Presunção de inocência

MP e Polícia devem atentar mais aos direitos fundamentais

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17 de outubro de 2008, 0h00

As Declarações Universais de Direito formulam princípios fundamentais que inevitavelmente repercutem — de modo expresso ou não — quando da elaboração da Constituição de um povo. Uma norma fundamental, consoante o ensinamento de Hans Kelsen, adquire contornos tão superiores, como entendo, de modo que se perfaz alçada à divindade da norma natural que, por isso mesmo, não pode ser mais valorada, pois já se constitui de pureza irretocável, daí sua força de coação inexpugnável.

Tal ocorreu, por exemplo, com relação ao princípio da presunção de inocência que mereceu do Constituinte de 1988 expressa positivação, quando, no inciso LVII, do artigo 5º, pontuou: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Antes, contudo, quando da Constituição anterior, essa questão foi tratada, apenas, em farta doutrina e em isolados avanços jurisprudenciais. É por isto que o direito processual penal brasileiro avança de modo gradual para ajustar-se à nova ordem constitucional, notadamente no que se refere à questão das “liberdades provisórias” denominação esta que, a bem do bom senso, há de ser ponderada como equivocada porquanto a liberdade de alguém deve ser sempre definitiva, isto é, deve ser regra, enquanto que sua prisão, esta sim, como exceção, é que deve ser provisória.

Como exemplo de avanço, o professor e jurista Eugênio Pacelli pontua que “a ciência da vítima em relação tanto ao oferecimento da denúncia quanto da condenação e de outros atos é bem vinda, na medida em que poderá estimular o exercício de uma maior fiscalização da sociedade aos poderes públicos envolvidos na persecução penal”.

Ele critica, ademais, a nova redação que a Lei 11.690/08 deu ao artigo 156, do CPP, quando permite que o Juiz produza provas contra o réu. Consoante seu entendimento, “o juiz criminal não deve ocupar função de proeminência na persecução penal”.

A questão, como penso, não é esta. É claro que não se trata, aqui, da atuação judicial ex oficio tal como antes se permitia, na Constituição anterior. O que se defende, ao meu ver, é a tendência de ampla supervisão judicial notadamente nos casos de cautelares deferidas exatamente como modo de assegurar e garantir as liberdades públicas.

Foi assim que atuou, na prática, a ministra do STJ, Eliana Calmon, quando da “operação navalha” da Polícia Federal.

Quando, de outro modo, se demite um servidor publico parte-se da premissa constitucional de que a controvérsia apurada redundou esclarecida pela exaustão da ampla defesa e do contraditório. Quando, ademais, se afasta de modo preventivo um servidor público para que contra ele se empreenda investigação parte-se da defesa cautelar da própria garantia processual. Quando, enfim, se determina a prisão de alguém, seja pelos fundamentos diversos da prisão temporária ou da prisão preventiva, essa prisão, em hipótese alguma, pode ter o condão de antecipar o que seria ou será fundamento da sentença de mérito.

Tanto é assim que, em recentíssima decisão publicada no site do STF no dia 9 de outubro de 2008, o mnistro Celso de Melo afirmou que a prisão cautelar não pode ser usada para punir o réu.

Ele pontuou, literis: “A antecipação cautelar da prisão não é incompatível com o princípio constitucional da presunção da inocência. Mas não pode ser confundida com a prisão penal – essa sim com o objetivo de punir o culpado depois que a decisão for definitiva e irrecorrível”.

Em outras palavras, a prisão provisória (ou processual) de qualquer pessoa não pode ser assim tão banalizada. O fundamento maior de qualquer prisão não pode se afastar, em mais, da idéia de culpa, tanto é assim que, para o âmbito social, o fato de alguém ser preso pressupõe a ocorrência de falta moral muito séria. E não podia ser diferente.

Não por outro importante motivo, o item IX, do artigo 93, da Constituição de 88, determinou: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade…”

Como se vê, nos casos das prisões provisórias, o juiz tem de demonstrar com absoluta coerência de necessidade a ocorrência do fumus boni iuris e do periculum in mora ou — como é mais adequado — do periculum libertatis.

É justamente por isto que a presunção de culpa só ocorre com o efetivo trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Foi por isto que recentemente os políticos brasileiros com ficha suja garantiram no Tribunal Superior Eleitoral — ainda que em votação apertada — o direito de somente serem impedidos de participar do pleito eleitoral quando condenados em última instância.

É correto, portanto, o entendimento de que nem a própria Lei tem o poder de restringir direitos assegurados pela Constituição.

