Conselho de Administração

Quem deveria zelar pelo social, zela pelo particular

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16 de outubro de 2008, 10h17

O conselho de administração é um dos órgãos de maior importância na vida social, eis que dita os rumos dos negócios da companhia, defindo suas diretrizes fundamentais. Assim, os conselheiros de administração, na qualidade de membros desse vital órgão, devem sempre expressar a vontade social, com a observância de deveres de natureza fiduciária, tais como os de diligência, lealdade e transparência, além do dever de agir visando os fins e no interesse social.

Em diversas situações, entretanto, o que se nota é que aqueles que deveriam manifestar e zelar pelo interesse social possuem, paralelamente, interesses particulares na deliberação ou operação, o que dá ensejo ao surgimento de conflito de interesses.

Dessa forma, tendo em vista a relevante função exercida pelos conselheiros de administração e a repercussão que seus atos podem gerar na vida social, é fundamental que se entenda corretamente a natureza do conflito de interesses, de acordo com a regra positivada no artigo 156 da Lei 6.404/76, pois a partir deste entendimento poderão ser adotadas diferentes medidas para preservar o interesse social.

Natureza do conflito de interesses no conselho de administração: súmula da controvérsia

A regra vigente relativa ao conflito de interesses por parte dos administradores dispõe ser "vedado ao administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia, bem como na deliberação que a respeito tomarem os demais administradores, cumprindo-lhe cientificá-los do seu impedimento e fazer consignar, em ata de reunião do conselho de administração ou da diretoria, a natureza e extensão do seu interesse."

Diante de tal norma, a questão que se põe diz respeito à natureza do impedimento do administrador, se formal ou material.

Como se verá, a principal diferença entre essas duas formas de se entender o conflito de interesses reside no momento da sua verificação e na restrição ao direito do administrador de votar. A questão toda se resume, na realidade, a uma indagação bem simples: o legislador estabeleceu uma hipótese de proibição de voto, ou a sua preocupação foi com o conteúdo do voto do administrador?

Sobre o tema, há divergências importantes na doutrina e na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), ente regulador do mercado de capitais brasileiro, que, dependendo da composição de seu órgão colegiado, tem apresentado entendimentos diametralmente opostos para casos semelhantes. Verifica-se, ainda, que no âmbito do Poder Judiciário não há, até o momento, uma linha de pensamento sobre o assunto, seja em instâncias ordinárias ou superiores, mas apenas casos isolados.

A ausência de posicionamento firme, seja na doutrina, na CVM ou no Poder Judiciário, reforça a importância de estudos nessa área.

A regra do conflito de interesses formal

Segundo a corrente que defende o conflito de interesses formal, minoria na doutrina, a verificação do conflito deve se dar mediante a análise "a priori" e abstrata da situação, ou seja, antes mesmo de o administrador proferir seu voto em determinado conclave. Para essa corrente, não importa o conteúdo do voto do administrador, mas sim a existência de possível interesse que se sobreponha ao da sociedade.

Haverá, portanto, conflito de interesses sempre que, em potencial, o administrador demonstrar interesse direto no negócio ou ato, ou seja, se ele for a contraparte da sociedade ou tiver de alguma forma interesse maior na contraparte.

Essa corrente, que valoriza a letra da lei, sustenta que o legislador estabeleceu verdadeiro impedimento de voto para o administrador interessado, como medida cautelar para evitar eventual prejuízo à sociedade.

Nada obstante, os formalistas não relacionam o impedimento de voto com a existência de um interesse pessoal que necessariamente importe o sacrifício do interesse social. Também não correlacionam a obrigação de não votar com a comprovação de que o benefício particular do administrador acarrete efetivo dano para a companhia.

