Prisão em flagrante

Auditor da Receita não pode se omitir em caso de suborno

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21 de outubro de 2008, 17h26

O presente artigo, sem pretensão de esgotar o tema, tem por objetivo discutir a atitude a ser assumida pelo servidor fiscal, em face de tentativa de suborno. Muito embora a discussão seja centrada em questões relacionadas com a Secretaria da Receita Federal do Brasil, órgão ao qual servi por muitos anos e ao qual devo significativa parcela da minha formação profissional, boa parte das informações coligidas podem ser de utilidade a servidores fiscais de outras entidades, da administração federal ou de outras pessoas jurídicas de direito público.

Considerando a finalidade eminentemente prática deste trabalho, nada mais significativo do que começar com um fato real. Consta de comunicação amplamente difundida entre o público interno pela Secretaria da Receita Federal do Brasil através do sistema note, noticiada também pelo Boletim Eletrônico UNAFISCO 178, editado em 16 de dezembro de 2004 (www.unafisco.org.br).

“Os colegas do Aeroporto de Cumbica não só evitaram a entrada no Brasil de mais 200 quilos de equipamentos eletrônicos contrabandeados, como participaram de uma operação conjunta com a Polícia Federal que resultou na prisão em flagrante do contrabandista que tentava subornar os fiscais para liberar a mercadoria. A prisão do contraventor só foi possível graças à diligência dos auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil (AFRF) que estavam de plantão na última segunda-feira, 13 de dezembro.

Nessa data, a equipe de fiscalização de vôos internacionais percebeu sete malas abandonadas nas esteiras de retirada de bagagens provenientes dos Estados Unidos. Os AFRFs inspecionaram a bagagem e constataram, pelo scanner de raio-x, que se tratava de equipamentos eletrônicos. Os fiscais procederam, então, à retenção da mercadoria.

Na manhã seguinte, em 14 de dezembro, um homem telefonou para a fiscalização alfandegária e se identificou como proprietário da mercadoria. Propôs, então, um encontro com os fiscais em um local fora do aeroporto para discutir a liberação dos produtos. Os colegas acionaram a Polícia Federal e planejaram o flagrante. O homem foi preso em uma churrascaria de São Paulo, no momento em que pretendia entregar US$ 10 mil ao servidor da Receita Federal. Toda a ação foi filmada, o que servirá para indiciar o passageiro por corrupção ativa. Pelo delito, tipificado no artigo 333 do Código Penal Brasileiro, ele poderá sofrer reclusão de dois a 12 anos e pagar multa.

A perspicácia dos AFRFs de Cumbica, ao fingir aceitar a proposta do corruptor como forma de levá-lo ao flagrante, mostra iniciativa e agilidade no momento certo. A atitude permitiu não só a apreensão do material, como a prisão de uma pessoa que tinha o claro interesse de atacar os cofres públicos. Também impediu a entrada de produtos contrabandeados, que são uma concorrência desleal para os produtos brasileiros. Operações como essa realizada em Cumbica mostram para o país a importância do trabalho dos AFRFs e servem para engrandecer a nossa categoria.”

No desempenho das missões que lhes são conferidas pelas autoridades da Secretaria da Receita Federal do Brasil, deparam-se os servidores fiscais com situações nas quais têm de lidar com o assédio de contribuintes e seus prepostos, os quais intentam, com ofertas ou promessas de dinheiro ou vantagens, em contrapartida de ato comissivo ou omissivo relacionado com o cumprimento do dever funcional.

Corrupção ativa, ação delituosa que admite a modalidade de tentativa, é crime previsto no artigo 333 do Código Penal. Recorrendo à didática de Júlio Fabbrini Mirabete (Manual de Direito Penal, S. Paulo: Atlas, 12ª Ed., 1988, v. 3, p.372), tutela-se com o dispositivo a probidade da administração pública. Tenta-se com o dispositivo evitar que uma ação externa provoque a corrupção do funcionário para que pratique este ato de improbidade e venalidade no exercício de sua função.

