Palavra insuficiente

Apenas o depoimento da vítima não justifica ação penal

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20 de outubro de 2008, 14h58

Apenas a declaração da suposta vítima de um crime não é suficiente para deflagrar a ação penal contra o acusado de cometê-lo. O entendimento é da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao extinguir, sem julgamento do mérito, o processo pelo qual uma mulher respondia por apropriação indébita.

Para o desembargador Geraldo Prado, relator do pedido de Habeas Corpus, a acusação tem de apontar indícios para que a ação penal seja deflagrada. “Tal exigência encontra fundamento de validade na Constituição da República, nos princípios de tutela da dignidade da pessoa, que se projeta no processo penal de modo a que só ação penal com justa causa, isto é, com indícios mínimos da viabilidade do pedido de condenação, possa deflagrar processo regular”, afirma.

Em 15 de dezembro de 2004, o juiz Cláudio Ferreira Rodrigues, da Vara Única de Mangaratiba (RJ), aceitou a denúncia contra Gracinete de Souza Nogueira. Na época, a mulher chegou a ter a prisão preventiva expedida pelo juiz da Vara Única de Mangaratiba (RJ), acusada de ter se apropriado de um apartamento e de bens que estavam dentro dele. Após várias tentativas de localizar a acusada, o juiz determinou a liberdade provisória de Gracinete em julho de 2008.

O desembargador constatou que as provas consistiam apenas em declarações “sintéticas” da vítima. “Nesse passo, a certeza que a acusação declara ter sobre a autoria da prática do crime de apropriação indébita não passa de mera suposição”, afirmou.

Segundo Geraldo Prado, a investigação não conseguiu “determinar a relação de locação ou empréstimo do imóvel pela suposta vítima à paciente, a propriedade ou a posse do imóvel pela vítima e a existência de bens móveis de que a paciente pudesse se apropriar”. O desembargador foi acompanhado pelos demais integrantes da 5ª Câmara Criminal.

Leia a decisão

HABEAS CORPUS: 2008.059.04423

IMPETRANTE: MARCELO PINHEIRO BRAUNE

PACIENTE: GRACINETE DE SOUZA NOGUEIRA

AUTORIDADE COATORA: JUIZ DE DIREITO DA VARA ÚNICA DE MANGARATIBA

RELATOR: DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

EMENTA: HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. JUSTA CAUSA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. A DENÚNCIA COMO QUALQUER PETIÇÃO INICIAL CONTÉM “DESENHO ESTRATÉGICO SUBJACENTE, QUE SUGERE UM PLANO DE DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE PROBATÓRIA E UMA PROPOSTA DE LEITURA DE PREVISÍVEL RESULTADO DESTA ATIVIDADE DIRIGIDA AO JULGADOR”. INADMISSIBILIDADE DE AÇÃO PENAL SEM SUPORTE EM UM MÍNIMO DE INFORMAÇÕES QUE ASSEGUREM TRATAR-SE DE DEMANDA NÃO LEVIANA OU TEMERÁRIA (ARTIGO 395, III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL CONFORME A REDAÇÃO DA LEI 11.719/08) CONSTRANGIMENTO ILEGAL CARACTERIZADO QUANDO A DENÚNCIA RECEBIDA PROPÕE A CONDENAÇÃO DA PACIENTE COM BASE EM MEIO DE PROVA DE PLANO INCAPAZ DE AUTORIZAR A EMISSÃO DE DECRETO CONDENATÓRIO. Paciente denunciada como autora de crime de apropriação indébita porque supostamente teria permanecido em imóvel alugado pela vítima, e na posse de bens móveis que também supostamente guarneceriam o referido apartamento. Alegação de que a paciente se apropriou destes bens. Investigação criminal que não logrou determinar a relação de locação ou empréstimo do imóvel pela suposta vítima à paciente, a propriedade ou a posse do imóvel pela vítima e a existência de bens móveis de que a paciente pudesse se apropriar. Lastro probatório consistente em sintéticas declarações da vítima (fl. 04 do apenso). Pretensão do Ministério Público de demonstrar a responsabilidade penal da paciente apenas pela reprodução judicial destas declarações. Atividade probatória em processo penal que em verdade busca “fazer coincidir a realidade processual com a realidade empírica” (Perfecto Andrés Ibáñez, in Valoração da Prova e Sentença Penal, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, p. 35). Exigência de conjunto de meios de prova que se apóiam reciprocamente de forma a gerar no espírito do julgador a convicção da existência do crime (Maria Thereza Rocha de Assis Moura in A Prova por Indícios no Processo Penal, Ed. Saraiva, São Paulo, p. 79). Inexistências destes indícios de autoria e materialidade da infração penal que impõe a extinção do processo por falta de justa causa na medida em que o “chamado status dignitatis” (Afrânio Silva Jardim in Direito Processual Penal Revista e Atualizada, Ed. Forense, Rio de Janeiro, p. 313) atingido pela simples instauração do processo penal, que somente se justificaria diante da “sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que baseada em um mínimo de prova” (Afrânio Silva Jardim, obra citada, p. 313).