Conforme assinala Modesto Carvalhosa, principal defensor dessa corrente, o fundamento da norma não consiste no pressuposto de que o administrador pretenderia votar e contratar contra o interesse social, mas sim no fato de que "não pode o administrador que será parte contratual formar a vontade da outra parte, que é ou será a companhia."[i] Ou seja, não pode o administrador estar nas duas pontas da negociação, pois, nesse caso, o administrador não estaria em condições de ser absolutamente imparcial na busca pelo atendimento do interesse social. Isso porque as partes antagônicas da contratação se confundiriam na mesma pessoa, configurando o que o direito norte-americano define como "self-dealing transaction".


O administrador interessado deve, nessas situações, portanto, cientificar o impedimento aos seus pares, fazer consignar, em ata de reunião do conselho, a natureza e extensão do seu interesse e simplesmente abster-se de votar. Não há espaço, pois, para que o administrador sequer delibere, segundo a corrente formal.

Dessa forma, não há que se perquirir se o voto do administrador efetivamente privilegiaria o seu interesse pessoal em detrimento do interesse da sociedade ou não. Em outras palavras, a conseqüência da infração à proibição de voto é, para a corrente formal, a anulação da deliberação, ainda que o interesse social tenha, ao final, preponderado.

A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o recurso especial 156.076-PR, de relatoria do ministro Ruy Rosado de Aguiar, acolheu a interpretação formal do conflito de interesse, tendo decidido que este decorre "da simples existência de prestações contrapostas, contratualmente ajustadas"[ii].

No plano da CVM, a defesa da corrente formal se deu no julgamento do Processo CVM RJ 2004/5494, quando se entendeu haver conflito de interesses em operação de permuta de ações do controle de duas sociedades, a qual foi aprovada com o voto de um administrador que também era controlador de uma das sociedades e, que, assim, era um dos principais beneficiários da operação.

O Colegiado da CVM, naquela ocasião, concluiu que o conflito de interesses "é presumido, isto é, independe da análise do caso concreto a sua aplicação, restando os administradores da companhia impedidos de participar de qualquer tratativa ou deliberação referente a uma determinada operação em que figure como contraparte da companhia ou pela qual seja beneficiado, independentemente se está a se perseguir o interesse social ou não." [iii]

No mesmo sentido foi o posicionamento daquele órgão no julgamento do Inquérito Administrativo nº 2001/4977.[iv]

A regra do conflito de interesses material

Apesar dos precedentes da CVM, acima citados, a doutrina francamente majoritária é no sentido de que a natureza do conflito de interesses é material, ou seja, como questão de fato, ele deve ser analisado, casuisticamente, após a prolação do voto pelo administrador.

O conflito, portanto, se confirmará quando, após a análise do voto do administrador, concluir-se que o interesse extra-social que o conduziu é estridente, colidente, efetivo, inconciliável com o interesse social. Isto é, para o atendimento do interesse de uma das partes necessariamente deverá haver o efetivo sacrifício do interesse da outra. Não basta que haja apenas um duplo interesse por parte do administrador, como defende a corrente formal.

Nesse sentido, J. X. Carvalho de Mendonça afirma que "muitas vezes é difícil precisar os interesses opostos entre o administrador e a sociedade. Só a apreciação do caso concreto oferece a justa solução"[v]. Trajano de Miranda Valverde, da mesma forma, sustenta que "a existência ou não de interesses opostos é uma questão de fato, a ser, portanto, apreciada e julgada em cada caso."[vi]

Ratificando essas lições, um dos co-autores do anteprojeto da Lei 6.404/76, José Luiz Bulhões Pedreira, ensina que "interesse conflitante significa interesse oposto, contrário, incompatível ou colidente. Não é apenas interesse diferente, ou distinto, que pode ser, inclusive, coincidente com o da companhia, ou complementar a este"[vii].

Socorre a tese ora analisada a definição de conflito dada pelos léxicos Aurélio Buarque De Holanda Ferreira, Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, para quem, respectivamente, conflito significa "choque, embate, peleja"[viii] e "convergência de direitos antagônicos de dois ou mais indivíduos, que obriga a que nenhum deles tenha exercício pleno ou exerça gozo exclusivo do direito do qual se arroga titular: colisão de direitos"[ix].