Não é necessário que a oferta ou promessa seja feita diretamente ao servidor, nada impedindo que seja ela efetuada através de interposta pessoa, co-autor do crime em apreço (RT, 542/323). A configuração do crime independe de ser a oferta ou promessa aceita pelo funcionário (RF, 680/337; RT 548/336). Embora possam coexistir os crimes de corrupção ativa e de corrupção passiva, se o extraneus oferece a vantagem e o funcionário a recebe, o ilícito em estudo não é bilateral: pode ser feita a oferta ou promessa sem que o funcionário a aceite (RT, 419/110).

Ressalvada a competência da Polícia Federal nos aspectos pertinentes ao combate ao crime, a atribuição funcional de prevenir e reprimir o contrabando e o descaminho no exercício da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil, relativamente aos tributos e às contribuições por ela administrados, é própria e privativa dos servidores fiscais, designadamente os auditores-fiscais da Receita Federal do Brasil. Os analistas tributários (antigos técnicos da Receita Federal), detêm a atribuição de “auxiliar os auditores-fiscais no exercício de suas atribuições (Lei 10.593, de 6 de dezembro de 2002, art. 6º, “c”).


A Constituição é, a respeito, incisiva, quando estabelece, em seu artigo 37, XVIII: “a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei”.

Dessume do exposto que é obrigação do servidor fiscal tomar as providências devidas, quando é ele próprio abordado por alguém que pretenda que pratique ilícito funcional mediante propina, ou quando toma conhecimento de que qualquer outro servidor da área aduaneira está sendo alvo de oferta ou promessa nesse sentido.

A medida mais eficaz é a prisão em flagrante do agente da corrupção ativa, sempre que possível com o apoio da autoridade policial. O Código de Processo Penal assim define o flagrante delito:

Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem:

I— está cometendo a infração penal;

II — acaba de cometê-la;

III — é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV — é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

A prisão em flagrante do agente ativo do crime ou de um seu preposto facilita e abrevia a apuração da prática delituosa, propiciando ao Ministério Público Federal elementos irrefutáveis para a efetividade da persecução penal. Mesmo quando o flagrante recai sobre um emissário do agente, terá ele toda conveniência em amenizar a pena ou mesmo obter imunidade, pela prática da delação premiada.

Para que se verifique o flagrante o agente do crime deve estar convicto de que o servidor abordado acedeu em receber a propina, o que exige, por parte deste, uma atitude convincente. Surge então a pergunta: não será ilegal tal sorte de procedimento? A doutrina e a jurisprudência dão adequada resposta a esse questionamento:

“I — Não há que se confundir flagrante preparado, modalidade que conduz à caracterização do crime impossível, com o flagrante esperado, que é plenamente admitido pela legislação penal e processual penal.

II — Verifica-se o flagrante esperado na hipótese em que policiais, após obterem, por meio de interceptação telefônica judicialmente autorizada, informações de que quadrilha armada pretende realizar roubo em estabelecimento industrial, consegue, por meio de ação tempestiva, evitar a consumação da empreitada criminosa” (STJ, 5ª Turma, HC 84141, Rel. Ministro Felix Fischer, DJ 18/02/2008 página:48).

“1. Não se verifica flagrante preparado quando a atividade policial não provoca ou induz ao cometimento do crime, sobretudo, em relação ao tipo do crime previsto no art. 273, § 1º-B, do Código Penal, que é de ação múltipla, consumando-se, apenas, com o fato de ter em depósito o produto ilícito com o propósito de venda. Precedentes desta Corte” (STJ, 5ª Turma, HC 45989, Relatora Ministra LAURITA VAZ, DJ 06/08/2007 página 546).

Os servidores fiscais da Receita Federal do Brasil dispõem do apoio do GEINT — Grupo Especial de Inteligência, setor que integra a administração de todas as Alfândegas do país, para orientá-los e conduzir as ações destinadas a reprimir o assédio criminoso com vistas a levá-los à prática de ilícito funcional.

