Estabilidade e mudança

Pré-sal: ordem jurídica tem de absorver nova realidade

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16 de outubro de 2008, 18h47

Ninguém desconhece que a revelação das reservas potenciais das jazidas contidas abaixo da camada de sal no mar territorial brasileiro, em especial a descoberta do mega campo de Tupi, afetou as licitações previstas para a Oitava e a Nona rodadas para exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás realizadas pela ANP. A Oitava Rodada foi interrompida por medida judicial. A Nona Rodada teve 41 blocos retirados por decisão do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e prosseguiu com os blocos remanescentes, alcançando relativo sucesso. Na mesma Resolução 6, de novembro de 2007, o CNPE recomendou ao Ministério das Minas e Energia que adotasse providências para retomada da Oitava Rodada e determinou o rigoroso respeito aos direitos adquiridos concernentes às áreas concedidas ou arrematadas nos leilões anteriores da ANP.

Vêm dai as dúvidas sobre o que deverá ocorrer com as propostas apresentadas na Oitava Rodada, em especial com aqueles licitantes que venceram blocos no âmbito do procedimento não concluído por força da medida liminar que interrompeu a licitação.

O poder público tem a prerrogativa de desfazer seus atos sempre que a superveniência de uma realidade fática torná-los inoportunos ou inconvenientes. É o que se chama revogação do ato ou processo administrativo. Ela não se confunde com a anulação ou invalidação, embora tenha os mesmos efeitos (cessar a vigência de um ato jurídico). A anulação decorre de um vício (e, portanto, é impositiva); a revogação se baseia numa avaliação de interesse público (sendo, pois, facultativa). Ambas, porém, enfrentam hoje condicionantes e restrições impostas pela lei. A preservação dos direitos adquiridos e dos atos jurídicos perfeitos, referidos na Resolução do CNPE, é uma delas. O dever de assegurar direito de defesa ao particular interessado no ato a ser invalidado, é outra. Mais recentemente, o dever de boa-fé e de respeito ao princípio da confiança legítima do particular que trava relações jurídicas com o Estado tornou-se outro limitador. Hoje já não mais se aceita que o poder público desfaça seus atos livre, desmedida e infundadamente.

No processo licitatório estes parâmetros são muito claros. Na Lei Nacional de Licitações (LNL – Lei 8.666/93) vemos isso em vários dispositivos. A lei é aplicável também aos leilões da ANP no que não contrastem com a Lei 9.478/97. Seu artigo 49 obriga o respeito ao contraditório e à ampla defesa (parágrafo 3º); assegura direito à indenização ao particular de boa fé prejudicado pelo desfazimento do ato (parágrafo 2º combinado com o artigo 59, parágrafo único). No que diz com a revogação, este mesmo artigo 49 (caput) impõe um regime bastante restritivo. Exige que (i) haja razões de interesse público, (ii) decorrente de fato superveniente. (iii) devidamente comprovado, que seja (iv) pertinente e suficiente a justificar a revogação. Mais ainda, a LNL impede que à revogação se suceda novo certame licitatório com o mesmo objeto (artigo 50).

Disso decorre que, embora o poder público tenha a prerrogativa de revogar um processo licitatório, não pode fazê-lo para, ao depois, repor em licitação o mesmo objeto. Se o poder público licita o serviço de recuperação de uma ponte e, no curso do certame, ela vem a ruir, não haverá mais interesse público a justificar o prosseguimento da licitação: a nova realidade tornou o objeto licitado inapelavelmente prejudicado. Porém, não assistirá o mesmo direito de revogação para desfazer o certame já na fase final de julgamento para, na seqüência, recolocar em licitação o mesmo objeto, apenas porque se quer limitar o valor máximo de preço aceitável.

Num procedimento complexo, com vários atos e vários blocos, a revogação não só pode como deve se limitar àqueles atos cujo desfazimento se mostre imprescindível ao interesse público alterado por situação superveniente. Não se admite, em direito, utilizar de circunstância isolada para, desproporcionalmente, desconstituir fato jurídico para além do necessário.

Os licitantes que já haviam se sagrado vencedores de aéreas com leilão concluído e em seu favor arrematadas, creio possuírem já um direito adquirido a firmar o contrato de concessão, salvo na hipótese, incogitável, da Administração não mais desejar que tal bloco seja explorado, desenvolvido e posto em produção. Tal fato, aliás, parece ter ficado estabelecido na Resolução 6 do CNPE (artigo 3º).

Se a decisão da União, como já se chegou a ventilar, for a de exercer diretamente o monopólio constitucional sobre as reservas do pré-sal, efetivamente estará justificada a revogação destes lotes de licitação. Se, porém, remanescer o interesse em concessão de tais áreas, não creio que restaria, à luz da lei, possível a revogação apenas para alterar uma ou outra condição econômica ou regulatória de outorga.

Num Estado Democrático de Direito devemos buscar o equilíbrio entre estabilidade e mudança. Não podemos ver a ordem jurídica como uma cristalização de direitos que impeça absorver a cambiantes realidades. Também não se aceita atribuir ao poder público a total falta de compromisso com os efeitos dos atos jurídicos que pratica. Ao contrário da Sicília de Lampedusa, muito deve continuar como está justamente para que tudo possa, licitamente e seguramente, cambiar.

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