudessem, impunemente, sobretudo em matéria de crimes já cometidos, ocultar a verdade perante o soberano, que lhes delegou poderes de governo. Despiciendo, também, frisar que se o objetivo maior da organização estatal é de manter o bem comum do povo (res publica) acima de qualquer interesse pessoal ou grupal, sobretudo dos que exercem funções públicas, é inadmissível que os órgãos estatais sejam autorizados a ocultar, coram populo, a identidade dos agentes públicos que praticaram crimes contra os governados.


A única exceção que se abre a esse mandamento fundamental é a necessidade de se preservar a “segurança da sociedade e do Estado” (mesmo inciso XXXIII do art. 5º, in fine). Mas, a rigor, não se trata de uma exceção ao princípio republicano, e sim do reconhecimento, também aí, da supremacia do bem comum sobre os interesses particulares.

Ora, seria um escárnio sustentar, na vigência do Estado de Direito instituído pela Constituição de 1988, que os responsáveis por atos de repressão criminosa de opositores políticos agiram para preservar a segurança da sociedade e do Estado.

No entanto, todos os governos militares anteriores à reconstitucionalização do País timbraram em manter o sigilo sobre ordens, ações e comportamentos de agentes públicos, que atuaram fora da lei e que, muita vez, violentaram criminosamente a pessoa de opositores, reais ou presumidos, do regime de exceção então vigente.

A Lei nº 6.683, promulgada pelo último governo militar, inseriu-se nesse contexto de lôbrega ocultação da verdade. Ao conceder anistia a pessoas indeterminadas, ocultas sob a expressão indefinida “crimes conexos com crimes políticos”, como acabamos de ver, ela impediu que as vítimas de torturas, praticadas nas masmorras policiais ou militares, ou os familiares de pessoas assassinadas por agentes das forças policiais e militares, pudessem identificar os algozes, os quais, em regra, operavam nas prisões sob codinomes.

Enfim, a lei assim interpretada impediu que o povo brasileiro, restabelecido em sua soberania (pelo menos nominal) com a Constituição de 1988, tomasse conhecimento da identidade dos responsáveis pelos horrores perpetrados, durante dois decênios, pelos que haviam empalmado o poder.

Ora, entre a Justiça e a Verdade não há separação concebível.

4.3 DESRESPEITO AOS PRINCÍPIOS DEMOCRÁTICO E REPUBLICANO

A Constituição Federal abre-se com a declaração solene de que “a República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito”. Como se acaba de lembrar, o cerne do regime democrático é a soberania popular, pois do povo emanam todos os poderes, cujo exercício (apenas o exercício) pode ser feito por seus representantes eleitos. Lembramos, também, que república é o regime em que o bem comum do povo está sempre acima de qualquer interesse particular.

Pois bem, os que cometeram crimes comuns contra opositores políticos, durante o regime militar, exerciam funções públicas e eram, por conseguinte, remunerados com recursos também públicos, isto é, dinheiro do povo.

Nessas condições, a interpretação questionada da Lei nº 6.683 representa clara e direta ofensa ao princípio democrático e ao princípio republicano, que embasam toda a nossa organização política.

Ressalte-se, em primeiro lugar, que a citada lei foi votada pelo Congresso Nacional, na época em que os seus membros eram eleitos sob o placet dos comandantes militares. Sua carência de legitimidade democrática é acentuada quando se recorda que, por força da Emenda “Constitucional” nº 08, de 14 de abril de 1977, que ficou conhecida como “Pacote de Abril”, 1/3 dos Senadores passaram a ser escolhidos por via de eleição indireta (“Senadores biônicos”), tendo participado do processo legislativo do qual redundou a aprovação congressual, em 1979, da lei em referência. [1]

Ela foi sancionada por um Chefe de Estado que era General do Exército e fora guindado a essa posição, não pelo povo, mas pelos seus companheiros de farda.