Constrangimento ilegal reconhecido e ordem concedida para extinguir o processo por falta de justa causa.

ORDEM CONCEDIDA.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Habeas Corpus nº. 2008.059.04423, em que é impetrante MARCELO PINHEIRO BRAUNE e paciente GRACINETE DE SOUSA NOGUEIRA.

ACORDAM, por unanimidade, os Desembargadores que integram a Quinta Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em sessão de julgamento realizada no dia 25 de setembro de 2008, em julgar procedente o pedido e CONCEDER A ORDEM, para extinguir o processo por falta de justa causa, nos termos do voto do Desembargador Relator.

A sessão de julgamento foi presidida pelo Desembargador Sérgio de Souza Verani. Participaram do julgamento como vogais os Desembargadores Cairo Ítalo França David e o Desembargador Nildson Araújo da Cruz.

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2008.

DESEMBARGADOR GERALDO PRADO

RELATOR

RELATÓRIO

Trata-se de pedido de habeas corpus em favor de GRACINETE DE SOUSA NOGUEIRA em razão de alegado constrangimento ilegal consubstanciado no recebimento da denúncia em face da paciente, pela prática do crime definido no artigo 168, caput, do Código Penal.

O impetrante postula a revogação da prisão preventiva e a extinção do processo penal sem apreciação do mérito (“trancamento da ação penal”) fundada na ausência de justa causa para a ação penal.

Para tanto alega, em síntese, que foi atribuída à paciente a apropriação dos bens que guarneciam a residência de MARIA LUIZA VIVEIRA DE ABREU, em razão de a suposta vítima ter dado em locação à GRACINETE imóvel de sua propriedade.

Aduz que a ação penal foi deflagrada com base exclusivamente na palavra da suposta vítima (fl. 04). Paralelamente, afirma que não estão presentes os requisitos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Por fim, informa que a paciente não possui imóvel próprio e por essa razão muda constantemente de endereço, contudo, está correto o endereço que consta no ofício expedido pela Receita Federal em reposta ao juízo da Vara única de Mangaratiba, acostado à fl. 185 dos autos do processo originário (fl. 05).

A inicial veio instruída com cópias de todo cópia de todo o processo de origem, salvo a denúncia (apenso).

A liminar foi indeferida à fl. 11.

A autoridade apontada como coatora, em informações acostadas às fls. 16/7, noticia que foi deferida liberdade provisória à paciente.

A Procuradoria de Justiça, em parecer da lavra da e. Procuradora Maria Teresa de Andrade Ramos Ferraz, considerando o fato de que a paciente foi posta em liberdade, opinou pela extinção do processo sem julgamento do mérito (fls. 19).

O Relator que me antecedeu determinou a remessa à Procuradoria de Justiça para manifestação sobre o pleito de “trancamento da ação penal” (fl. 20).