A corrente material defende, ainda, que a regra do conflito de interesses formal seria insuficiente para identificação de todos os possíveis casos de interesses conflitantes, haja vista que ela circunscreveria as hipóteses de conflito àquelas em que o administrador contratasse com a sociedade, quando, na verdade, pode-se verificar conflitos de interesses mesmo quando não há qualquer relação contratual entre administrador e sociedade. Além disso, a regra do conflito de interesses formal seria muito rigorosa, pois acabaria por impedir a realização de operações vantajosas para a sociedade, pelo simples fato de a outra parte contratante ser o administrador ou pessoa de seu interesse.


Concluem, assim, os defensores da corrente material que o legislador teria proibido, cautelarmente, o administrador de votar. Mas se este entender que não se encontra em situação de conflito e votar, dever-se-á analisar o modo como votou, o conteúdo do voto, e se, efetivamente, tiver havido sacrifício do interesse social, a deliberação deverá ser anulada, haja vista que o ato ilícito, para essa corrente, consiste em votar contra o interesse social e não em votar tendo um interesse extra-social.

A 4ª Turma do e. Superior Tribunal de Justiça, que, como visto anteriormente, no julgamento do recurso especial 156.076-PR, havia adotado a interpretação formal do conflito de interesses, ao julgar o recurso especial 131.300-RS[x], entendeu que a existência do conflito só é concretizada quando os interesses extra-social e social são efetivamente colidentes. Note-se que, no julgado, foi analisada hipótese de conflito de interesses por parte de acionista e não por parte de administrador de sociedade anônima.

No âmbito da CVM, também prevaleceu a tese da natureza material do conflito de interesses, no julgamento do Inquérito Administrativo CVM RJ 2002/1153, quando se entendeu que não tinha o condão de configurar conflito de interesses o simples fato de os acionistas votantes deterem participação acionária direta e indireta nas duas partes do contrato em questão. O voto condutor do julgado menciona o princípio da presunção de boa-fé do acionista, que poderia ser afastado pelo exame meramente formal e aparente do conflito de interesses.

Ainda em resposta à corrente formal, afirmou-se que a presunção "iuris et de iuri" do conflito de interesses exigiria a previsão clara de hipóteses específicas, o que não teria sido feito pela lei vigente. Assim, sustentou-se que quando há na lei mera referência genérica e subjetiva, a análise inicial do conflito deve se dar primeiramente pelo acionista interessado, porquanto só ele tem condições, naquele momento, de avaliar a situação e somente ele sabe o teor do voto que proferirá.[xi]

O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, ao analisar o recurso interposto dessa última decisão, entendeu que o conflito de interesses pode e deve ser verificado pelo próprio administrador ("rectius", acionista) antes de proferir o seu voto, e, em sendo constatada a sua existência, o exercício do voto é vedado "a priori". Se, porém, o administrador ("rectius", acionista) entender que não há conflito de interesses, ele poderá votar, e o conteúdo do seu voto será objeto de análise posteriormente.[xii]. Muito embora tenha havido, em sua essência, um direcionamento formal da referida decisão, pode-se verificar uma certa influência material, porquanto se admitiu a análise posterior do próprio conteúdo do voto do acionista.

Solução intermediária: necessidade de temperamento

Na busca por uma solução conciliatória entre a profusão de interesses existentes na sociedade anônima, a opção deve ser por uma alternativa média, nem só voltada para uma solução formalista pura, nem apenas para uma solução casuística radical.

A regra de conflito de interesses deve ser vista não apenas como uma regra estática, isolada dentro do sistema. A discussão em torno dela não pode limitar-se, cegamente, ao momento em que o conflito deve ser verificado e as conseqüências daí resultantes. Cumpre deslocar o foco da questão. A sobredita regra deve, assim, ser lida à luz de todas as demais normas previstas na Lei 6.404/76 e no ordenamento jurídico como um todo, notadamente os valores e princípios constitucionais, para, aí sim, identificar o critério para sua apuração.