Em conseqüência, o mencionado diploma legal, para produzir o efeito de anistia de agentes públicos que cometeram crimes contra o povo, deveria ser legitimado, após a entrada em vigor da atual Constituição, pelo órgão legislativo oriundo de eleições livres, ou então diretamente pelo povo soberano, mediante referendo (Constituição Federal, art. 14). O que não ocorreu.


Assinale-se, em segundo lugar, que num regime autenticamente republicano e não autocrático os governantes não têm poder para anistiar criminalmente, quer eles próprios, quer os funcionários que, ao delinqüirem, executaram suas ordens. Tal seria, obviamente, agir não a serviço do bem comum do povo, mas em seu próprio interesse e benefício.

Vale registrar que a Corte Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Brasil no Decreto Legislativo nº 89, de dezembro de 1998, já decidiu, em pelo menos 5 (cinco) casos,* que é nula e de nenhum efeito a auto-anistia criminal decretada por governantes.

A Constituição Federal dispõe que o Brasil rege-se, nas suas relações internacionais, entre outros, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (art. 4º, II). Porventura temos o direito de exigir de outros países o respeito aos direitos humanos, quando nos recusamos a respeitá-los em nosso próprio território?

 

4.4 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DO POVO BRASILEIRO NÃO PODE SER NEGOCIADA

O derradeiro argumento dos que justificam, a todo custo, a encoberta inclusão na Lei nº 6.683 dos crimes cometidos por funcionários do Estado contra presos políticos é o de que houve, no caso, um acordo para permitir a transição do regime militar ao Estado de Direito.

A primeira indagação que não pode deixar de ser feita, a esse respeito, é bem esta: Quem foram as partes nesse alegado acordo?

Uma resposta imediata pode ser dada a essa pergunta. As vítimas sobreviventes ou os familiares dos mortos não participaram do acordo. A maior parte deles, aliás, nunca soube a identidade dos assassinos e torturadores, e bom número dos familiares dos mortos ignora onde estão os seus cadáveres.

O acordo foi, então, negociado por quem? Os parlamentares? Mas eles não tinham, como nunca tiveram, procuração das vítimas para tanto, nem consultaram o povo brasileiro para saber se aprovava ou não o acordo negociado, que dizia respeito à abertura do regime militar, em troca da impunidade dos funcionários do Estado que atuaram na repressão política.

E a outra parte, quem seria? Os militares aboletados no comando do País? Ora, até hoje a corporação militar não confirma o acordo, pela excelente razão de que ela nunca admitiu o cometimento de crimes pelos seus agentes da repressão.

Admitamos, porém, como mero exercício de argumentação, que tal acordo existiu e que dele extraímos o benefício da reconstitucionalização do País.

Se assim foi, força é reconhecer que o Estado instituído com a liquidação do regime militar nasceu em condições de grave desrespeito à pessoa humana, contrariamente ao texto expresso da nova Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil […] constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] a dignidade da pessoa humana. (art. 1º, III).

Kant afirmou, no século XVIII, que a pessoa humana não pode servir de meio para a obtenção de qualquer finalidade; pois ela é um fim em si mesma. Portanto, tem dignidade, não um preço. Hoje, o sistema universal de direitos humanos declara inadmissível e reprovável usar a dignidade das pessoas e dos povos como moeda de troca em um acordo político.

Na verdade crua dos fatos, em 1979 quase todos os que se haviam revoltado contra o regime militar com armas na mão já haviam sido mortos. Restavam, portanto, nas prisões militares e policiais, unicamente pessoas acusadas de delitos de opinião. Tal significa que, no suposto acordo político, jamais revelado à opinião pública, a anistia aos responsáveis por delitos de opinião serviu de biombo para encobrir a concessão de impunidade aos criminosos oficiais, que agiam em nome do Estado, ou seja, por conta de todo o povo brasileiro.