Em novo parecer a Procuradoria requereu a expedição de ofício ao juízo “a quo” para que fosse fornecida cópia da denúncia (fl. 21), o que foi atendido às fls. 28/9.

Em derradeiro parecer da Procuradoria de Justiça da lavra da e. Procuradora Lígia Portes Santos, o Ministério Público opinou pela concessão da ordem.

É o relatório.

VOTO

A ordem deve ser concedida.

Trata-se de habeas corpus objetivando a concessão da ordem para declarar extinto o processo sem julgamento do mérito, em razão da ausência de justa causa para a deflagração da ação penal, perante o juízo da Vara Única de Mangaratiba.

As informações apresentadas pela autoridade apontada como coatora dão conta, apenas, de que a paciente foi colocada em liberdade e que o interrogatório foi designado para o dia 15 de dezembro de 2008 (fls. 16/7).

O Ministério Público opinou pela concessão da ordem por entender que não está “demonstrado minimamente o envolvimento da paciente no atuar criminoso noticiado” (fl. 32).

De fato, a denúncia, como qualquer petição inicial, contém “desenho estratégico subjacente, que sugere um plano de desenvolvimento da atividade probatória e uma proposta de leitura de previsível resultado desta atividade dirigida ao julgador” (Perfecto Andrés Ibáñez, in Valoração da Prova e Sentença Penal, Ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, p. 35).

Assim tem-se como inadmissível a deflagração de uma ação penal sem suporte em um mínimo de informações que assegurem tratar-se de demanda não leviana ou temerária (artigo 395, III, do Código de Processo Penal conforme a redação da lei 11.719/08).

O constrangimento ilegal fica caracterizado quando a denúncia recebida propõe a condenação da paciente com base em meio de prova de plano incapaz de autorizar a emissão de decreto condenatório.

No caso deste processo, a paciente foi denunciada como autora de crime de apropriação indébita porque supostamente teria permanecido em imóvel alugado pela vítima, e na posse de bens móveis que também supostamente guarneceriam o referido apartamento.

Ocorre que a investigação criminal que não logrou determinar a relação de locação ou empréstimo do imóvel pela suposta vítima à paciente, a propriedade ou a posse do imóvel pela vítima e a existência de bens móveis de que a paciente pudesse se apropriar.

Desta forma, o lastro probatório consiste nas sintéticas declarações da vítima (fl. 04 do apenso), e a mera alegação de que a paciente se apropriou dos bens da vítima, todavia, não se afigura suficiente para deflagração de ação penal.

Ouso presumir que a pretensão do Ministério Público de demonstrar a responsabilidade penal da paciente consiste tão-somente na reprodução judicial das declarações da vítima.

Nesse passo, a certeza que a acusação declara ter sobre a autoria da prática do crime de apropriação indébita não passa de mera suposição.

É imperioso que a acusação aponte no início da relação processual quais são os indícios mínimos que conferem suporte à pretensão deduzida. Tal exigência encontra fundamento de validade na Constituição da República, nos princípios de tutela da dignidade da pessoa, que se projeta no processo penal de modo a que só ação penal com justa causa, isto é, com indícios mínimos da viabilidade do pedido de condenação, possa deflagrar processo regular.

A inexistência ou a insuficiência dos indícios de autoria e materialidade da infração penal impõe a extinção do processo por falta de justa causa na medida em que o “chamado status dignitatis” é atingido pela simples instauração do processo penal, que somente se justificaria diante da “sólida demonstração, prima facie, de que a acusação não é temerária ou leviana, por isso que baseada em um mínimode prova” (Afrânio Silva Jardim in Direito Processual Penal Revista e Atualizada, Ed. Forense, Rio de Janeiro, p. 313).

Assim, vislumbro o constrangimento alegado, e dirijo meu voto no sentido de ser julgado procedente o pedido e CONCEDER A ORDEM para declarar extinto o processo sem julgamento do mérito por falta de justa causa para a deflagração da ação penal.

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2008.

GERALDO PRADO

DESEMBARGADOR

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