Não se pode esquecer, neste contexto, a realidade histórica em que se desenvolveu a mencionada Lei 6.404/76 e o propósito a que ela se destinou. Conforme o Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), aprovado pela Lei 6.151/74, que concebeu a estratégia para o desenvolvimento do país para os anos de 1975 a 1979, dentre as metas a serem alcançadas, estava o fortalecimento da empresa nacional para competir com as empresas estrangeiras. Esse objetivo somente seria alcançado se fosse facilitada a concentração do poder dentro das novas sociedades anônimas[xiii].


O contraponto imperioso, todavia, que devia ser contemplado pela nova e moderna Lei das Sociedades Anônimas, era a proteção das minorias acionárias, o que somente poderia ser alcançado mediante a criação de deveres de eticidade e freios impostos aos controladores e administradores. Assim, a Lei nº 6.404/76 devia conter normas de natureza cogente, que impedissem os controladores e administradores de atender seus interesses egoísticos pessoais em detrimento dos interesses dos demais agentes da sociedade.

Nesse contexto, a regra do conflito de interesses prevista na Lei nº 6.404/76 deve ser interpretada à luz dos princípios axiológicos consagrados na Constituição Federal, de modo a promover valores como o da moralidade, solidariedade, boa-fé, dignidade da pessoa humana, os direitos sociais e a justiça distributiva, à qual deve submeter-se a iniciativa econômica privada.

É importante, neste passo, lembrar que o legislador impôs aos administradores, em linhas gerais, deveres essenciais de eticidade, como os deveres de transparência, de lealdade, de diligência e de atuar no interesse da companhia e de acordo com seus fins, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa, sendo-lhe defeso faltar com seus deveres ainda que seja para defesa dos interesses dos que o elegeram.

Dentro desse quadro, observou, com propriedade, Calixto Salomão Filho, acerca do conflito de interesses, que "implica deslocar a questão da análise e comparação do ato e sua relação com o interesse social para a verificação da situação e dos deveres mínimos de cuidado de administradores e controladores. Retorna-se, como dito acima, portanto, aos deveres de cuidado e fiduciários não como disciplina substitutiva do conflito de interesses, mas como critério para sua apuração."[xiv]

Dessa forma, a tradicional classificação entre conflito de interesses formal e material deve ser "transformada em diferença entre situações em que se verifique forte perigo de comportamento incorreto e situações em que isso não ocorra."[xv]

Assim, em havendo risco de inobservância pelo conselheiro dos seus deveres fundamentais, deve a ele ser imposto o impedimento de voto, "a priori". Esse impedimento de participar da deliberação é amplo, abrangendo também a proibição de "opinar, sugerir ou sob qualquer forma influenciar a deliberação dos órgãos da administração da companhia."[xvi]

Chega-se facilmente a essa conclusão pela análise do próprio artigo 156 da Lei 6.404/76, que é claro ao estabelecer que, havendo o conflito de interesses, o administrador está impedido de votar na respectiva deliberação. E o parágrafo primeiro, confirmando a regra do "caput", deixa evidente que a hipótese lá prevista — celebração de contrato entre administrador e sociedade — é daquelas contempladas pela regra geral, pois preceitua que o contrato, "ainda que observado o disposto neste artigo", ou seja, ainda que o administrador interessado se abstenha de votar, deve conter bases eqüitativas.

O raciocínio acima, contudo, não deriva apenas de interpretação puramente gramatical da lei, mas também, e principalmente, da constatação de que a formação da vontade social é realizada pelo próprio administrador, que tem deveres importantes para com a companhia. É ele, portanto, que, como membro integrante de um dos órgãos da sociedade e parte de uma relação eminentemente fiduciária, exterioriza a vontade social. Assim, a conduta que se espera do administrador é a representação, leal, diligente e transparente, dos interesses da sociedade na negociação das condições do contrato que ela vier a celebrar ou de qualquer outra operação societária que vier a realizar, buscando sempre as melhores condições para a companhia.