E há mais. A Constituição promulgada em 1988, seguindo na esteira do sistema internacional de direitos humanos, considerou inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática de tortura (art. 5º, XLIII). É ridículo argumentar que, quando editada a Lei nº 6.683, a tortura não era definida como crime no Brasil. Não se trata absolutamente disso. Trata-se de assinalar a incompatibilidade ético-jurídica radical da tortura com o princípio supremo de respeito à dignidade humana, fundamento de todo o sistema universal de direitos humanos e do sistema constitucional brasileiro instaurado em 1988.


A Assembléia Geral das Nações Unidas, após a revelação dos crimes cometidos pelos regimes totalitários, vencidos na Segunda Guerra Mundial, fixou na Declaração Universal dos Direitos Humanos o supremo mandamento de que todo homem tem direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei (Artigo VI). Como direta conseqüência, o Artigo V da mesma Declaração estatui que “ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.

A mesma Assembléia Geral das Nações Unidas julgou tão importante e fundamental essa declaração, que a desenvolveu na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984, aprovada e ratificada em nosso País.

Se a tortura é, assim, universalmente qualificada como prática aviltante, que não dispensa punição, é inadmissível dar à Lei nº 6.683 a interpretação ora questionada, pois ela implicaria, fatalmente, a não-recepção desse diploma legal pela nova Constituição.

Dir-se-á que as vítimas sobreviventes do regime militar já obtiveram ressarcimento dos gravames sofridos, por força da anistia decretada pelo art. 8º do Ato das Disposições Transitórias da Constituição de 1988, regulamentado pela Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. E quanto aos familiares dos mortos e desaparecidos, eles obtiveram igual satisfação reparatória, graças à Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995.

Ora, em primeiro lugar, assinale-se o desconchavo de se declararem anistiadas as vítimas da repressão política, como se elas fossem culpadas pelas violências que sofreram! Mas, sobretudo, deve-se frisar, com todas as forças, que atos de violação da dignidade humana não se legitimam com uma reparação pecuniária concedida às vítimas, ficando os responsáveis pela prática de tais atos, bem como os que os comandaram, imunes a toda punição e até mesmo encobertos pelo anonimato.

Em suma, Egrégio Tribunal, o que se pede e espera com a presente demanda, em última análise, é que a Justiça Brasileira confirme definitivamente, perante a História, a dignidade transcendental e, portanto, inegociável da pessoa humana, fundamento de toda a nossa ordem constitucional (Constituição Federal, art. 1º, III).

5. DO PEDIDO

Pelo exposto, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pede:

a) a notificação do Exmo. Sr. Procurador-Geral da República, para que emita o seu parecer, nos termos do art. 103, § 1º da Constituição Federal;

b) a procedência do pedido de mérito, para que esse Colendo Tribunal dê à Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, uma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985).

Deixa-se de atribuir valor à causa, diante da impossibilidade de aferi-lo.

Nesses termos, pede deferimento.

Brasília/DF, de de 2008.

Fábio Konder Comparato

OAB/SP nº 11118

Maurício Gentil Monteiro

OAB/SE nº 2.435

[1] Só uma leva de senadores foi indicada dessa forma, pois a EC n. 15, de 19 de novembro de 1980, restabeleceu o voto popular direto. Os senadores indicados indiretamente, por colégio eleitoral, só cumpriram um mandato de oito anos, a partir da renovação que se deu em 1977. Nesse período, um em cada três senadores não tinha nenhuma legitimidade democrática.

* Caso Loayza Tamayo v. Peru, sentença de 27 de novembro de 1998, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/votos/vsc_cancadoabreu_42-esp.doc; Caso Barrios Altos v. Peru, Fondo, sentença de 14 de março de 2001, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Serie_75_esp.doc; Caso Barrios Altos, Interpretación de la Sentença de Fondo (art. 67 Convención Americana sobre Derechos Humanos, sentença de 3 de setembro de 2001, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_124_esp.doc; Caso de la Comunidad Moiwana, sentença de 15 de setembro de 2005, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_124_esp.doc; Caso Almonacid Areliano y otros v. Chile. Excepciones Preliminares. Fondo. Reparaciones y Costas, sentença de 26 de setembro de 2006, disponível em http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_154_esp.doc

 

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!