Há circunstâncias, contudo, em que o princípio da segurança jurídica deve sobrepor o princípio da legalidade. Foi o caso, por exemplo, de recente decisão em que a 5ª Turma do STJ assegurou a doze servidores o direito de efetivação em cargos não providos por concursos.

Têm sido cada vez mais freqüentes as decisões do STF que, por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, modulam no tempo os efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, confirmando, assim, a perfeita validade do artigo 27, da lei 9868/99.

Isto ocorre porque o que o ser humano tem de mais seguro e certo é o seu passado jurídico.

Destaco, a propósito, oportuna citação do jurista Vicente Ráo, no livro “O Direito e a Vida dos Direitos”, RT, 6a edição, pg. 399, que cita Portablis:

“O homem que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto à sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira de nossa fraqueza.

Seria agravar a triste condição da humanidade, querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças…”.

Como se vê, tendo o princípio da presunção de inocência o condão de inclusive respeitar o passado da criatura humana, a lei 10.792/03 contemplou oportuno avanço quando garantiu ao réu o direito de — interrogado em juízo — silenciar sem que isto, por si só, resulte interpretado a seu desfavor.

Em suma, o direito ao silêncio decorre, mais diretamente, do direito de não se auto-incriminar que, em 1988, foi alçado à condição de direito fundamental, no artigo 5ª, LXIII, da Constituição da República.

Senão veja-se: “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogados”.

O direito ao silêncio insere-se, por óbvio, não apenas no princípio da ampla defesa, mas no princípio da presunção de inocência contemplado no artigo 5ª, LVII.

Há, por conseguinte, o direito de mentir para não se auto-incriminar. É por isto que a confissão de um crime, a rigor, não tem valor isoladamente.

Já se disse que quem mente rouba de alguém o direito de saber a verdade. No âmbito penal, ademais, quem mente para não se auto-incriminar comete um delito de ordem moral, apenas.

Enfim, diante dos avanços acima citados que já se fazem amplamente consolidados em prol da cidadania e dos direitos fundamentais da criatura humana, cabe aos integrantes da Polícia Judiciária e do Ministério Público não somente respeitá-los, mas desdobrarem-se de modo a comprovar com fatos, com dados e com perícias a materialidade dos delitos ocorridos e a determinação de suas autorias.

Luiz Flávio Gomes sustenta, com acerto, que “a acusação tem o ônus de provar cada um dos fatos que integram o tipo penal e a participação nos mesmos do acusado”.

Com igual acerto, pontua a juíza Federal Simone Schreiber, da 5ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, conforme consta no site Jus Navegandi: “enquanto no direito processual civil, o juiz, ao decidir, se limita a distribuir as regras de ônus da prova, julgando a lide contra a parte que não se desincumbiu do ônus de provar os fatos por ela alegados; no direito processual penal, se ao final o juiz tiver dúvidas a respeito da procedência das alegações do réu, ele deve absolvê-lo ainda que não esteja plenamente convencido daquelas alegações. Em uma palavra, a dúvida não resolvível quanto à matéria de fato é sempre dirimida a favor do réu, independentemente das regras ordinária de distribuição do ônus da prova”.

As concepções ut supra constituem-se, consoante me é dado compreender, em significativas conquistas do atual momento constitucional brasileiro que nada tem a ver com a idéia ultrapassada de Estado policialesco determinado, na prática, pelo princípio da presunção de culpabilidade.

A sociedade leiga, contudo, impulsionada pelo espetáculo de mídia, continua esperando do criminoso que ele confesse seu crime.

O que importa, como penso, é que se dê – ao homem – seus precisos direitos (previstos em lei), seja ele vítima ou autor de um crime.

Sua expressão política é o que mais se realça numa visão democrática.

Veja-se, a propósito, a belíssima lição de Norberto Bobbio em seu delicioso livro “O futuro da Democracia”, Paz e Terra, 10ª edição, pág. 17:

“Escrevi que, contra os inimigos de esquerda e de direita, continuava a confiar na força das boas razões… Não pretendo dizer que as democracias, no mundo de hoje, gozem de ótima saúde. Mas os Estados totalitários tombaram, um depois do outro…”.

Ainda no livro “… a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo”.

É por isto que o melhor dos governos é o governo das leis.

Neste sentido, valho-me, por fim, de mais uma lição de Norberto Bobbio: “o Direito e o poder são duas faces de uma mesma moeda: só o poder pode criar Direito e só o Direito pode limitar o poder”.

Artigo publicado originalmente no portalaz.com.br e no sindpf-ne.com.br

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