Dessa forma, tal como defende a corrente formal antes analisada, não pode aquele que representa os interesses de uma das partes, fixa a orientação geral dos seus negócios e negocia as melhores condições possíveis para ela, ao mesmo tempo, ser ou ter interesse direto na outra parte contratante ou auferir benefícios decorrentes da contratação ou operação em pauta, eis que lhe faltará a necessária isenção.

Outra não foi a conclusão da CVM, no julgamento do já referido Inquérito Administrativo CVM RJ 2004/5494. No caso, tal autarquia entendeu, inicialmente, que não se pode traçar um paralelo entre a regra do "caput"do artigo 156 da Lei 6.404/76 e a do §1º do artigo 115 da mesma Lei (que trata do conflito de interesses do acionista), a qual, para a maioria da doutrina, é a única hipótese em que a violação do interesse da companhia não deve ser presumida, e sim analisada "a posteriori". Esse raciocínio, segundo o referido julgado, não poderia ser aplicado aos casos que envolvem conflito de interesse do administrador, pois a conduta esperada do acionista e a conduta esperada do administrador são inteiramente distintas. De fato, diferentemente do que compete aos acionistas, cabe aos administradores negociar as condições de um contrato que a companhia vai celebrar, de forma que a existência de qualquer interesse paralelo poderá influenciar as próprias bases do negócio. Assim, no precedente, a CVM concluiu que havendo dupla inserção do administrador em determinada operação, ele deve abster-se de intervir nas respectivas negociações em nome de uma das partes, em virtude do próprio critério de independência que se deve exigir do administrador.[xvii]


Nessa ordem de idéias, parece acertado sustentar, com Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho, que ocorrerá impedimento de voto sempre que "o conflito de interesses transpareça ‘a priori’ da própria estrutura da relação ou negócio sobre que se vai deliberar, como, por exemplo, um contrato bilateral entre a companhia e o acionista"[xviii] ("rectius", administrador).

Contudo, muitas vezes, o conflito de interesses se revela de forma camuflada, não evidente, o que dificulta a imposição, "a priori", pelos demais administradores, àquele administrador interessado, da regra de impedimento de voto. É comum que o interesse conflitante não envolva a celebração de um contrato bilateral, em que o administrador seja a contraparte direta da sociedade. Pode ocorrer que, em alguma operação social, o administrador tenha interesse indireto e não aparente na contraparte da sociedade, seja por receber algum benefício pessoal em troca de seu voto, seja por ser sócio, ainda que indireto e longínquo, da contraparte. Em muitos desses casos, o conflito só se exteriorizará para os demais administradores, após o exame do conteúdo da deliberação.

Não há dúvidas, porém, que a situação de conflito de interesses existe e é precedente à deliberação. A questão, contudo, é que esse conflito só se revela, "a priori", internamente, para o próprio administrador. Sua verificação pelas demais pessoas é que, muitas vezes, só será possível "a posteriori".

Nem por isso, todavia, deixa de existir para o administrador interessado o impedimento de voto. Nada obstante, se o administrador interessado não observar tal comando de não votar, é preciso temperar a regra do conflito formal de interesses, para se admitir que, nesses casos, o conflito seja verificado "a posteriori".

Assim, havendo afronta à regra clara de conduta prevista no artigo 156 da Lei 6.404/76, dever-se-á apurar, "a posteriori" e casuisticamente, com base no conteúdo do voto, se ao votar, o administrador privilegiou seu interesse pessoal, violando os seus deveres básicos de conduta. Em outras palavras, na prática se permitirá que o administrador vote e, posteriormente, se analisará o modo pelo qual votou, para se concluir pela sua atuação ou não no interesse da sociedade e de acordo com seus fins.

