Lei obscura

Reforma do Código de Processo Penal confunde juízes

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15 de outubro de 2008, 14h35

Se de um lado a reforma do Código de Processo Penal, que entrou em vigor em agosto, descomplicou algumas práticas jurídicas arcaicas, de outro, promete causar muita discussão nos tribunais. Uma pesquisa feita pela Associação Paulista de Magistrados (Apamagis) entre 250 juízes de São Paulo mostra que algumas das novas regras dividem os entendimentos em lados antagônicos. E o que é pior: as questões devem parar somente no Supremo Tribunal Federal — o que significa milhares de julgamentos anulados e refeitos e processos criminais aguardando anos até a posição final dos ministros sobre questões meramente técnicas.

O quadro previsto não é exagero, pelo menos não na opinião do especialista em Processo Penal e juiz assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo Guilherme de Souza Nucci. Estudioso das mudanças no CPP trazidas pelas Leis 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08, Nucci já observa uma saída confusa adotada pelos juízes a fim de evitar a anulação dos julgamentos. Na dúvida entre a aplicação das novas e das velhas regras, a opção tem sido o uso simultâneo ou até a mescla de ambas.

É o caso da inversão da ordem do interrogatório do réu, como conta o juiz. Pela regra antiga, o acusado era o primeiro a ser interrogado, antes das testemunhas de acusação e de defesa, para então ser dada a sentença. Para garantir ao réu o pleno direito de se defender de todas as acusações, o novo Código colocou o acusado para responder a perguntas somente no final do processo, depois de conhecidas todas as provas e testemunhas.

Apertados entre os que acham que as mudanças valem só para as denúncias aceitas depois das novas leis e os que defendem a aplicação também aos processos antigos, alguns juízes têm feito dois interrogatórios: um no começo e outro no fim. “O medo de deixar brechas para a anulação do julgamento tem levado os juízes a comportamentos inadequados”, conta Nucci.

A pesquisa feita pela Apamagis conseguiu quantificar o problema. Uma das 24 perguntas feitas aos juízes paulistas se referia à ordem do interrogatório nos casos que envolvem a aplicação da nova Lei de Tóxicos (Lei 11.343/06), que disciplina o procedimento penal específico nos casos de tráfico de entorpecentes e que prevê a fala do acusado no início do processo.

Quase um quarto dos juízes — 22,4% — respondeu que o novo Código mandou o interrogatório para o fim do julgamento, mesmo havendo previsão na própria norma de que as regras para procedimentos especiais — como o de crimes ligados a tóxicos — deveriam ser mantidas. “A falta de clareza do legislador vai causar uma avalanche de recursos no Supremo”, estima Nucci.

Para o criminalista Odel Antun, sócio do escritório Podval, Rizzo, Mandel, Antun, Indalecio e Advogados, o novo Código igualou os procedimentos, o que deu também aos acusados por crimes de tráfico o direito de falar somente no fim do processo.

O advogado Jair Jaloreto Junior, sócio do Portela Campos Bicudo e Jaloreto Advogados, já percebe diferentes interpretações da lei nas varas criminais. Segundo ele, a obrigatoriedade de audiência única para ouvir réus, testemunhas, defesa e acusação tem trazido confusão aos julgadores. “Réus ouvidos no passado agora têm de ser ouvidos novamente. As regras não podem ser aplicadas pela metade”, diz.

Uma das maiores dúvidas constatadas se refere à legalidade do interrogatório do réu por videoconferência. Apesar de o Supremo ter condenado a prática em um julgamento no ano passado, 57,4% dos juízes acham que o recurso pode ser usado. Mais uma vez, o novo Código não é claro nesse sentido. A única previsão seria para o interrogatório de testemunha que tenha medo de falar em frente ao réu. “Com a omissão do legislador, deduz-se que, como este é o único caso previsto, nos demais a ferramenta não pode ser usada”, explica Nucci.

Para o advogado Roberto Podval, a prática fere a premissa da identidade física do juiz, que pressupõe que o réu fale diretamente ao julgador. “O acusado tem agora o direito de estar presente a toda a audiência. Do contrário, o julgamento pode ser anulado”, diz.

O argumento também pode ser usado em relação aos interrogatórios feitos por carta precatória — quando um réu de outro estado é intimado a depor, devendo comparecer no fórum judicial da comarca onde mora. A pesquisa da Apamagis apurou que 83,9% dos juízes acreditam ser possível o uso do recurso, mesmo com a falta de previsão legal no novo Código.

Outra dúvida levantada pela pesquisa foi a necessidade de notificação prévia de funcionário público enquadrado em crime de responsabilidade civil. Esses profissionais sempre tiveram a prerrogativa de poder entregar ao juiz uma defesa preliminar antes que o Ministério Público apresentasse a denúncia, o que gerava um contraditório prévio. O juiz poderia declarar o acusado inocente sumariamente, antes que o inquérito virasse processo judicial.

Como o novo Código abriu a possibilidade à maioria dos demais crimes, 46,4% dos juízes consultados acreditam que o contraditório preliminar especial foi abolido. Guilherme de Souza Nucci discorda. “Procedimentos especiais estão acima das mudanças”, diz. Já para o advogado Roberto Podval, a nova lei englobou o que antes era privativo das leis especiais.

Com todas as divergências levantadas, a Apamagis comemora o sucesso da iniciativa. Para o idealizador da pesquisa, o juiz Edison Aparecido Brandão, diretor de informática da associação, prever as discussões que chegarão ao Supremo é importante para se tentar equalizar o problema. “Cursos e palestras ajudam, mas não resolvem, já que cada julgador age segundo seu próprio entendimento. A pesquisa servirá para que o assunto esteja maduro quando chegar aos tribunais”, explica Brandão, também secretário-geral da Escola Paulista da Magistratura.

Clique aqui para ver a pesquisa.

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