O GEINT é, por excelência, instrumento da produção de conhecimentos sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência nas atividades-fim da Receita Federal do Brasil. Incumbe-lhe, na área aduaneira, conduzir investigações sigilosas sobre ilícitos tributários de toda ordem, atuando, preferencialmente, na prevenção e repressão ao contrabando ou descaminho. No caso de tentativa de suborno de servidores, incumbe ao GEINT coletar informes e orientar as ações que levarão à prisão em flagrante dos agentes do delito, articulando-se, para tal fim, com a Polícia Federal.

Uma vez tenha tomado conhecimento de uma tentativa de suborno em andamento, deve a autoridade aduaneira agir prontamente, desencadeando os procedimentos que deverão levar à identificação dos responsáveis e à sua prisão. Há, porém, uma exceção, contemplada pela Lei 9.034/1995, modificada pelas Leis 9.080/1995 e 11.343/2006, que dispõe sobre a ação controlada, e a Lei 11.343/2006. Esta última editada em cumprimento às avenças da Convenção de Viena de 1988, celebrada sob a égide das Nações Unidas (Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas), aprovada pelo Decreto Legislativo 162, de 14.09.91 e incorporada ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto 154 de 26.06.1991.

A ação controlada é uma técnica policial que consiste no retardamento da ação policial repressiva, em favor do controle e do acompanhamento das ações ilícitas, até o momento mais oportuno, “para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações” (Lei 9.034, art. 2º, II).


A Lei 11.343 também prevê a hipótese de, tendo em vista a otimização do resultado da investigação, diferir o momento da lavratura do flagrante. Confira-se:

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:

I — a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;

II — a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

Compreendida na ação controlada, a entrega vigiada torna-se uma verdadeira exceção ao princípio de que toda autoridade que tem conhecimento de um delito no exercício de suas funções deve denunciá-lo e persegui-lo. Por uma questão de política criminal, considera-se mais conveniente não interceptar imediatamente esse carregamento de droga para conseguir um resultado mais positivo, ou seja, o desbaratamento de toda a organização criminosa. A entrega vigiada é praticada na repressão ao tráfico e entorpecentes, e no âmbito de atuação da Convenção Interamericana contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo.

Cumpre anotar a distinção entre flagrante prorrogado e flagrante esperado, já definido linhas antes. Neste, a intervenção da autoridade se dá num momento certo, sem nenhuma vigilância permanente, a situação de flagrante não é duradoura e a prisão tem que acontecer imediatamente, diante da situação de flagrância. Naquele, a situação de flagrância é duradoura e a vigilância policial também o é, sendo que a autoridade somente espera o melhor momento de efetuar a prisão.

Pode autoridade aduaneira, uma vez tomando conhecimento do fato que é objeto do presente estudo, deixar de tomar providências no sentido de identificar o agente do crime e, se possível, prendê-lo em flagrante? A resposta é negativa. Corrupção ativa é crime sujeito a ação pública incondicionada. Deixar de agir, nesse caso, é omitir-se no cumprimento do dever funcional, sujeito às cominações da Lei 9.112, de 1990. Dependendo das circunstâncias, poderá ser tipificado, em seu desfavor, o crime previsto no artigo 318 do Código Penal: “Facilitar, com infração de dever funcional, a prática de contrabando ou descaminho”.

Como ensina Mirabete (op. cit, p. 323), Facilitar é tornar fácil, coadjuvar, afastar obstáculos, auxiliar de forma comissiva ou omissiva a prática do crime do artigo 334. Deve o agente ter, por lei, o dever funcional de reprimir o contrabando ou descaminho (RTFR 61/104) — é o caso do auditor-fiscal da Receita Federal do Brasil ou, ainda, do analista tributário. Caso contrário, responderá por co-autoria do crime do artigo 334, punido com pena mais branda.

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