Se constatada a preferência pelo interesse pessoal do administrador com prejuízo para a sociedade, a deliberação deverá ser anulada. Caso, porém, não seja privilegiado o interesse extra-social em detrimento do interesse social, a deliberação deverá prevalecer, pois não se anula o negócio não danoso, de acordo com a regra do parágrafo segundo do art. 156 da Lei 6.404/76.

Esclareça-se, por fim, que o Colegiado da CVM, ao julgar o Processo nº RJ 2007/3453, decidiu que por interesse extra-social, pessoal do administrador, deve se entender apenas o seu interesse próprio na negociação, seja direto ou indireto.[xix] O sentido do voto conflituoso do administrador deve ter por escopo, assim, a reversão de algum benefício para ele próprio, ainda que seja o favorecimento de sociedade da qual ele participa como sócio ou o mero recebimento de um bônus pela contraparte da companhia. A simples participação do administrador como empregado na contraparte da companhia, portanto, não configura conflito de interesses para a CVM.

Conclusão

Diante das considerações feitas anteriormente, conclui-se que a regra do conflito de interesses não pode ser lida apenas sob o seu aspecto formal, sob pena de virar letra morta, uma vez que, nesse caso, não terá o condão de abranger inúmeras situações de conflito de interesses, deixando de proteger, muitas vezes, o interesse da própria sociedade.

A melhor interpretação da regra positivada no artigo 156 da Lei 6.404/76 é aquela que estabelece proibição cautelar de voto, nos casos em que há forte e evidente perigo de comportamento incorreto, e que permite o voto, mas analisa, "a posteriori", o seu conteúdo, se o receio de violação pelo administrador de seus deveres fiduciários não é manifesto desde logo.

Assim, em uma e em outra situação, se houver deliberação com a participação do administrador interessado, seu conteúdo somente será passível de anulação se houver concreto e efetivo dano à companhia, pois isso decorre da lógica da preservação do ato não lesivo. Nesse caso, ainda, o comando do paragrafo segundo do art. 156 da Lei nº 6.404/76 determina que o administrador transfira para a sociedade as vantagens que tiver auferido do negócio contratado em conflito de interesses.


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[i] Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2003, v. 3, p. 314

[ii] Diário de Justiça da União, 29.06.1998, p. 201


[iii] Disponível em <http//:www.cvm.gov.br> Acesso em 29.10.2007

[iv] Disponível em <http//:www.cvm.gov.br>. Acesso em 20.10.2007

[v] MENDONÇA, J. X. Carvalho de. Tratado de direito comercial brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 5ª ed., v. IV, 1954, p. 64

[vi] VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedade por Ações. Rio de Janeiro: Forense, 1953, p. 315, nota 32, apud BRANCO, Adriano Castello. Op. cit. p. 75

[vii] Parecer elaborado a pedido da parte indiciada do Inquérito Administrativo CVM RJ nº 2002/1153. V. FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo e Novaes. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro, 2002, v. 128, p. 225-262

[viii] Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed., rev. e aum. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986, p. 451

[ix] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 797

[x] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Processual Civil. Recurso Especial nº 131.300-RS. Recte.: Jorge Moreira da Silva e cônjuge. Recdo.: José Abrão dos Santos e cônjuge. Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, da 4ª Turma. Brasília. 20.05.1997. Diário de Justiça da União, 04.08.1997, p. 34774

[xi] Disponível em <http//:www.cvm.gov.br> Acesso em 29.10.2007

[xii] Disponível em <http//:www.bcb.gov.br> Acesso em 29.10.2007

[xiii] PRADO, Viviane Muller, Conflito de interesses nos grupos societários. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 48-52.

[xiv] SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 96

[xv] SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 96

[xvi] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 3ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva. 2003, v. 3, p. 316

[xvii] Disponível em <http//:www.cvm.gov.br> Acesso em 29.10.2007

[xviii] O Poder de Controle na Sociedade Anônima. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 307

[xix] Disponível em <http//:www.cvm.gov.br>. Acesso em 23.06.2008

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